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segunda-feira, maio 01, 2017

Eu vi um passarinho. Mas não cantava porque era de pedra.





Era uma vez um passarinho. Pousou em cima de uma pedra grande ali às portas de uma igreja pequenininha. E eu pus-me a olhar a ver se percebia que passarinho era ele. E depois, como não percebi, pus-me a olhar para a pedra, a ver se percebia se ele estava bem ali e achei que não, que haverá de lhe faltar algum conforto, parece que falta um assento àquela pedra.

Quando eu era pequenina, havia uma pedra grande ao pé da casa da minha avó, mas não tão grande quanto a do passarinho. Saía do chão, tinha uma leve elevação à frente e outra atrás e, para mim, era como se fosse uma mota igual à dos meus tios. Eu gostava de andar de mota mas os meus pais não queriam que os irmãos mais novos me levassem. Mas eles, por vezes, desobedeciam e, às escondidas deles e das minhas avós, levavam-me. Eu ia atrás, agarrada a eles, se o passeio fosse só na rua, ou à frente, eles dobrados sobre mim, se o passeio fosse maior. Na altura, não devia haver isso dos capacetes. Eu, pelo menos, não me lembro de eles me porem capacete. Agora que escrevo, tenho ideia que talvez eles tivessem mas devia ser grande demais para mim. Lembro-me bem, isso sim, dos meus cabelos compridos a voarem e do ar frio que tanto me agradava quando me varria o rosto, as pernas, os braços. 

Então, porque eu gostava tanto de passear, eu ia chamar o meu grande amigo, inseparável amigo, um ano mais velho que eu e um deus de paciência, e fazíamos de conta que íamos passear de mota. Sentava-me atrás dele -- a pedra era plana entre as duas elevações, fazia um banquinho mesmo bom e à nossa medida -- abraçava-o pela cintura e imaginava que íamos por montes e vales, o vento a fazer voar o meu cabelo, a levar-me para longínquas paragens. Nessa altura eu era muito conversadora, passávamos tempos naquilo, eu fazia perguntas, ele respondia, eu contava alto o que a minha imaginação ditava e ele escutava.

Era tímido e reservado, ele. Eu era alegre, namoradeira, desde pequena assim. Fazia-lhe ciúmes, fazia de tudo para ele reagir, para ele se zangar, para ver se ele se manifestava, se ele pedia para eu não ser assim. Mas ele nunca se zangou, nunca se queixou. E eu não conseguia estar longe dele. O nosso convívio interrompeu-se por volta dos meus dez anos. Voltei a vê-lo uma ou duas vezes depois disso, ainda jovem adolescente. É que a minha avó mudou de casa e os pais dele também. A última vez que o vi foi no velório da minha tia. Eu estava à porta da igreja entre um grupo que conversava e vi chegar um homem moreno, já um bocado grisalho, e muito alto, encorpado. Ele veio ter comigo. Disse o meu nome, no diminutivo. Eu olhei para ele, perturbada. Era o pai dele. Pensei: 'Não pode ser, já morreu. Ou... não morreu ainda? Mas, se está vivo, teria que ser da idade do meu pai e não apenas um bocado mais velho do que era quando eu o conhecia'. Fiquei sem saber quem podia ser. Ele apresentou-se. Fiquei bloqueada. Não podia ser. O meu amigo não podia estar assim, um homem já daquela idade, tão igual ao pai. E como tinha crescido. Ele disse: 'Eu conheci-te logo, o teu sorriso é o mesmo'. Com ele vinha uma mulher, uma senhora da idade dele. Ele apresentou-a: 'A minha mulher'. Pensei: 'Nunca andará de mota com ele.'. Ela, simpática, disse: 'Finalmente conheço-a. Tanto que tenho ouvido falar de si'. Eu acho que não fui capaz de dizer nada. Provavelmente nem fui capaz de sorrir. Mas, como estava abalada pela morte da minha tia, talvez a minha perturbação tivesse passado por ser tristeza. E era.

