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domingo, dezembro 20, 2020

Se tu soubesses

 



Separei presentes por agregado. Não há papéis a embrulhar. Venho desaderindo desse desperdício há algum tempo. Ficar com o chão cheio de pepéis e laços parece-me um nonsense de um tempo cheio de irracionalidades. Ultimamente já era na base do combate à ineficiência. Era abrir e logo alguém diligentemente colocava papéis num dos sacos maiores para se levar a seguir para o lixo. 

Este ano radicalizei, deixei-me disso em absoluto: não há papéis. Aliás, não se diz 'fazer figura de papel de embrulho'? Coisa a evitar, portanto. Pelo que me toca: nada. Mesmo os sacos onde as coisas estão a granel são reduzidos e tanta escassez também está a ser um bocado demais. Quando compro, trago os sacos mínimos indispensáveis e agora, a separar, faltam-me. Como não trouxe sacos da outra casa, agora foi uma dificuldade. Para resolver, maximizo a utilização dos sacos. Mas não é fácil acomodar presentes, por agregado, no mesmo saco. A minha filha, quando eu lhe disse que não há embrulhos, protestou, diz que faz parte, que é todo um conceito. Pois para mim não. Estou cada vez mais minimalista. E é em tudo.

Se já me incomodava gente que falava demais, a voz alta demais, as pessoas que se acham o máximo, se me incomodava o excesso,  agora, então, ainda mais.

Quando penso em como o excesso me incomoda, penso inevitavelmente naquela casa que visitei há algum tempo, uma grande moradia numa grande quinta. O piso térreo estava razoável, boas peças de mobiliário, confortáveis; mas, para meu gosto, o espaço estava um bocado preenchido demais. Agora a cave... A cave era, em espaço, tão grande quanto a casa: enorme. E cheia como um ovo. Difícil descrever, só vendo. Estava dividida em grandes espaços. Cada espaço tinha a sua função. Um era a adega. Esse era o mais normal. Outro espaço era para relógios. Certamente centenas: de parede, de mesa, de pé, de pulso, de bolso, de todos os géneros e de toda a espécie e feitio. Outra era a dos comboios: indescritível. Montes, vales, cidades, carruagens de todos os tipos, máquinas, coisas por montar, embalagens ainda intactas, tintas, materiais para fazer montes e vales. E, de divisão em divisão, uma pessoa ia ficando de queixo caído. Um mundo quase mágico tal a quantidade de raridades e tal a inesperada profusão de tudo. Grandes mesas para se montar coisas em cima, bancadas, estantes. Saí de lá esmagada. Até dormi mal. Dali poderia ser material para várias salas de museu. O meu lado prático só fazia com que eu me interrogasse: mas será possível limpar o pó a isto ou lavar o chão? Parecia-me impossível e, portanto, só pensava que haveria de chegar o dia em que não se conseguiria dar passo ou respirar. Aflorei o assunto mas ele sossegou-me, que, sem portas ou janelas para a rua, só com respiradouros, ali não entrava pó ou sujidade. Não sei. Só sei que quando vejo espaços tão cheios de tanta coisa sinto até algum medo. Por exemplo, se se perder o rasto a alguma coisa como voltar a encontrá-lo? Dá a sensação que as coisas acabarão por devorar as pessoas.

Portanto, voltando aqui às minhas coisas, não há embrulhos, não há desperdício. O pior é quando não há mesmo nada. Comprei um livro para uma pessoa a quem não posso passar-lhe simplesmente o livro para a mão. Felizmente a simpática livreira fez questão me me dar um envelope de papel. O pior é que agora não encontro fita-cola para fechar o envelope (não trouxe da outra casa e aqui ainda não precisei, não comprei) nem tenho nenhum saco onde meter o envelope aberto com o livro lá dentro. Fica mal e o pior é que não sei como resolver.

A minha filha disse que, se é assim, a granel, sem ar de presentes de natal, então que não me esqueça também de manter os preços como geralmente acontece, um clássico. (Esqueço-me de tirar as etiquetas). Fez bem em lembrar pois hoje fui ver, tive que tirar tudo dos sacos, e grande parte tinha mesmo o preço. Acho que já tirei tudo.

Este ano também não fiz as fotografias que ofereço desde sempre a toda a gente. Estão dispersas por três computadores, outras nem devem estar em nenhum (um computador avariou-se, tive que usar um outro e, mais tarde, ainda outro) e também não vou à Fnac para as fazer nem estou virada para as mandar fazer online. Talvez quando tiver mais tempo livre me ocupe disso. Mas é outra coisa: aquelas festas de anos ou momentos de ajuntamento em que nos juntávamos todos este ano não aconteceram. Enquanto uns e outros conversam e riem e brincam, eu cirando na maior transparência e, sem que ninguém dê por mim, vou fotografando. Mas tudo isso é coisa de um outro tempo. 

