Hoje estava cheia de ideias para vir para aqui escrever no gozo. Motivos não faltavam. Era a dúvida existencial do nosso fofo Álvaro (o Santos Pereira, claro) expressa numa conferência promovida pelo Diário de Notícias: ‘Qual é a diferença entre os natas, o frango no churrasco e os hamburgueres?’ (good question, Alvy!), interrogando-se porque é que não se exportam pastéis de nata e dando como exemplo o frango Nando’s da África do Sul; era também o espanhol que encomendou pela internet um extensor de pénis e, na volta, recebeu em casa uma lupa (boa!); era a hipocrisia tonta, descabida, infantil de tão ridícula, da intervenção de Passos Coelho, falando das nomeações; enfim, uma épica sucessão de brincadeirinhas verídicas que dariam para eu fazer uma festa.
!!!
Eis senão quando sou agredida violentamente com um tremendo murro no estômago. Sempre ouvi falar desta forma de agressão como sendo dolorosa, mas não imaginava quanto. Confirmo: é uma dor forte, seca, invasiva. Ainda estou dobrada sobre mim própria, encolhida, dói-me tudo, o peito, a alma. Até escrever hoje está a ser, para mim, um exercício doloroso. Apetece-me parar, olhar para fora, para a noite escura que se alarga à minha frente, talvez até chorar.
Vocês que habitualmente me lêem devem perceber como as palavras saem de mim torrencialmente, sem qualquer esforço, sem qualquer pensamento prévio. Sento-me aqui, ponho as mãos sobre o teclado e os dedos vão sozinhos. Mas hoje as minhas mãos aqui estão, atordoadas, sem serem capazes de chegar ao assunto. Não estou a conseguir. Provoca-me dores violentas. Vou parar um pouco, vou ganhar coragem.
.-.
Não tenho visto muita televisão, nem ouvido muitas notícias pelo que nem sei se estou aqui a referir uma coisa já do conhecimento comum. Se for, perdoem-me. (E aqui estou eu, de novo, a ganhar tempo e, para ver se ganho coragem, vou escolher umas imagens).
Hera, a deusa da maternidade |
Então vamos lá.
A questão é que li que, na Grécia, há cada vez mais famílias a abandonar os filhos. Deixam-nas à porta de igrejas, na escola, em instituições de solidariedade, entregam-nas para adopção. Dizem que não as podem sustentar. Não estamos a falar de cães abandonados por famílias que já não conseguem pagar a ração (o que também é uma dor). Não. Estamos a falar de crianças. Crianças a serem abandonadas. Famílias desfeitas, empobrecidas, a desfazerem-se das suas crianças.
Crianças abandonadas com um papel da mãe a pedir desculpa, a pedir que tratem bem da sua cria, a justificar que já não tem como continuar com ela.
Doloroso, doloroso.
Que desespero não está por trás de um gesto destes?
Nem consigo pensar numa coisa assim. Eu morria.
...
Como se chegou aqui?
Há pouco tempo a Grécia era um país europeu, integrado numa realidade civilizada, era um país digno, com um mar e ilhas de límpida beleza, respeitado como o berço da civilização, e os gregos eram um povo aberto, alegre.
Acusá-los do que se passou entretanto, como se fosse culpa deles em exclusivo, é não perceber que o que falhou foi o modelo de integração, foi um excesso de optimismo ao imaginar-se que as diferenças (culturais, económicas, financeiras, políticas, sociais) se esbateriam por si próprias ou que não exerceriam esta influência dramática no processo de coesão.
Como se viu, o modelo falhou, não se auto-regulou. E começou a falhar logo quando dois dos países mais fortes (Alemanha e França) arrancaram com excesso de velocidade, incumprindo o limite estabelecido para o défice - e nada aconteceu. A partir daí foi toda a gente ‘a abrir’, pé na tábua. Emprestando dinheiro uns aos outros, todos desataram a investir e a gastar como se não houvesse amanhã. Cada um instituiu as suas próprias regras e políticas, sem articulação entre si, e a dívida pública e privada disparou. Dinheiro barato, descoordenação entre países, e, colectivamente, todos construíram um paradigma assente em pés de barro, uma ficção – e a Europa viu-se artificialmente rica, expansionista, pronta a acolher mais países, sem perceber a insustentabilidade da construção.