Ele ainda ficou por ali, penso que a tentar conversar. Mas acho que não fui capaz. A ocasião não era propícia a que eu lhe perguntasse se se lembrava dos nossos passeios de mota, montados naquela pedra, eu abraçada a ele. Ou das tardes que passávamos a conversar na cabana que o avô lhe tinha construído ao fundo do quintal. E a minha avó a comentar com o avô dele, 'Mas que é que estas duas alminhas tanto têm para conversar...? Horas a fio...'

Naquela altura, ele era um menino muito inteligente, tinha recebido o prémio de melhor aluno do país. Sempre reservado, nunca o evidenciando, assim se manteve enquanto estudou, um aluno brilhante. Fui sabendo disso pela minha avó, assim como fui sabendo que, enquanto eu ia alegremente namorando, ele se mantinha sozinho. 

Podia ter tido uma 'carreira' de sucesso, ele. Trabalhou na banca, teve funções de responsabilidade. Mas, há algum tempo, uma depressão séria levou-o a largar tudo antes de tempo. Presumo que tenha recebido uma indemnização, talvez boa. Comprou uma quinta e, segundo me conta a minha mãe, é lá que passa grande parte dos dias, sozinho. De vez em quando vai à casa na cidade, de vez em quando a mulher vai lá ter com ele. A minha mãe diz: 'No fundo, é do que ele sempre gostou'. Deve por lá andar a trabalhar a terra, se calhar a cuidar de animais, ou, então, a ler, a ouvir os passarinhos. Não sei de nada disso de anjos mas penso que tomara que um anjo o guarde. Quanto mais não seja, o anjo das boas memórias.

Mas, enfim, nem sei a que propósito veio isto.

Ah, sim, já sei. Mas aquela nossa pedra era mais pequena, com umas curvas suaves, e toda a pedra era mais macia que esta em que o passarinho de pedra pousou.

Nem sei porque é que me deu para me pôr com estas recordações. Na verdade, nem sei se ainda existe aquela pedra ou, sequer, aquela casa da minha avó. Provavelmente não, já nada. Mas também não quero ir lá ver. Prefiro apenas recordar -- enquanto aguardo que os passarinhos comecem a cantar aqui na varanda. 

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E agora permitam que vos convide a continuar o passeio por esta bonita cidade. Desçam, por favor, que primeiro, iremos de visita ao Henrique Pousão e depois até à da Florbela Espanca
Pensei que ainda iria visitar o Bento de Jesus Caraça mas o safado deste passarinho desviou-me. Talvez amanhã (e tentarei, como hoje, fazer orelhas moucas às rolhas que o láparo anda a pedir que lhe enfiem -- pela boca, disfarça ele).
Mas desçam, por favor.
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quarta-feira, setembro 14, 2016

Vá lá, UJM, só mais um post com título parvinho, está bem...?
Mostra lá se és capaz de parecer um drone ou de nos pôr à procura do Wally... Vá lá...


Garantido. Hoje estou com o freio nos dentes (o que, em estando eu a escrever, quer dizer que estou de rédea curta nos dedos). Ontem alarguei-me mas em minha defesa vos digo que, estando eu sur la mer, natural é que me atire para fora de pé. Mas hoje tenho que me conter a ver se me sobra tempo e disposição para trocar convosco uns leros sobre o cherne Barroso. Aquilo ali é peixe de olho encarnado e guelra já castanha, já fedendo das entranhas, muito fénico, e eu estou mais para peixe fresco, fresquinho da lota. Mas noblesse oblige e não posso deixar os meus créditos por mãos alheias. 

Portanto, a ver se não gosto as pilhas com passeatas e maresias. Mas, a bem da minha vocação de blogger voyageuse, viagens geralmente também de rédea curta, deixem que vos mostre algumas das imagens do dia. 

Mas, se estiverem de acordo, vamos com o Mar Estranho do Rodrigo Leão.



Na praia





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A ver as vistas





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Caminhando rente ao infinito azul

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E o mar, imenso, de cores belíssimas, com uma força avassaladora





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As fotografias foram feitas na Zambujeira, no Cabo Sardão e em Milfontes.

