sábado, maio 14, 2022

O mais velho de cinco filhos

 

Quando há uma guerra sangrenta desencadeada por gente lunática e tanta gente morre, tantas famílias ficam desestruturadas, tantas casas e infraestruturas ficam destruídas, será difícil dizer quem é que, no fim, a ganha. Todos terão perdido muito.

No entanto, desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia que se intui que, apesar de esfacelada e derrubada, com dores e marcas que jamais serão apagadas, com uma imensa reconstrução social, económica e humana pela frente, será a Ucrânia a grande e digna vencedora e a Rússia a grande e humilhada perdedora.

Desde o início, quando a população ucraniana se uniu em uníssono para declarar resistência até ao último pingo de sangue, desde que Zelenskyy mostrou estar à altura da vontade do povo, desde que os países civilizados se uniram para estabelecer a possível rede de protecção ao povo atacado -- que se começou a desenhar a força da liberdade e da democracia sobre a tirania e a oligarquia, sobre o poder de um psicopata rodeado de yes men e de clones.

Dispondo apenas da força bruta dos mísseis disparados sobre o que calha -- civis, escolas, hospitais -- e da animalidade desordenada de soldados em roda livre, a Rússia viola, destrói, assassina à queima-roupa, de costas, como calha, e esventra cidades, vilas e aldeias mas, sem equipamento sofisticado e sem tropas treinadas e motivadas, sem uma estratégia alicerçada em pragmatismo, sem uma coordenação suportada em planos B, C, D ou E, a Rússia falha no plano A e mostra que, não tendo nada mais na manga senão as ameaças parvas, a desorientação e a brutalidade que ainda fervilha no que sobrou da velha alma russa, vai acabar sujeita a humilhações diárias enquanto, certamente, proliferam ameaças e ajustes de contas internas.

Desde o início que vou lendo e ouvindo referências à saúde de Putin. Nunca se sabe bem o que é informação e contrainformação. Contudo, agora isso já se fala de forma quase generalizada. Não sei o que é que isso pode significar. Custa-me a acreditar, mas já não digo nada, que a ameaça nuclear possa vir a  concretizar-se. Tendo sempre a acreditar que no fundo, lá muito no fundo, qualquer facínora guarda um fiapo de humanismo, talvez um esgarçado fiapo mas, ainda assim, o suficiente para nos salvar da grande e definitiva hecatombe. Mas sei lá se, nos estertores finais, algum moribundo não se lembra de se vingar acabando a sua vida no meio de um glorioso foguetório nuclear...

Também parece ser evidente que Medvedev, a bonequinha pateta gémea de Putin, a que não há muito referiu que o objectivo é ter uma Eurásia de Lisboa a Vladivostok, vem ensaiando falar com voz grossa. 

No entanto, com a minha lente optimista, quero antever que o regime putinista será vaiado internamente, desprezado, renegado e que, daqui por algum tempo, nem memória de Putin nem sombra de Medvedev. E que a Rússia há-de reerguer-se, lavar-se da vergonha com que Putin a cobriu.

Seja como for, tal como ouvi a um militar cujo nome não memorizei, não há guerra que se vença contra uma nação. A Ucrânia vai vencer. E a Europa sairá reforçada e teremos pela frente uns abençoados tempos de reconstrução e pacificação.

E, no fim, perante a derrota em toda a linha da Rússia, perguntar-nos-emos: para que foi tudo isto? Quanto sangue, quantas lágrimas derramados... porquê? Para quê?

Quem saberá justificar às cinco crianças que ficaram sem a mãe porque é que a mãe foi assassinada? Poderá o filho mais velho, aquele em cujos braços a mãe morreu, esquecer a imagem da mãe morta na rua? Conseguirá falar desse dia sem que os seus olhos se encham de lágrimas?

Eighteen-Year-Old Ukrainian To Raise Siblings After His Mother Was Killed In Shelling

Vyacheslav Yalov's mother, Maryna, 37, was killed in the Donbas by Russian shelling as they walked home together. He has now been evacuated to western Ukraine with his two younger brothers and two younger sisters, whom he plans to bring up alone.


Tanto sofrimento em nome de quê?

'Extraordinary humiliation': Ex-CIA director speaks about key moment for Putin



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Um sábado tão bom quanto possível
Confiança. Esperança. Força. Paz.

4 comentários:

Arménio Pereira disse...

(a propósito da justiça salomónica e outras lições esquecidas da Bíblia.)

O que é
a humana justiça?
É a vã, ingente busca
p'lo Verdadeiro Sofredor.
Na justiça humana
ganha, contumaz,
o melhor fingidor.



(diminishing returns)

In the crusade for Good
We kill all - that's bad.
In the struggle for Good
orphans grow - who's sad?
In the push for Good
hearts sour - they're mad.

Um Jeito Manso disse...

K.,

Num exercício de empatia, quase consigo perceber a sua forma de ver o mundo e, tentando vê-lo por essa mesma lente, as suas palavras quase me parecem lógicas e justas.

Só que me recuso a isso pois toda a nossa vida perderia completamente o sentido. Se todos estivéssemos condenados a sofrer, a fazer ou a observar o mal e se pouco sobrasse depois disso, seria frívola (e desnecessária) a nossa presença sobre a terra.

Penso que há lugar ao encantamento, ao deleite, à graça, ao prazer da descoberta, ao afecto. E penso que devemos todos lutar por que essa parte boa seja a parte dominante da nossa vida.

Mesmo que, no fim, tudo acabe (passe a redundância) é bom que seja bom enquanto dura.

Por exemplo, gosto de ler o que escreve, gosto dos seus aforismos, dos seus poemas, gosto dos presentes que, frequentemente, esconde debaixo das palavras e gosto de descobrir as palavras das canções que escolhe.

E, por isso, apesar de não me rever no seu pessimismo, no seu cinismo ou no seu desencanto, tenho que lhe agradecer tudo o que aqui me deixa.

Uma noite descansada e um belo dia de domingo, K.

Arménio Pereira disse...

"Só que me recuso a isso pois toda a nossa vida perderia completamente o sentido."

Recuse-se, por favor.
Ler o que quer que seja não obriga ninguém a rever-se nem com o escrito, nem com o escritor.

Não faço proselitismo, não faço nada para demover quem quer que seja nem um milímetro sequer das suas opiniões. Contrasto pontos de vista, é tudo (um passatempo - quase - inócuo, diria, uma forma como outra qualquer de preencher o arco que vai do berço ao féretro).

O "seu" sol é impermeável, a "minha" chuva é sinuosa; sou criatura nocturna, você passa entre os pingos da dita cuja. Sol e chuva raro se encontram, mas quando o fazem, coisas do arco-da-velha acontecem.

O "sentido" da vida é não pensar no sentido da vida?

Um Jeito Manso disse...

K,

É verdade: passo entre os pingos da chuva. Mas também sou noctívaga.

Sol e chuva encontram-se o o céu recebe-os num abraço em forma de arco-íris. Mas eu olho o arco-íris, encantada e sem me molhar, enquanto o K fica molhado, a ver-se molhado, sem ver o sol nem o arco-íris.

Que sentido tem a vida quando apenas se vê o seu lado triste e efémero?