Ou seja: não foi a Grécia, não os acusemos, não sejamos primários. Tal como não foi o Sócrates, por favor.
Foi o modelo. E, alinhados com o modelo, foram a Grécia, Portugal, a Irlanda, a Bélgica, o Reino Unido, foi a Itália, a França, etc. Foram os países a quem foi imposto (e que, de gatas!, o aceitaram) que abandonassem os campos, que abatessem a frota pesqueira, que encerrassem fábricas, que as vendessem, foram os países para onde foi empurrado (e que, deslumbradamente!, o aceitaram) pipas de dinheiro para que se construíssem pavilhões multi usos, rotundas, tretas. E, numa lógica darwiniana, foram também os mais fortes a avançar sobre os mais fracos. Helmut Schmidt já lembrou que os excedentes da Alemanha são os défices dos outros. Ou seja, deixem os outros de comprar e a Alemanha vai abaixo, sem ter onde colocar os seus excedentes, que são o motor do seu crescimento.
Querer que um desequilíbrio tão estrutural e tão alastrado se resolva país a país, obrigando os que estão endividados de morte, a suportar pesados juros e a submeter-se a uma austeridade cega, quando o que precisam é de crescer e de gerar resultados para poder suportar os seus encargos, é perverso, é louco, é estúpido.
Que, perante o desastre a que tão estúpida política está a conduzir, se persista mais e mais, até se chegar a este ponto de tragédia, de desespero máximo, é desumano, é bárbaro.
No dia em que se ouviu dizer pela primeira vez que uma mãe teve que abandonar o seu filho, tivesse isso acontecido na Grécia ou em qualquer outro país da Europa, todos os europeus deveriam ter-se vergado de humilhação, de dor, de comiseração.
É assim que eu hoje me sinto, vergada, profundamente triste, sem saber o que fazer para ajudar a evitar tamanho crime.
Você, meu querido leitor ou leitora, que me está a ler, pode pensar que havia excessos, que os excessos têm que ser corrigidos - e tem toda a razão. Mas essa correcção tem que ser feita com inteligência e humanismo.
É o modelo que tem que ser corrigido. Tem que haver políticas geográficas e demográficas, coordenadas a nível dos países da União Europeia. Tem que haver uma política monetária europeia. O BCE tem que agir como um banco central. E, em conjunto, tem que se ver por onde se puxa, por onde se refreia mas tendo sempre a preocupação de não regredir civilizacionalmente, tendo como objectivo o crescimento e a melhoria das condições de vida – nunca, nunca, nunca o contrário!
Se as coisas não acontecerem assim (a um nível superior, ou seja, a um nível no mínimo europeu, não a um nível local ou nacional), aquilo que agora pode ser visto como uma justa ‘paga’ pelos excessos, vai alastrar, tocando a todos. É que se os pobres deixarem de consumir, os remediados deixam de ter trabalho e deixam também de consumir; a seguir serão as pequenas empresas a fechar, tudo a paralisar.
Percebamos também que grandes empresas nacionais como a EDP, a REN, a GALP, os CTT, as Águas de Portugal, etc, são empresas que empregam muita gente mas, também, dão empregos indirectos a muita gente, compram muitos produtos e serviços a empresas nacionais. À medida que estas empresas forem deixando de ser nacionais e tiverem como donos, por exemplo, a China, substituirão muitas dessas compras por compras no seu país de origem.
Percebamos que o que está a acontecer é uma catástrofe para os países intervencionados como a Grécia, como Portugal que, a troco do dinheiro, se vêem conduzidos a aceitar um programa que conduz à total perda de soberania e ao empobrecimento mais humilhante e que é tanto mais grave quando Portugal, nomeadamente, está entregue a políticos inábeis, impreparados, que tentam ainda ser mais extremistas, mais liberais, sem perceber sequer o que estão a fazer.
Hoje um amigo meu, pessoa de algumas posses, dizia que o genro, antes com um bom emprego e com responsabilidades assumidas, há alguns meses que está desempregado e que é ele que agora está, na prática, a sustentar o agregado familiar da filha e que isso lhe pesa no orçamento, que não está fácil, e que o genro está a desesperar porque não vê qualquer perspectiva. É que o mal disto é que é uma mancha que alastra em cadeia. Por isso, que ninguém olhe para o que está a acontecer com displicência, não pense, ‘isto é lá com os gregos’, ou ‘isto é bem feito para as gordas que não querem trabalhar, passam o dia refasteladas nos cafés’. Que ninguém pense isto.