Diziam que ia estar uma tempestade do cacete, chuva, frio e trovoada. 
Qual quê...? Um dia azul, lindo.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma quarta-feira muito feliz.


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terça-feira, setembro 13, 2016

Então, mas ó UJM, isso por aí é só boa vida... ou há quem trabalhe?
[ de uma série de 11 posts com títulos parvos]


Pronto, agora que já sabem que, a bem dizer, praticamente não leio uma página que seja de um livro há mais de um dia, vou começar a mostrar porquê.

O porto de pesca é, diria eu, de alto risco. Entre rochedos de arestas bem afiadas e com um mar bem batido, os barquinhos que, vistos cá de cima, parecem frágeis, entram na zona que dá acesso à rampa. Aí, com ajuda de camaradas de arte, são içados pela rampa acima.




Fotografias feitas em momentos diferentes, numa manhã que acabou envolta em névoa.

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Muito se arriscam os pescadores e muito esforço físico é despendido para que o peixe chegue fresco, a saber a mar, à mesa de quem, como eu, se limita a admirá-los de longe.

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Bolas, ó UJM, gazelas...?
Mas então trocaste as gaivotas por gazelas, ó tu, femme infidèle...?
[5º de uma série de 11 posts com títulos parvos]


Ná, nada de conclusões precipitadas... as gazelas eu posso achar que são meigas, elegantes e serenas, posso gostar de vê-las, posso ter vontade de sentir o seu pêlo que deve ser tão macio. Mas com as gaivotas é outra coisa. As gaivotas são irmãs, se não de sangue pelo menos de coração. Das gaivotas eu não posso estar longe, não. Temos sempre muita impressão a trocar. O ar pode estar carregado de maresia, fresco e húmido, e o mar pode estar arisco, frio e revolto, que eu hei-de largar a areia seca até que esteja perto delas. Ao lado delas. Ou sou invisível ou sentem-me como irmã. Aproximo-me até onde lhes posso tocar e elas não se mexem, tal como se eu fosse uma delas. E sou.



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E é descer, caso queiram pisar terra seca e fazer uma festinha a uma gazela.

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Desculpa lá, ó UJM, mas praia sem pescadores à linha e sem surfistas não é praia...
Não me digas que nem um? Ou fugiram com medo do mar...?
[ 7º de uma série de 11 posts com títulos parvos]


Claro que havia, ora essa. Praia que é praia acolhe todos, especialmente os que não passam sem o mar.

As fotografias podem trazer a névoa e a maresia colada a elas mas aqui fica a prova provada que faça chuva ou faça sol, esteja o mar grande ou o mar pequeno, cá estão eles, os amantes do mar.




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E não desesperem, meus Caros Leitores, com a quantidade anormal de posts com títulos parvos, que o melhor está para vir. Já vos conto por onde é que tenho andado.

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Ó pá, UJM, praias são praias, tudo a mesma coisa.
Engraçado era se descobrisses uma praia em que as pessoas andassem com os pés no ar....
[ 8º de uma série de 11 posts com títulos parvos]


Ah era...? Então vejam lá. 




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Peçam coisa mais extravagante, ok...?

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É pá, ó UJM, já que tens a mania que consegues resposta para tudo, vê lá se consegues agora para esta:
mostra lá, se és capaz, um bebé a entrar sozinho pelo mar adentro...!
[ 9º de uma série de 11 posts com títulos parvos]


Ah, ah! Claro que sou. Um bebé de gatas, de fralda, todo corajoso a avançar a caminho de um mar revolto...? Ó pá, é canja, é canja, é canja de galinha!

Cá está ele! O super-bebé!


Sem photoshop, sem truques, sem nada na manga. Um surfista em potência, um destemido baby.

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Caraças, UJM, mas essas praias são um perigo! Por Cristo!
E não há lifeguards nem nada para algum salvamento que seja necessário?
Mas daqueles bem jeitosos, já agora...?
[ 10º de uma série de 11 posts com títulos parvos]


Ó meus amigos, já sabem que não quero que vos falte nada. Nadadores-salvadores? Foi isso que pediram? Mas jeitosos, é? Daqueles à hollywood? É isso...?

