Escolho uma música que, com uma certa pena, penso que pode parecer até banal. Faz parte daquilo a que se chama, também com banalidade, o imaginário de muita gente. Uns acordes que rasgam a alma de quem um dia se sentiu perdido, de quem, para sempre, se desencontrou do seu destino. E quem ouve, mesmo que não tenha vivido histórias de perdição, sente a dor e a solidão de quem se detém tentando encontrar o caminho de volta a uma casa onde um dia sonhou ser feliz.
Esta terça-feira, na Avenida de Paris, passou à frente do carro, na passadeira, uma mulher alta, magra, com um vestido preto, até aos pés, sem mangas, e o vestido ficava-lhe solto apesar de estreito, e ela parecia vinda de um outro tempo. Tinha o cabelo ruivo apanhado mas de forma solta e uns brincos muito grandes, em vermelho. E caminhava como se não tivesse pressa, como se não tivesse para onde ir. Todos os outros andavam rapidamente, excepto aquela esfíngica mulher. Fiquei a vê-la. Não sei se parecia perdida ou se ia apenas a pensar ou a sentir o prazer de existir. Pela forma leve como andava, poderia pensar-se que seria bailarina. Ou alguém com asas na alma. Ou alguém que caminhasse nua.
No espaço em que consegui vê-la, parecia ausente.
Depois segui e certamente não mais a verei. Assim é a nossa vida. Cruzamo-nos com pessoas que não nos vêem ou que nós não vimos, seguimos por outros caminhos, perdemo-nos sem nunca nos termos encontrado. Estranhos, invisíveis, para sempre desconhecidos. Insignificantes pontos de luz que se cruzam por acaso e que seguem o seu caminho como se nunca tivessem coincidido no mesmo espaço, no mesmo tempo.
Espanto-me quando vejo as marchas gay. Tanta gente. Pode acontecer que alguns que ali estão sejam apenas apoiantes mas, quando as câmaras se chegam, vêem-se muitos casais abraçados, a beijarem-se. Tantos. Vejo também cada vez mais casais no seu dia a dia, a céu aberto, sem esconderem a sua orientação sexual. E penso como deve ser libertador para eles poderem fazer o que a maioria faz: manifestar o seu afecto. E como deve ser-lhes reconfortante a indiferença de quem com eles se cruzam. E imagino como, pelo contrário, deve ser horrível viver tendo que esconder uma coisa que é da própria natureza, viver uma vida de mentira, recear os olhares de censura ou de chalaça dos outros, recear ser segregado, rejeitado.
Não sei que percentagem da população é homossexual mas estou em crer que não é tão marginal quanto se possa pensar e estou também em crer que muitos ainda não são francamente assumidos. Talvez a gente mais nova já se sinta mais liberta e são esses que mais se vêem de mão dada ou, mesmo, a darem um ou outro beijo, mas muitos que hoje já são pais e mães de família imagino eu que não tenham coragem para se assumir. Por exemplo, desde há vários anos que convivo com um que todos achamos que é completamente gay e, no entanto, é casado, faz-se de muito hetero e até passa a vida com anedotas e gracinhas sobre gays. E sei de uma que é lésbica, assumida na sua vida privada, e que, no entanto, na sua vida social ninguém desconfia nem um pouco da sua orientação. A duplicidade a que isso obriga deve ser arrasadora. Mas, com eles, nunca falamos no assunto, é tabu.
E se hoje se fala muito em inclusão a propósito de deficiências e se dão passos importantes no sentido das acessibilidades e da adopção de políticas de recutamento abertas a pessoas portadoras de deficiência, a verdade é que, em privado, na primeira oportunidade, parodiam-se alguns possíveis trejeitos ou ampliam-se as suspeitas das simpatias gays.
Não quero com isto dizer que um homossexual seja deficiente e se aqui faço esta ressalva é porque sei como é fácil uma pessoa ser treslida. Uma pessoa homossexual não é deficiente. O que quero dizer é que enquanto a deficiência tende a despertar o lado caritativo dos decisores
(e digo isto consciente do que estou a dizer pois se há um lado de abertura mental ou de consciência social, a verdade é que há também muito um lado que é isso mesmo, caritativo, e isto porque há muito, entre os decisores, a ideia de que o poder de que dispõem os torna invulneráveis, ou seja, superiores, disponíveis para dar uma 'mãozinha' aos seres inferiores),
a homossexualidade é ainda vista, por muita gente, como uma perversão, um comportamento desviante, um traço de personalidade que predispõe os homossexuais à submissão, a serem alvo de gozo, humilhados.
Já aqui o disse mil vezes e é um facto. Sou heterossexual irredutível e, desde que me conheço, que me sinto atraída pelo sexo oposto. Sempre me conheci em estado de enamoramento por meninos primeiro pequeninos e depois maiorzinhos. Nunca senti qualquer atracção por nenhuma mulher e, se penso na possibilidade de ter algum contacto sexual com uma, involuntariamente sinto alguma aversão física. Mas isso sou eu. Se calhar, teria uma vivência mais rica se fosse bissexual. Mas, lá está, isso não é coisa que se escolha.
E é por ter muito claro que isto é coisa da natureza e/ou das circunstâncias de vida que, aqui, não me canso de falar no direito dos homossexuais à sua vida vivida em plenitude, na companhia de quem escolherem, sem terem que esconder ou, de alguma forma, pretender mitigar a sua orientação sexual. Toda a gente tem direito a viver feliz e em liberdade.
E estou a escrever isto porque vi umas fotografias na Vogue italiana e apeteceu-me tê-las aqui. São muito bonitas.