sábado, março 23, 2024

Dois meses.
E a vulnerabilidade de Kate Middleton.

 

Há uns anos a minha mãe andava cansada. O meu pai, que mal andava, tinha partido uma perna e tinha sido operado tendo, depois, sido internado numa clínica de reabilitação. Era verão, estava um calor dos diabos, e a minha mãe ia vê-lo todos os dias. Ao fim de semana e uma ou duas vezes durante a semana eu ia buscá-la a casa e íamos as duas vê-lo. Nos outros dias, ela ia de autocarro cuja paragem ainda era um pouco longe. Com temperaturas muito acima dos trintas e tais, era natural que se sentisse cansada. Por isso, não me preocupei assim muito com o cansaço, aconselhei-a foi a não ir todos os dias ou a ir de taxi. Como sempre, não me dava ouvidos e eu aborrecia-me pois temia que se desidratasse, que se esgotasse, não percebia porque, pelo menos, não ia de taxi. Pedia-lhe também que fosse ao médico para ter a certeza que estava tudo bem. E ela protelava. 

Mas um dia ela achou que o cansaço não era normal. Foi ao médico, um médico mais velho que ela e de quem era amiga de há muito -- as consultas demoravam para cima de uma hora, creio que chegaram a duas, ele chegou a cantar (e os outros doentes à seca na sala de espera...) --, e ele mandou-a fazer análises. Não vou entrar em pormenores mas, intuitivo e experiente, de análise em análise, teve uma suspeita e mandou-a fazer uma colonoscopia. Não sei porquê, talvez porque andássemos tão focados no estado complicado do meu pai ou porque não nos ocorreu que alguma coisa muito grave pudesse acontecer com a minha mãe, a verdade é que ela achou que não era preciso eu ir, que ia com a sua vizinha e amiga, sempre presente e disponível. Eu trabalhava nessa altura e tinha querido ir mas a ideia que tenho é que não estava à espera que dali pudesse sair algo de dramático.

Contudo, quando, no dia em que foi fazer o exame, ela me ligou, nervosíssima, a dizer que era melhor eu ir já lá a casa pois tínhamos coisas a resolver, fiquei em choque. Não me quis adiantar mais nada mas percebi imediatamente o que se passava.

Quando lá cheguei, estava lá a amiga que já tinha sido operada umas quantas vezes a cancros e que já tinha várias peças a menos. Um exemplo vivo de que o cancro já não é sentença de morte. A minha mãe estava nervosíssima, preocupadíssima, mas não em pânico. Além disso, o cancro estava em estadio inicial, era o menos grave dentro do que era, e, portanto, as perspectivas eram animadoras, digamos assim.

Imediatamente, a família -- que, como tenho revelado, tem ligações ao mundo da medicina -- pôs em marcha os contactos e quase imediatamente uma cirurgia começou a ser planeada num hospital privado. Felizmente a minha mãe tinha não apenas ADSE como um bom seguro de saúde e, portanto, todo o processo foi muito ágil e sem restrições financeiras.

Mas se a minha mãe estava muito apreensiva, eu, por dentro, sentia-me deveras aflita. O meu pai que, entretanto, teve alta da clínica e estava em casa, acamado, muito dependente, e a minha mãe, que eu julgava saudável, estava com cancro. Contudo, esforçava-me, ao máximo, por não demonstrá-lo para ver se transmitia alguma tranquilidade já que a minha mãe estava igualmente preocupada por ter que deixar o meu pai em casa sem o seu cuidado. Não foi fácil, de facto, toda a logística que teve que ser montada para que o meu pai ficasse bem, acompanhado. Eu ia lá levar todas as compras, transmitir-lhe boas notícias da minha mãe, descansá-lo.

Mas esse esforço, para mim, era o menos. Lembro-me, sobretudo, do medo que senti quando ela foi fazer uma ressonância magnética para ver se o cancro não estava espalhado ou quando fui com ela à consulta com o anestesista ou quando fui levá-la ao hospital para a cirurgia ou quando fui à consulta para saber se havia células cancerosas no tecido linfático que tinha sido retirado juntamente com parte do cólon. Sentia-me em pânico. 