Ok, já sabem: é só pedirem.

Cá estão eles.


E vejam lá, se quiserem tenho mais. É só dizerem. Encarrapitados nas rochas, bronzeadinhos e vestidinhos à maneira, prontos para deitar a mão a quem esteja em apuros.

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Olha lá, ó UJM, assim não vale...
Mas assim não dá para perceber como é que é essa praia...
Não há aí uma fotografia panorâmica para se ver a praia toda?
E isso é cá? Em Portugal?
[ 11º de uma série de 11 posts com títulos parvos]


Então não...? Os vossos desejos são ordens para mim. Uma vista panorâmica? É que é para já. E não uma mas várias.

E para quem pensa que ir para a praia é estar no meio de uma multidão de marabuntas, a fritar ao sol, todo coberto de areia -- sim, porque há quem pense -- aqui fica a prova provada de que nem sempre isso é verdade. Haverá dessas para quem gosta. Pas pour moi que sou bicho do mato. Ou melhor, bicho do mar.

Estas fotografias são todas da mesma praia porque as outras foram fotografadas debaixo de neblina mas, com excepção de uma, são muito deste género.










E em Portugal, com certeza, como atesta a bandeira que um corajoso conseguiu colocar no alto de um rochedo.

As fotografias acima foram feitas na Zambujeira do Mar. A dos barcos de pesca, lá num post mais para baixo, na Azenha do Mar. Outra muito bonita e parecida é a do Carvalhal. Diferente é a de Odeceixe, aqui abaixo.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.
(E rezem para que eu perca o gás, ok?)

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segunda-feira, setembro 12, 2016

Veneza pode esperar
- para já, fico-me por aqui, no meio do nada, envolta em paz e neblina


Ao princípio o sol estava brando como é costume em Setembro. De dentro, enquanto ia lendo, eu ia olhando os verdes e os azuis, os montes ao longe, a paz absoluta, o silêncio


Mas o Outono parece já ter chegado a este lugar. Ao fim da tarde, desceu sobre os montes uma lenta neblina. Fui vendo as cores a esbaterem, os verdes e azuis foram ficando platinados. Depois os montes esfumaram-se em quase branco, envoltos em tule. E eu encantada, aconchegada na minha tranquilidade


Mais tarde, já noite, do mar subia uma maresia forte e uma névoa com perfume de limos chegava cá acima.

Pensei que não conseguia fotografar, tão escuro estava. Só a espuma das águas embatendo nas rochas deixava ver alguma luz. Quase às cegas, tão escuro estava cá em cima, disparei. 

Agora, ao ver as fotografias, admirei-me: lá está o mar vestido de noite, como se a névoa tivesse desaparecido. 


Aqui, neste lugar, tão longe de tudo -- quando há pouco tempo pensava que, por estes dias, estaria a mais de dois mil quilómetros -- digo, para mim, que Veneza pode esperar.

E se, a esta hora, lá estivesse, talvez não estivesse a vê-la tão linda como aqui abaixo pode ser vista. Veneza, a Sereníssima, aparece aqui mágica. O filme é do veneziano René Caovilla, com realização do romano Oliver Astrologo e do seu irmão Nils, feito com recurso a um drone, e foi apresentado na 73ª Mostra de Veneza. 




Espero que o vosso dia esteja a ser também tranquila e feliz.

E desejo-vos, meus Caros Leitores, uma semana muito feliz, a começar já por esta segunda-feira.

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segunda-feira, fevereiro 08, 2016

Eu e a fotografia (tal como tanta coisa nesta vida)
- Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades


No post a seguir eu mostro as fotografias que trouxe dos lagos de Alqueva para oferecer à Leitora Rosa Pinto. Mas, ao colocá-las aqui, pensei que ela, que conhece a vastidão e beleza do lugar, é capaz de ver o passo lento dos animais, a dança leve da folhagem das árvores, e recordar o cheiro e ouvir os sons que eu não soube guardar dentro das fotografias. Mas, quem não conheça, vai ficar a pensar que o Alentejo é um postal ilustrado e que não há flores cheirosas, ou que os pássaros escondidos não cantam ou que, estando a gente a espreitar os horizontes, o vento não vai pegar no nosso cabelo.

