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sábado, maio 13, 2017

A incompreensível e efémera beleza das borboletas




Por vezes, tão auto-centrados nos encontramos que acabamos por não perceber que o mundo é múltiplo, vasto, grande parte dele invisível, outra grande parte incompreensível. E apenas um dos muitos mundos que existem. E que, dada a nossa frágil natureza e a nossa efemeridade, somos nada. Portanto, pobres de espírito os que acham que tudo sabem, os que tratam com desprezo os outros, os que julgam com facilidade e, sobretudo, os que condenam sem julgamento. O muito que alguns julgam que têm, sabedoria ou bens materiais, é nada. Poeira.


Estive a ver borboletas. Lindíssimas, uma perfeição rara. Uma variedade que impressiona, tal a diversidade.

Uma vez no campo estava a andar -- aqueles meus passeios em silêncio em que tento não perturbar a harmonia de quem lá vive, pássaros, coelhos, lagartixas e todos os outros que não vejo. E ao meu lado, seguindo-me, duas borboletas brancas. Fico sempre num estado de quase êxtase quando me acontecem coisas assim, quase arrepiada, quase como se estivesse a ser abençoada por viver um momento tão maravilhoso. Seria deliberado da parte delas ou, tão silenciosa eu ia, me tornei invisível? Lembro-me de ter falado nisto a uma pessoa que se limitou a comentar: 'são raras as borboletas brancas'. Não sei. Nada sei de borboletas.

Outra vez, também in heaven, entrou uma borboleta lindíssima na sala. Já não me lembro como, morreu. Peguei nela e vi-a de perto: as cores, o desenho das asas, a elegância. Coloquei-a numa tacinha de casquinha. Anos depois ainda lá está, intacta, igual, perfeita. Apenas sem vida. E eu olho-a sem perceber que tragédia se abateu sobre ela que a deixou assim, com o corpo igual mas sem poder sentir o prazer de voar, de estar viva. E pergunto-me se todas as borboletas do mundo ficarão assim, intactas e eternamente perfeitas, depois de morrerem. Milhões e milhões de borboletas parecendo vivas mas sem vida? Não faço ideia.


Ao ver as borboletas, lembrei-me de uma das pessoas fascinantes que tive o privilégio de conhecer. Um melómano. Uma família de músicos. Um dos vários filhos é um grande músico. Tirando músicos, outras artes. Uma casa especial, neto de um vulto maior das artes lusas. Conversávamos muito. E ele falava-me de mundos que eu desconhecia. Já falei aqui dele. Tinha um hobby: fazia bird watching. E eu não conseguia perceber: mas fazem o quê? Fotografam? E ele sorria e dizia que não. Então o quê? E ele sorria e dizia que nada, apenas olhava os pássaros. Naquela altura eu não conseguia perceber que prazer se poderia ter em ir para montes e vales, rios e pântanos, à procura de algumas espécies de pássaros só para olhar para eles. E, no entanto, como ele gostava de o fazer e com que júbilo falava do que via.


Um amigo meu, por razões que aqui não vêm ao caso uma pessoa incomum, tem alguns gostos muito diferentes dos meus e um deles é que é caçador. Diz que, para ele, o prazer maior e que, nos dias antes, nem o deixa dormir  é o pensar em estar no campo, ao começo ainda de noite, depois a luz a nascer ao de leve, ele escondido a ver surgir o dia, a ouvir os sons da natureza, a perceber um bater de asas, um bicho que corre. Diz que nem é tanto o perceber a altura certa para disparar mas o sentir da natureza, o adivinhar os sons, os movimentos invisíveis, a luz sobre tudo. E eu, ouvindo-o falar, quase me esqueço que, a seguir, ele dispara a matar.


A idade tem-me trazido a serenidade necessária para aceitar a existência de múltiplas camadas de sensações e percepções e para me sentir disponível para procurar, no fundo de tudo, a sua suprema simplicidade, núcleo identitário de cada coisa, de cada bicho, de cada pessoa.

Não sei nem quero saber se são legítimas as contradições que habitam os seres e as coisas. Sei, ou julgo que sei, que a tolerância, harmonia, a bondade e a elegância ajudam a que valha a pena viver o efémero momento em que a alma habita o nosso corpo.

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E, a propósito de contradições e da beleza fugaz, Nabokov

Um olhar de perto


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Algumas fotografias mostram visões de muito perto de asas de borboletas.

Lá em cima Polina Semionova dança Butterffly, composta e tocada por Yasser Farouk

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domingo, fevereiro 19, 2017

Fred, Dindinha, Tom e eu



Nunca mais aparecia. Acabei por lhe ligar. Atendeu sonolenta. 'Sim...?'. ‘Então? Afinal não vens?’. Silêncio. Percebi que nem se lembrava. ‘Ah, pois foi, disse que ia aí. Mas adormeci. Outro dia’.

Fiquei irritada. Ali eu à espera e nada. Até tinha ido comprar um pão-de-deus porque sei que ela os adora e no fim nem ai nem ui. Isto antes de ontem a noite.

Hoje, tinha eu chegado de uma caminhada na praia e estava a preparar-me para vir aqui escrever qualquer coisa, já com uma roupa leve de estar em casa, desmaquilhada, despenteada, tocam à porta. Pelo intercomunicador ouço ‘Dindinha’. Quando abro a porta, fico sem pinga de sangue: era ela e o professor. E eu naqueles despreparos. Ele, vendo a minha atrapalhação, diz: ‘Não é a melhor altura…?’ mas já ela tinha entrado.