Mas o médico tranquilizou-nos, que estava tudo bem, que tinham retirado tudo e que não havia receios. Disse-lhe, sorridente: 'Disto não vai morrer'.

De facto, ficou bem. Os anos passaram, fazia exames, e estava tudo bem. 

Mas a mim custou-me a ultrapassar o medo que trazia dentro de mim desde a surpresa do diagnóstico de cancro da minha mãe.

Quando, há pouco tempo, se percebeu que se calhar algo de grave estava, outra vez, a acontecer com ela e quando a TAC o confirmou, senti-me esmagada. Andava há cerca de um ano e picos convencida que ela padecia de uma hipocondria extrema e queria que ela se tratasse da ansiedade que isso lhe causava. Na verdade, apesar de ter noventa anos, eu estava convencida que ela ainda teria vários anos de vida pela frente. 

Quando tivemos a certeza de que estava outra vez com cancro e que este estava tão avançado que já não teria muito tempo de vida, já ela estava muito mal, já sem andar, quase sem conseguir falar, sem forças. Portanto, não lhe chegou a ser dito a ela o que tinha pois, apavorada que andava sobretudo com os tratamentos, achando que todos os seus males resultavam dos comprimidos que tomava para o coração, achámos que não deveríamos atormentá-la com este diagnóstico. Contudo, logo depois, por mero acaso, soubemos que, afinal, há cerca do tal ano e picos ela tinha sido insistentemente alertada para o que muito provavelmente tinha e que deveria fazer mais exames e tratar-se, o que não fez e ocultou de todos.

A partir daí viveu pouco mais que um mês. E foi um tormento, um declínio agudo, galopante, rápido, doloroso. Ela sabia o que tinha embora, inicialmente, nesta fase final, continuasse a parecer ignorá-lo. No fim, já falava do assunto, embora nunca tivesse verbalizado a palavra cancro, e mostrava-se aterrorizada com a perspectiva de ir morrer. E isso a mim devastava-me. 

Cada pessoa lida com a finitude à sua maneira. 

A equipa médica e a psicóloga aconselharam-nos sobre a forma de lidarmos com a situação mas devo dizer que foi um período tão intenso e assustador que, apesar de breve, ainda hoje ando a processar.

A minha família e amigos e mesmo a equipa médica tentavam fazer-me ver que, sendo certo que ninguém é imortal, longa vida já a minha mãe tinha tido e que, apesar de tudo, a sua decisão  tinha sido inteligente pois, na idade dela e já com algumas limitações cardíacas, certamente não iria poder suportar terapêuticas agressivas. Assim, viveu autónoma e razoavelmente bem até pouco antes de morrer.

Mas saber que ela tinha um cancro que avançava exuberantemente e que não havia nada a fazer e que cada dia podia ser o último foi uma coisa horrível para todos os que lidaram de perto com a situação e, para mim, talvez ainda mais. 

Pouco tempo antes um amigo e colega tinha sabido que um cancro que ele julgava resolvido tinha reaparecido com agressividade, obrigando-o a radioterapia que, como não resultasse, obrigou, de seguida, a passar para a quimioterapia. Isso fez-me muita impressão. Conversava com ele muito abertamente sobre isso, ele falava dos seus medos e de como ficava abalado e doente depois das sessões. E eu, tão solidária e triste com a doença do meu amigo (e, por via disso, a sentir que tinha a obrigação moral de continuar a trabalhar para lá do que queria pois não ia abandoná-lo nem à empresa numa altura em que ele estava tão fragilizado), não fazendo a mínima ideia de que a minha mãe tinha um cancro dentro dela, comentava isso com ela. E ela nada deixava transparecer. Perguntava-me muitas vezes por ele mas eu pensava que o interesse dela era sobretudo por saber que eu queria deixar de trabalhar mas tinha decidido esperar até que isso fosse possível. Se soubesse o que se passava com o seu estado de saúde, jamais teria conversado com ela sobre isso pois imagino que ficava cheia de medo e, ao mesmo tempo, deveria fazer um grande esforço para eu não perceber.

Faz hoje dois meses que morreu.