E fiquei a pensar que não sou uma boa fotógrafa. Voltei a ir espreitar as minhas fotografias. Fui à procura do que não se vê. 

E encontrei o pequeno cogumelo, quase invisível, que o meu marido me mostrou: fotografei-o, frágil, elegante, entre ervas rasas e coloridas. Mas o que eu quis fotografar foi que não tinha visto uma coisa tão bela. E que isto acontece a toda a hora: coisas tão sublimes e perfeitas e a gente não as vê. Andamos à procura não se sabe de quê e não reparamos no que está junto aos nossos pés, pronto para encher o nosso coração de alegria e cor.


E depois fui buscar as pedras que estão à beira de água e que eu, de longe, não percebia bem o que era porque, ao lado, estava a ver outras pequenas manchas sobre o verde e não sabia se era a mesma coisa. Foquei, aproximei-me, e vi: eram mesmo pequenas rochas brancas pastando junto à água.


E as ovelhas gordas e as cabritas também pastando, as rochas e as ovelhas pacificamente pontuando a branco a paisagem, e eu pensei que devia levar as ovelhas a pastar para o pé das pedras, para as pedras ensinarem às ovelhas que é bom passear à beira de água ou, então, dizer às ovelhas que chamassem as pedras para se aconchegarem umas junto às outras nos dias de frio ou se abrigarem nas tardes de inclemente soalheira. E foi isso que eu quis fotografar. Mas não foi só isso. É que pensei que a gente dá mais valor aos animais que às pedras mas os animais são perecíveis, dependentes da vontade de outros e as pedras não, aprenderam a ser intemporais, seres independentes e imperecíveis. E foi também esse pensamento que eu quis fotografar.


E depois baixei-me para sentir as flores amarelas, perfumadas, frescas, e vi uma torre entre a folhagem platinada da azinheira e o céu por trás, posto ali para que o fundo fosse azul e a harmonia mais perfeita. E os pássaros cantavam e eu não os vi porque eles sabem que não precisam de se mostrar, estão bem assim, cantando felizes no seu anonimato. E então eu fotografei o canto de pássaros que não via, e o perfume das flores que douravam o chão, e a terra macia debaixo dos meus pés. E pensei que há recantos onde a paz é absoluta e foi esse absolutismo que eu quis fotografar.


E no meio do campo vi uma rocha quase igual a uma que havia junto à casa da minha avó e onde eu me montava atrás do Tó, um menino um ano mais velho que eu e que me levava a andar de mota como eu gostava que os meus tios me levassem, o vento a dar nos meus cabelos, as curvas quase a fazerem-me voar, e eu abraçada às costas dele para não me perder na viagem. E então fotografei a rocha mas não foi a rocha que eu fotografei, foi a memória da minha infância e os sonhos que eu partilhava com o meu pequeno amigo que se fez grande e que um dia, bem mais tarde, no enterro da minha avó, confundi com o pai dele.


E vi uma árvore que deitava água e que parecia uma fonte e as gotas caíam leves sobre a água do pequeno lago e eu fiquei ali a olhar e a perceber como é que uma árvore era uma fonte e espreitei e fiquei a ouvir a subtil música das gotas de água e foi isso que eu fotografei, o som das gotas que caíam da árvore que parece uma fonte encostada a um muro, ao pé de um castelo de onde se via um vasto horizonte a toda a volta. E as gotas quase não se ouviam e eu quis guardá-las dentro da fotografia, como se a fotografia pudesse ser quase uma caixinha de música e eu a menina que depois se ia sentar a olhar a árvore de onde se soltam notas de música, líquidas e cantantes como gotas de transparência e luz.


E fiquei a pensar que é o que incompreendo que mais me seduz e que sou assim em tudo. Até com as pessoas, e mesmo com as que me incompreendem a mim e me censuram porque não sou igual a elas, mesmo a essas eu quero compreender. 