O que é necessário é que todos percebamos que o problema é um problema do sistema no seu conjunto (sistémico, portanto) e que, como tal, deve ser resolvido. E que não aceitemos tudo o que nos pretendem impor como uma fatalidade. Não é. Tem que haver melhor alternativa.
E que percebamos que não podemos assistir passivamente a que na Grécia, nos últimos meses, já sejam centenas as famílias que tiveram que se desfazer dos seus filhos. É preciso que, de cada vez que ouvirmos isto, o sintamos na nossa carne, que nos sintamos despedaçados, como se alguém estivesse a arrancar bocados de nós. Para que um dia não nos aconteça a nós.
Desculpem-me meus Amigos, hoje não consigo alegrar-vos. Quando o assunto são crianças eu fico alerta. Quando o assunto são famílias a terem que se desfazer das suas crianças eu fico destroçada.
12 comentários:
Minha Cara,
A sua dor e preocupação pelo tema, foi ontem, um abalo para mim quando li a notícia. Por algum motivo obscuro, os media, nem sequer lhe estão a dar o destaque que deveria ter, porque, os senhores que mandam, teimosamente, querem continuar a levar-nos para um buraco de onde jamais sairemos, e querem lá saber se as famílias passam miséria ao ponto de terem de entregar as crianças a instituições, desde que os Catrogas e os outros "clientes" - todos responsáveis - pelo estado a que chegámos, tenham as suas reformas douradas e mais 50 mil por mês, vindos duma empresa monopólio, que arrasa a capacidade da economia e a de qualquer lar português. Está errado, o modelo, como lhe chama, completamente, errado. E é tempo de
as populações gritarem, sem medo, um enorme BASTA. Aqui, na Grécia, e pela Europa fora... Antes que seja tarde demais. Partilho da sua dor, isto não pode estar a acontecer, como foi possível tanta estupidez e ganância?
tbm
Cara Um jeito manso:
A escrita é em forma de ondas que ora com doçura nos embalam na música iluminada dos silêncios ora com brutal violência nos acordam no escuro quando sobre nós rebentam… E se rebentam!
J. Rodrigues Dias
Querida Jeitinho
Só me lembro de ouvir histórias destas "do tempo da guerra".
Às tantas...isto já é mesmo guerra, ainda sem armas mas a fome já anda por aí, lá isso anda...
Olho as paredes à minha volta e aqueles 3 sorrisos deixam-me perdida.
E se um dia acontecer? E se não me acontecer mas acontecer a outros que como nós, estudaram, lutaram, engoliram sapos, aturaram filhos de tantas mães, tantos que há cinco anos eram gente normal,sem preocupações que não fossem as inerentes ao crescimento dos filhos e do sua própria valorização
Lembra-se do filme "Zorba o grego"?
Acho que nem ele na sua divertida loucura seria capaz de dançar perante esta derrocada.
Tinha-a desafiado a ver uma graçola que escrevi no fio de prumo a propósito dos REFORMADOS.
Estou sem ânimo. Começo a ter medo.
A incerteza é total e os gregos apenas levam um tempinho de avanço.
Enfim, apesar disso se costuma ver o DN às sextas dê uma espreitadela na capa da revista.
Encontrará as Cátias mais famosas do País. Vai entender.
Enquanto ainda sabemos sorrir...
Se me permite, faço minhas as suas palavras.
E curvo-me, eu também, de vergonha, de respeito por aquelas mães de colos vazios.
E curvo-me, e peço desculpa a todas aquelas crianças a quem tudo foi roubado.
Desculpem.
Desculpem - se algum dia conseguirem - a uma Sociedade doente, muito doente.
Cara TBM,
Este é um tema que me angustia terrivelmente. Perante uma situação limite de não ter como sustentar um filho, uma mãe que queira o melhor para os seus filhos pode ser levada a uma decisão assim e são centenas de famílias a decidir isto na Grécia. E logo na Grécia que tanto preza o conceito familiar.
Que mundo é este e como deixamos que isto nos esteja a acontecer?
Tantas injustiças neste mundo absurdo. Ando arreliada e revoltada com tudo isto.
Caro J. Rodrigues Dias,
(Neste estou a conseguir responder a comentários e acho que já tenho a solução para o Ginjal).