Tenho saudades. Ando com saudades.

Por exemplo, tenho saudades de passear. Gosto muito de estar em casa mas também gosto muito de passear. Gosto muito do meu país, gosto de andar a descobrir cidades, vilas, aldeias, rios, serras, hotéis, restaurantes, igrejas, jardins, livrarias, cafés. Espero bem que, daqui por um ano, já tenha conseguido fazer alguns passeios, juntar pessoas cá em casa, andarmos juntos a conversar e a rir, sem máscara, sem termos que nos distanciar uns dos outros, poder fotografar a alegria de estarmos juntos.

Ano tramado este. Nem me apetece olhar para as fotografias que tenho feito e que mostram o andar lento do tempo. Flores, árvores, pedras, sombras. E tantas ausências. E uma perda muito grande. E várias outras mais pequenas. Também ano de mudança, de viragem. 

No trabalho, dizem-me que nunca uma tal mudança tinha alguma vez sido levada a cabo. Antes do salto, apresentei e, ao contrário do que é costume (alguma leveza misturada com alguma distração), neste caso o oposto: tudo de olhos postos, tudo com ar estupefacto. No final muito receio pela dimensão da reviravolta. Um dizia: será que não vamos atirar-nos para fora de pé? Por dentro penso: será que um tsunami destes é gerível? Mas não conheço outra forma de fazer as coisas, só esta, a de começar de novo, pôr o passado para trás das costas, olhar para a frente, querer o melhor, avançar nesse sentido, peito dado às balas. Uma vontade de mudança na minha vida que está a levar a uma mudança gigante na vida de muita gente. Um diz de mim: leva tudo à frente. E concretiza: leva o mundo à frente. E eu ouço e, por dentro, desvalorizo. Penso que é um pequeno mundo, coisa à minha escala, mas que o mundo da gente, o nosso pequeno mundo, é o que temos de maior.

E é uma coisa curiosa, esta. Um exemplo de como a vida resulta da conjugação aleatória de acasos. Se num dado dia não tivesse acordado com uma vontade irreprimível de mudar de trabalho, de empresa, de casa, de tudo, a esta hora provavelmente toda a revolução que nesta empresa está em curso e que vai catapultar muitas pessoas -- e passar por cima de outras -- não teria acontecido. Não sei se é curioso, se é assustador. Mas é o que é.

Quando comecei o post não sabia sobre o que iria escrever. Estava apenas com aquela sensação de ter saudades sem saber bem de quê, nostalgia talvez. Saudades da vida que tinha, saudades de quem se foi, saudades em geral. Nem sei.  Então comecei por ir ao youtube ver se encontrava alguma canção que se chamasse miss mas miss, em si, é vago, dá para tudo. Então escrevi 'miss you' mas quis que soasse como me agradaria que soasse. A dos Rolling Stones não tem nada a ver. A Etta James também não. Encontrei a Nina Simone a interpretar: If you knew. Pareceu-me estar no tom. 

Almeida Júnior, Frederic Leighton, nas duas seguintes, e, por fim, Artemisia Gentileschi acompanham na pintura. Mulheres pensativas, melancólicas, nostálgicas, com a cabeça sabe-se lá onde.


E agora não sei que nome dar a este post pois não escrevi sobre o que me apetecia mas sim sobre o que ocupou esse espaço. Talvez 'saudades'. Ou, então, o título da canção. Não sei. Tanto faz, não é?

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Desejo-vos um belo dia de domingo

sábado, janeiro 18, 2020

Não concebo que estejas ausente.
Julgo-te longe e distante.
[A palavra ao LS, Leitor do Um Jeito Manso, e Poeta]





O LS é um generoso Leitor que muito estimo e de quem recebo poemas, frequentemente lidos pelo próprio. 

Creio que ele não se importará da minha inconfidência: apetece-me partilhar com os demais Leitores deste meu jornal não apenas os dois poemas que hoje recebi bem como parte do texto que os acompanhava:
Sei que foge, a sete pés, dos estados melancólicos. Melhor, em si, a luz e alegria de viver interditam a ligação osmótica com a sombra e a nostalgia.
Apesar disso...
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Não concebo que estejas ausente
Num outro lugar, mesmo que inventado
Na substância que a invenção consente:
Foz de rio, mar navegado,
Recanto escondido no pensamento,
Caminho feito ao arrepio,
Rasgado no grito, aberto no lamento,
Coado na vastidão do frio.

