A esta distância o que me ocorre é que nessa altura a gente ainda nem sonhava que haveria de vir o dia em que a nossa vida, em especial quando atravessamos momentos de alguma atribulação, seria bem mais facilitada por termos outros meios para nos comunicarmos.
Sem telemóveis, nem sei como era possível a gente aguentar-se em cima do arame... Aguentávamo-nos mas, caraças, por vezes com que dificuldade...
Num post lá muito mais para trás, já o contei: namorava um, que era o namorado oficial, um pouco mais velho que eu, que, apesar de ainda estar a estudar, já dava aulas, andava a maior parte do tempo com outro de quem estava cada vez mais inseparável, e, para apimentar a coisa, tinha um amigo, colega, com quem estava sempre que não estava com qualquer dos outros dois e de quem esses dois tinham imensos ciúmes. Qualquer dos dois, a maior parte das vezes, ao chegarem ao pé de mim, encontravam-me em animada conversa ou a almoçar com esse colega, ficando enfurecidos comigo e lançando olhares furibundos ao meu amoroso amigo. Chegavam até a ser desagradáveis com ele, o que me arreliava bastante.
Mas com quem eu tinha que fazer ginástica a sério para não se cruzarem era com o namorado oficial e com o que queria roubar-lhe o lugar. Num dia em que se cruzaram, e foi de longe, o primeiro manifestou vontade de ir à cara ao segundo e só porque o ameacei de acabar o namoro de imediato é que não houve ali tareia a sério.
O jeito que umas mensagens de aviso teriam dado. Assim, andávamos às cegas, correndo riscos de todo o tamanho.
Um filme.
O dia 25 de Novembro de 75 era um dia que, em termos de agenda, era complicado pois almoçava com o meu colega, grande, grande amigo, depois ia estar com o namorado e, a seguir às aulas de inglês no British Council, ia estar com o segundo.
Ora, com aviões no céu, com aquele ambiente de caldinho, receios de que a coisa ainda fosse dar para o torto, fiquei a achar que o mais certo era que não desse para ser um dia 'normal'. Mas a chatice é que não tinha como avisá-los. O meu amigo sofria com as minhas tangentes e, por ele, eu acabava era com os dois e, embora nunca o tivesse verbalizado, eu intuía que ele achava que eu ficava bem era com ele.
Resolvi que o melhor que fazia era ir para casa (a casa dos meus pais) pois ir para a residência na Rua de Artilharia Um, com o quartel ali ao lado, era capaz de não ser lugar muito tranquilo.
Agora como combinar isto com eles, avisá-los de que os encontros habituais ficavam sem efeito, e, ao mesmo tempo, garantir que não se cruzavam uns com os outros?
Ainda liguei para o telefone fixo da casa do segundo a pedir para a mãe avisar o filho para não ir ter comigo pois eu ia para casa dos meus pais mas a amável senhora respondeu-me que ele não estava em casa nem devia lá chegar senão às tantas da noite. Ou seja, o mesmo que nada em termos de comunicação. Com o oficial, então, não tinha mesmo como comunicar.
Lembrei-me, então, de deixar um papel no portão da Faculdade (pois o meeting point geralmente era na cantina, local onde, por haver mesas e cadeiras, era também local de estudo, de encontros variados). Nesse papel dirigia-me a qualquer deles pois apenas escrevi a inicial do nome deles que, por sinal, é a mesma letra. Aí disse que ia para casa dos meus pais, pedindo que 'ele' me ligasse para lá. Assinei com a inicial do meu nome. Qualquer deles, perceberia que o recado era para ele.
Quem fez questão de me acompanhar foi o meu colega. Achou que eu não devia andar sozinha. Não sei se ele temia que houvesse bombardeamento ou se, simplesmente, era cavalheiro e fofo. Queria ir acompanhar-me até casa dos meus pais. Mas, com medo que algum dos outros dois malucos lá resolvesse ir e ainda dessem de caras com ele, impedi-o. Aí, sim, haveria guerra a sério.
Depois disso, só me lembro de ter ido ter à escola em que a minha mãe estava a dar aulas como se nada se passasse. Estava na sala de aula com ela e com os alunos quando apareceu uma Contínua (naquela altura chamava-se assim) a dizer que estava um rapaz à minha procura. Lembro-me bem do susto que apanhei, sem saber qual deles era e com medo de que, às tantas, ainda aparecessem os dois e armassem barraca justamente na escola onde a minha mãe trabalhava.
E o estúpido disto é que não consigo lembrar-me de qual deles é que foi. O meu marido também não se lembra. Cá para mim foi ele mas agora já não tenho como saber.
E a ideia que tenho é que, como afinal não houve guerra e eu já não passava sem a adrenalina daquela liberdade, que era tão boa, e sem aqueles amores, no dia seguinte de manhã voltei à capital para a vida 'normal' e agitada que, na altura, era a minha.
Quanto ao resto, para falar verdade, mal dei por isso. Havia liberdade antes e houve liberdade depois, a liberdade do 25 de Abril, e a liberdade é uma coisa maravilhosa. E o amor também.
E o resto é conversa.