Tem razão. E já li o seu cais ao qual o mar chega e parte, umas vezes em crescendo, outras em decrescendo. Um dia farra e, no outro, luto.
Não sou dada a angústias prolongadas mas tenho que confessar que esta notícia me abalou e de que maneira. Não quero ser cúmplice de um regime que faz com que as mães tenham que 'desfazer-se' dos seus filhos. Mais: isto apavora-me. É que isto passa-se dentro da Europa civilizada e porque temo que Portugal esteja a seguir o trilho da Grécia.
Mas tenho que tentar dar a volta a este meu estado de espírito.
Querida Era uma Vez,
Quem tem crianças pequenas à sua volta (e sabe como sai caro criá-las) não pode deixar de se aterrorizar perante uma notícia como esta.
Também eu estou aqui rodeada de sorrisos. Meus queridos meninos.
E que desespero pode levar uma família a resolver que as crianças ficarão melhor se forem criadas por outras pessoas? Que sofrimento mais tenebroso.
Também eu tinha a ideia que pesadelos destes eram coisa longínqua, territórios inóspitos ou flagelos do passado.
Só liguei o computador agora já bem tarde e só agora vi o Fio de Prumo e a sua ironia versejante, sempre essa veia! Que engraçado. Tem montes de cadernos cheios de poemas ou de de versos irónicos, espero. Tem que publicar.
Não costumo ver o DN mas vou passar a ver à sexta. Aliás vou ver se descubro já aqui na net.
Quando se juntam, pede logo que ele 'encarne' a Cátia, não? Deve ser de chorar a rir, que fartote de riso que deve ser. Adoro vê-lo, que imitação mais completa, mais divertida, sou fã absoluta.
Beijinhos a todos!
Cara Teresa Santos,
É isso mesmo, temos que nos desculpar perante estas crianças assim afastadas das suas frágeis e vulneráveis famílias.
O que andamos todos nós a fazer para que coisas destas aconteçam nos tempos de hoje?
(E por cá? Tantas crianças que a única refeição completa por dia é a que comem na escola? E que nas férias têm que ir comer à escola? E isto agora em risco...?)
Tenho que respirar fundo porque isto custa-me tanto...
Obrigada pelas suas palavras.
Olá Jeitinho Manso
Volto aqui para agradecer as suas palavras.
Quanto ao que escrevo, existe muita coisa publicada de há anos a esta parte, mas sempre em colectâneas com outros poetas da cidade.Letras para canções, um guião para um musical e também em revistas de bancários onde me concederam vários prémios.
O que tenho em preparação nesta fase é (se alguma editora se interessar) um livro de poemas só meus, exactamente porque a blogosfera provocou uma escrita mais frequente e diversificada do que nunca.
Não tenho muito jeito para vender " o meu peixe" mas estou a reunir umas coisitas.
Quero faze-lo como sempre, sem me pôr em bicos dos pés nem usar "aquilo" que sabe.Apenas por mim.
Vamos ver. Não nego que as suas palavras e as das nossas generosas Helenas, para além de outras, me estimulam e sou muito grata por isso.
Se o fizer terão uma enorme cota de responsabilidade.
Bem haja.
Jeitinho querida
Não consigo comentar, porque as lágrimas não deixam.
Um filho, é algo precioso demais, para se abandonar. Nem que tivesse de pedir, de roubar, seria capaz de os deixar.
Junto a minha indignação, a minha dor, às suas.
Beijinho amigo
Maria
Maria,
Não ter com que dar de comer, vestir, tratar, um filho, deve ser do mais doloroso que existe.
E não sei se perante uma situação desesperada de carência total, não pensaria que talvez fosse melhor para a criança que alguma instituição ou família o acolhesse. Não sei. Desesperada e aflita, com vontade de morrer, talvez eu fizesse isso.
Mas é algo que me custa até imaginar.
Um beijinho.
Era uma Vez,
Estou com muita vontade de ter um livro seu. Vai ser um prazer lê-lo. Vê-se que a poesia e a facilidade no uso das palavras é algo que lhe é muito intrínseco, muito espontâneo.
Deve ser motivante estar a reunir e organizar o que teme escrito, a fase de preparação de um livro deve ser uma coisa aliciante.
Não desista, por favor. Avance com confiança, que vai ser um sucesso.
Um beijinho.
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