Me dizem da irremediável partida
Algures num já distante dia
Com vozes caladas de despedida
Asas quebradas pelo vento,
Urgências que nenhuma força adia.
Me dizem da tarde inacabada
Do rasteiro voo de um tormento,
Vestígios de um débil respirar
Na voz quase apagada
Ímpio chicote vergastando o ar.
Me dizem e mesmo assim não acredito
Continuo a encontrar-te por aí
São falsas notícias para me deixarem aflito
Quem sabe, tentarem que me esqueça de ti.
Companheira nas mesmas viagens,
Como sempre imprevistas e casuais
Acontecidas no largo rio sem margens,
Nos gestos abrangentes e totais.
Não me deixarei pelo desespero dobrar,
Talvez chegues novamente com o chegar
De alguma, ainda que longínqua,  alvorada
Na minha memória, apesar de tudo, intocada




Julgo-te longe e distante,
Perdida num sítio indefinido do espaço,
Algures em algum levante
Onde o sol desenha a rota do seu passo,
Galopante,
Em redor do teu abraço.
Mas que sei eu de distâncias,
De enigmáticas lonjuras?
Das ressonâncias
Do caminhar nessas ruas escuras,
Da conversão do breu
Em rituais de rutilâncias
Onde a luz, de todo, ensandeceu?
Como entender o substantivo
Lugar, algures no infinito,
Onde fica cativo
O eco do teu grito?
Resta-me apenas esta dormência,
Esta estranha inquietude
Negando a tua ausência,
Forjando a plenitude
Deste incessante tateio
Sobre e sob a pele,
O abraço e o enleio
Do indomado e liberto corcel.


Não que as palavras do LS precisem de imagens mas isto é coisa minha: gosto sempre de as ter, tal como gosto de música que, neste caso, vem pela mão do pianista Sviatoslav Richter que interpreta Bach sobre filme Nostalgha de Andrei Tarkovsky. As pinturas que ilustram a melancolia são, respectivamente, de Olaya Caldera, Degas, Louis Jean François Lagrenée e Edvard Munch.

E obrigada, LS, pelos seus poemas

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E até já.

quinta-feira, novembro 07, 2013

O que é a melancolia? Veja, meu Caro/a Leitor(a), se é um melancólico/a ...... [Claudio Magris ajuda a perceber no seu livro 'Alfabetos]



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Ron Mueck (genro de Paula Rego) - Big Man, 2000

Para o melancólico, as coisas são enigmáticas, desvinculadas, cada uma isolada em si mesma, privadas de autêntico significado porque ele não as vê com aquela afectividade, aquele desejo e aquela confiança que lhes conferem calor, tornando-as familiares, amigas das mãos que as tocam e as trabalham, enquanto elementos da vida - como as estações do ano, em cuja cíclica repetição podemos inserir-nos com harmonia. Para o melancólico, pelo contrário, tudo isso se resume num inútil florescer e desvanecer.

A melancolia - observava Goethe - é a incapacidade de amar a repetição que pauta a nossa existência (as estações, o dia e a noite, os afazeres e hábitos quotidianos, o suceder das gerações) e de usufruir das inumeráveis e surpreendentes variações que cada aparente repetição diária  - na realidade sempre nova e aventurosa - contém. 

A melancolia percepciona pelo contrário o fluir e o repetir-se como uma infinita monotonia, o destilar de segundos e minutos sempre iguais no vazio. 


Jean-Louis-François Lagrenée, dit l'Ainé (1725-1805)
-'la melancolie'-huile sur toile-1785
Paris-Musée du Louvre
A melancolia é uma tristeza que não sabe precisar o seu objecto e a sua causa; acusa intensamente a perda de algo, sem poder dizer o quê.

A melancolia não só não pode definir a falta de que se sofre, como nem quer fazê-lo, porque se compraz e se nutre dessa perda indefinível e da sua indefinição, acrisola-se no seu próprio voluptuoso tormento; o tormento não quer fazer o luto, mas postergá-lo sem limite.

Ainda que tenha raízes antigas e implicações religiosas, além de uma inseparável dimensão clínica, a melancolia é sobretudo uma categoria, um modo de ser (...)


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                                                                  Escutamos aluimentos de felicidade.
                                                                  A arte de quem perde
                                                                  faz um eco impossível de esconjurar.

                                                                  Dentro de quatro linhas,
                                                                  alguém espera, o tempo dilata-se,
                                                                  uma dose de melancolia impõe-se.


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O texto em itálico é parte da crónica 'Melancolia e modernidade' integrada no livro 'Alfabetos' de Claudio Magris. A música é 'Cantus In Memoriam Benjamin Britten' de Arvo Pärt sobre imagem de Tilda Swinton em 'War Requiem' de Derek Jarman.

O poema é 'Portugal, durante a derrota' de Luís Quintais in 'depois da música' e a mulher de aparência melancólica é Cléo de Mérode que afinal não levou uma vida nada melancólica.


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