E o que eu fico feliz, como se andasse montada na garupa de uma mota inventada, com o calor que vem do corpo de quem me traz palavras ao espelho e que me sorri de longe e que eu sei que sorri porque as palavras me chegam envoltas em sorrisos transparentes como asas...

E penso que um dia hei-de aprender a fotografar as asas e os sorrisos das palavras. E depois, nesse dia, hei-de vir aqui, a promessa está feita, e ofereço-vos as minhas fotografias de verdade, com voos e afectos lá dentro.

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E fui à procura de um poema de Manoel de Barros cujas palavras eu bebo e encontrei este, que diz aquilo que eu queria ter dito: 


O fotógrafo dito por Eduardo Tornaghi



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E apeteceu-me ouvir outra vez:

Manoel de Barros - O Livro das Ignoranças, Mundo Pequeno e Autorretrato



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E muito gostaria que descessem um pouco mais para verem como eu vi os lagos do Alqueva.

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Alô, alô Rosa Pinto! Foi V. que pediu os lagos do Alqueva?


A Leitora Rosa Pinto, que eu muito prezo, ontem escreveu num comentário: "Já que gosta de fotografar... umas fotos dos lagos do alqueva...coisa maravilhosa."

E eu, que sou bem mandada, cá estou a ver se as fotos fazem jus à beleza daqueles lugares.

O tempo esteve incerto, ora levemente toldado ora levemente ensolarado. Acho que as fotografias se ressentem com a incerteza da luz, parece que a refracção entorpece. De qualquer forma, aqui estão algumas das que fiz.

Este Alentejo após Alqueva é outro, ainda mais belo que antes, todo ele subtilezas, as terras a moldarem-se ao frescor das águas. E o rio tem requebros de ancas, todo ele curvas, as ilhas despontando da superfície azul como seios atrevidos, e as terras estão verdes, floridas, e há muitos pássaros, muitos cantos, especialmente ao entardecer. E depois há as lonjuras, as suaves elevações estendendo-se até onde a vista alcança, o horizonte sempre mais além, uma extensão desenhada entre águas, margens, lagos, árvores aqui e ali, silêncios, uma paz muito doce.

E há o que não posso trazer aqui: os perfumes, o perfume das ervas viçosas, das flores amarelas ou brancas, cheirosas, o cheiro limpo do campo banhado por águas azuis.

Também não consigo trazer aqui a aragem fria que sopra junto às muralhas dos castelos ou a aragem suave junto às margens dos lagos, ou o voo das andorinhas até aos ninhos de barro nos beirais, ou a tranquilidade das cegonhas no alto das torres, ou a beleza altiva de um cavalo branco que caminha sem pressa pelo monte abaixo.

Mas trago o que posso. Espero, Rosa, que goste. E espero, meus outros Leitores, que sintam vontade de ir ver aquilo que eu não consegui captar.


Mas vamos, uma vez mais, ao som da Gota de Água (uma música tradicional alentejana), num arranjo e interpretação que me encantam

Coros pelo Rancho de Cantares de Aldeia Nova de S.Bento; 
Ronda dos Quatro Caminhos;
Orquestra Sinfónica de Cordoba


















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E, à noite, num pátio, olhar as estrelas e ficar em sossego, respirando o ar puro, sentindo o tempo a fluir devagar, devagar, muito devagar.

De um de teus pátios ter olhado
as antigas estrelas,
do banco da sombra ter olhado
essas luzes dispersas
que a minha ignorância não aprendeu a nomear
nem a ordenar em constelações,
ter sentido o círculo da água
na secreta cisterna,
o odor do jasmim, da madressilva,
o silêncio do pássaro adormecido,
o arco do saguão, a humidade
- essas coisas, acaso, são o poema.

['O sul' de Jorge Luis Borges]

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Volto aqui para trazer para a linha da frente o poema de Florbela Espanca que Rosa Pinto deixou abaixo, em comentário, aproveitando para vos mostrar uma das árvores que fotografei:

Árvores do Alentejo 



Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a benção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!


Florbela Espanca

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

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