Quando aconteceu isto de Simone Biles ter desistido, afirmando-se atormentada e sem vontade anímica para se atirar para o ar pois receava que o corpo agisse descomandado face à mente, voltei a tentar saber de Katelyn.
Sendo jovem e superlativamente brilhante, alguma coisa deveria ter acontecido. Lesão? Paixão ou ocupação incompatível com a carreira desportiva? Algum drama pessoal?
Várias vezes aqui presente no Um Jeito Manso, não conseguia perceber porque é que a menina voadora, divertida e de borracha tinha ficado de fora.
Fui ver algumas das suas brilhantes actuações para me certificar de que hoje a minha opinião ainda seria equivalente à de quando a tinha visto há uns dois anos.
E é.
Enquanto Simone Biles é uma máquina programada para a perfeição, um corpo pequeno e poderoso que executa os mais arriscados movimentos com mestria e coragem, parece até que com um certo sentimento de dever, Katelyn é de outra cepa, mais intuitiva e brincalhona. Tudo nela é alegria e desafio, arrojo e prazer.
Mas eis que fico a saber que também ela foi vencida pela insegurança, pela falta de autoestima. Gozavam com ela: era a sua baixa estatura, era o seu corpo com curvas generosas, era bicho não destinado a altos voos, pássaro anafado, insucesso anunciado.
Poder-se-ia pensar que uma pessoa com o talento dela faria ouvidos de mercador a quem não via o seu valor, prendendo-se, antes, a preconceitos. Mas não. Katelyn, afinal, foi mais outro ser que revelou ser humano. Katelyn é de borracha, não de ferro.
Habituamo-nos a ver estas jovens que avançam destemidamente para os aparelhos, que se elevam dando saltos pelos ares como se confiantes no poder impulsionador das suas asas, e não nos ocorre a pressão a que estão sujeitas e que pode desprogramá-las. Nem nos ocorre a inconsciência do risco que correm, pondo em causa a sua integridade física para se superarem aos olhos de quem delas exige tudo. Sobretudo, não nos ocorre que, se alguma coisa falha, por milimétrica que seja a falha, a queda pode ser fatal. Ou, se não fatal, pelo menos muito dolorosa, porventura incapacitante.
A pressão a que estas ginastas são sujeitas é permanente, brutal e, de facto, não estou certa de que o espírito olímpico seja isto.
O que aconteceu a Kerri Strug em 1996 é exemplo da superação que se espera (que se exige) aos desportistas de eleição: aguentou a dor até conseguir o salto perfeito que lhe valeu a medalha de ouro.
Mas faz isso sentido? Faz sentido que se exija a dor, física e mental?
Não estou certa disso.
Até não há muito, quem mostrava as suas falhas anímicas era alvo de troça. Miolo mole. Cabeça fraca. Maricas. Fracote. Por isso, quem sofria -- dor física ou dor de alma -- sofria para dentro, nada revelando. Deuses em forma de máquina, corpos amestrados para serem mais do que corpos humanos, corpos habituados ao esforço supremo e à dor. A elegância e a leveza que revelam é, sobretudo, uma construção. Uma longa e dolorosa construção.
As ginastas, e agora apenas falo delas, sorriem, avançam determinadas, saltam, praticam, correm e, ao mesmo tempo, estão disponíveis para entrevistas, palestras e sessões fotográficas. Se têm dúvidas ou dores, prudentemente disfarçam-nas.
1 comentário:
Que eu saiba, Katelyn estava apenas no circuito universitário, fora do que leva aos JO...
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