Fiz um gesto que entrasse e fui atrás, tentando compor minimamente o cabelo. Sentámo-nos na sala, perguntei se queriam tomar alguma coisa. Não quiseram. Dindinha disse: ‘Achei que devia apresentar melhor o Tomé’. Ele, com ar neutro mas onde detectei algum atrevimento, disse, ‘E eu achei que devia conhecer melhor a prima’. Até me senti corar.

Dindinha vinha de blusão de pele, calças largas, ténis. Depois despiu o blusão. Tinha uma camisa branca de renda, decotada. Ele pediu autorização e despiu também o blusão. 

Dindinha disse: ‘O Tom foi meu professor de História de Arte e a coisa não correu bem'. Ele sorriu ao de leve, ‘Eu não diria isso’. Ela continuou ‘Chumbou-me, continuo com a cadeira pendurada. E agora está a enquadrar este projecto. E está a dar-me aulas particulares, a ver se consigo aprender alguma coisa’. Estava muito séria. Ele fez um ar professoral, ‘Acho que temos feito alguns progressos’. Olhou para ela, cúmplice, depois para mim ‘Mas ainda temos pela frente um longo caminho a percorrer’. Embora o tom fosse sério, pareceu-me perceber ali, outra vez, algum descaramento.

Sem saber como intervir e sem perceber bem os contornos daquela conversa e, sobretudo, preocupada com a forma como estava vestida e desarranjada, senti-me a ficar cada vez com menos naturalidade.

Entretanto, Tomé tinha-se levantado e circulava pelas estantes. Depois, pegando num livro, aproximou-se de mim e disse: ‘A verdade é que ainda não sei como se chama’.

Dindinha e eu respondemos ao mesmo tempo: ‘Diana’.

Ele sorriu ao de leve, como se de uma observação fugaz se tratasse: ‘Prometedor, o nome’. Senti-me corar de novo. Se estava de namoro com Dindinha, que atrevimento era aquele que parecia estar com vontade de se manifestar? Fingi que não ouvi. Mas ele olhou para trás, com ar de quem sabia que eu tinha percebido o tom de malícia. Baixei os olhos, não tanto atrapalhada mas, mais, surpreendida.

Mas já ele prosseguia como se nada fosse: ‘Fred, bem que me tinhas dito que a prima era dada a livros’. E ela ‘Pois não disse? Acho que muitos nem é para ler’. 

‘Ah, uma consumista…'. Sentindo-me estupidamente tímida, disse: 'Prefiro bibliófila.'. Ele sorriu, 'Sim, sim. Desculpe-se'. Depois prossegiu, 'Mas se a prima não lê, lemos nós por ela’.

Pegou num livro de Ronsard que estava ao meu lado, procurou um certo poema e disse: ‘Vá, Fred, mostre que está a fazer progressos. Leia’

Dindinha descalçou-se, cruzou as pernas sobre a cadeira, bela no seu impudor. E leu:


Vamos, meu bem, a ver se a rosa
que esta manhã, ao sol, airosa,
a sua roupa abriu vermelha 
(...)
Pois se me credes, vós, meu bem,
enquanto a idade em flor vos tem
nessas primícias de verdura,
colhei, colhei a mocidade
que como à flor a velhice há-de
turvar a vossa formosura.

Enquanto ela lia, aparentemente sem perceber bem a escolha de Tomé, ele não tirou os olhos de mim.

No fim, ela perguntou-lhe: ‘Então Tom? Foi bom?’.

Ele passou-me a pergunta: ‘O que achou, prima?’. Um pouco incomodada com a situação, disse apenas: ‘Gostei, claro que sim. Mas talvez gostasse de ouvir algum silêncio entre as palavras'. E, de repente, apeteceu-me ser eu. 'Talvez o teu professor queira agora mostrar os seus dotes'. 

Pela forma como abriu os olhos, percebi a surpresa, 'Ah...'. Mas, de imediato, reagiu. Veio sentar-se ao meu lado e disse: ‘Preste atenção, Fred, veja como me vou esforçar por agradar à prima.’ Depois de uma leve pausa em que parecia estar a lembrar-se do que ia dizer, rectificou: ‘Agradar na leitura, claro’.

Dindinha levantou-se e veio sentar-se ao meu lado, cabeça encostada no meu ombro. Dindinha de um lado, Tomé de outro. E então, voz lenta, uma voz muito cava, ele disse, de cor:


Encostada a mim, Dindinha tinha deixado que a camisa lhe descaísse, os seios praticamente à vista. Do outro lado, muito próximo de mim, Tomé ora fixava o seio mais exposto dela, ora fechava os olhos, ora me olhava nos olhos. A voz macia, macia.

Quando acabou, passou o braço pela minha frente, quase me tocando, e com uma mão também muito lenta, compôs a camisa de Dindinha. Depois olhou para mim e perguntou-me: 'Então, prima, gostou dos meus silêncios... ?'. Perturbada, hesitei. Mas logo ele acrescentou: 'Para a próxima, prima, experimente fechar os olhos'. Senti um arrepio a percorrer a minha pele. Um arrepio silencioso, muito lento.

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Este episódio (o 3º) de Dindinha, que acabou de ser escrito, vem na sequência deste que se seguiu a este.

A tradução do poema 'Mignonne, allons voir si la rose' de Ronsard é de Vasco Graça Moura. A música lá em cima acompanha o filme Lolita e a leitura de Jeremy Irons refere-se ao livro Lolita de Nabokov.

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