Continuo a não encaixar a sua ausência num horizonte temporal coerente. Por vezes parece-me coisa muito recente. Acontece-me pensar que está na hora de lhe ligar ou ter muito presentes algumas observações suas e até me parece quase mentira que já cá não esteja. Mas, noutras vezes, parece-me que a minha mãe viveu numa outra dimensão da minha vida, uma dimensão que já não existe. 

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Imagino o susto e a aflição que igualmente Kate Middleton, jovem mãe de três filhos pequenos, tem atravessado. Vê-la magra, branca, enervada, a falar da sua situação fez-me relembrar os meus medos, os medos da minha mãe. Ou as aflições de uma amiga a cuja mãe foi diagnosticado um cancro também terminal, tinha a senhora cinquenta e tal anos. Ou o susto e ansiedade de uma outra pessoa da minha família. Ou o que se passou com os meus tios. Ou com o meu sogro. Ou com uma tia do meu marido. Ou, há dias, uma amiga a quem foi extraído um nódulo canceroso, supostamente não tendo ficado nada lá que dê preocupação. Ou tantos outros casos. Uns felizmente foram interceptados a tempo e as pessoas ficaram com uma história com um final bem sucedido para contar. Mas é sempre um susto, uma agonia.

Espero que Kate e todas as outras pessoas que estão a atravessar este período de luta em que ainda não se sabe quem vai levar a melhor, se as células benignas, se as células malignas, tenham boa sorte e voltem a respirar de alívio e a viver serenamente.

A vida é curta, bem o sabemos. Mas não precisa de ser curta demais nem de envolver sofrimento.

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Desejo-vos um bom sábado

Saúde. Boa sorte. Paz.

2 comentários:

ccastanho disse...

Cara UJM

Começo por desejar sinceras melhoras rápidas a Kate Middleton. Ninguém merece um cancro, e por maioria de razão, uma jovem Mãe. É devastador para a própria, como o é, para a família, todas as famílias!, de todas os estratos sociais; nobres, republicanos, ricos, remediados ou pobres.

Dito de modo sentido o acima referido... Este assunto, deve levar-nos a todos a questionarmos o papel da comunicação social nas sociedades. O que leva a (CS) a hipervalorizar o cancro da Kate Middleton? Será que este cancro. não é igual aos cancros que as pessoas da minha família já tiveram, e com esse "animal" morreram? Há exceção, felizmente de um recente, com sete anos, e - eliminado em operação após um mês da sua precoce deteção -, a uma pessoa que amo e me acompanha há décadas e a qual me deu os seres que mais amo na vida? Será que este cancro da Kate, não é igual aos cancros dos familiares da UJM? Dos familiares de praticamente de todas as famílias que já sentiram este pesadelo, que, na hora de receber a noticia, o mundo desaba todo nas nossas cabeças, que nos deixa numa nuvem onde a racionalidade desaparece por completo até passado tempo voltar? Em que difere o "cancro" da Realeza, ao "cancro" dos Plebeus? Qual é a diferença de uma veia plebeia entupida, porque já gasta da Quimioterapia, da veia monarca nas mesmas condições? Porra!. Estou farto desta comunicação social que me limita (ou pretende, e muitas vezes, ganha) a minha cabeça.
Acho que o mais saudável para uma sociedade, era a falência total desta CS e aparecer uma nova, mas isto é evidentemente utopia.

Pôr do Sol disse...

Querida Um Jeito Manso,

Sabemos que a maldita doença, nas suas várias vertentes não desarma e não escolhe alvo. Aparece em gente idosa, jovem, desportista, super cuidadosa com a alimentação e, o mais chocante, em crianças.

Quem passa por um processo de cancro vive amedrontado com a hipótese de uma reincidência. O que muitas vezes acontece.

Hoje penso que a sua mãe foi muito inteligente e sensata.

A medicina avança mas o adversário dá luta e continua. Quando o vemos atacar tambem gente jovem, com tanto ainda para viver, revolta-nos a injustiça da vida.

O anonimato ajuda a viver melhor a situação, contudo, apesar da menssagem, não estou certa se compreendo a necessidade da exposição.

Que tudo corra pelo melhor.

Bom fim de semana