terça-feira, fevereiro 13, 2024

Uma Kodak Six-20 'Brownie' C. Uma tarde em família (e uma fotografia, com parte da maltinha carnavalescamente disfarçada, para o atestar). Um cartão algo misterioso. A natureza a renovar-se.

 

A malta jovem combinou juntar-se para jogar basket e perguntaram se não queríamos ir ter com eles. Claro que fomos. Estava um sol tímido mas foi bom estar em família. As crianças estão de férias e os adultos nem todos mas conseguiram organizar-se para que a tarde fosse uma maravilha. 

O meu marido, os meus filhos, os meus netos.
Todos carnavalescamente mascarados.
(Todos, salvo seja... O cão não está disfarçado...)

Depois o lanche foi numa esplanada e é sempre um espanto ver a energia com que se atiram ao que vem para a mesa. 

Depois eles continuaram juntos, umas às compras, outros para o barbeiro, e, finalmente, jantando juntos. Chamaram-nos para já não deu. É que, depois do lanche, nós dois regressámos a casa e eu, como vem sendo hábito, vim arrumar algumas das coisas que tinha trazido de casa da minha mãe. E é muito cansativo pois para nada há um lugar disponível à espera de ser ocupado. Pelo contrário, há que reorganizar, mudar de sítio o que já estava instalado. Não quero ficar com muito bibelot, não quero ficar com a casa atravancada, não quero descaracterizar a minha casa. Mas também não quero colocar as coisas da minha mãe em lugares pouco dignos. Portanto, há aqui um jogo de equilíbrio que não é fácil.

Por exemplo, no outro dia trouxe uma mesinha de apoio redonda, pequenina, com uma gavetinha. Um movelzinho delicado, elegante, em raiz de nogueira. Pareceu-me que ficaria muito bem numa parece do hall em que há um quadro e um candeeiro de pé alto, com uma luz relativamente fraca, amarela, que apoia na iluminação da entrada e da circulação e que está apontado para o quadro. Ou seja, dá uma luz indirecta muito agradável. Portanto, pensei que, ali, uma mesinha mínima ficaria bem. Pois bem. O meu marido que embirra com tudo o que é inútil não descansou enquanto não me convenceu a tirá-la dali. Não só dizia que a mesa não estava ali a fazer nada como ficava despropositada. 

Acabei por pô-la ao lado de um cadeirão, num sítio em que mal se vê. Pelo menos assim não embirra com ela. Mas quase que, para cada coisa, é um exercício de imaginação e equilíbrio.

Depois fomos caminhar, eo muito cansada. Quando o meu filho nos desafiou para nos irmos juntar a eles já não deu.

No meio de um conjunto de papelada -- que me forcei a ver toda para conferir o que poderia deitar fora sem receio de me desfazer de alguma coisa importante --, descobri um cartão de uma empresa de consultoria em marketing e gestão e, no verso, dirigido ao meu pai umas palavras muito lisonjeadoras. 

Como no cartão estava, por extenso, o nome da pessoa que o escreveu, uma consultora, estive a googlar. É uma consultora brasileira, tem agora uma empresa sua no Brasil, tem livros publicados. Fiquei agradada mas intrigada ao ler o que ela escreveu ao meu pai. (No cartão, apaguei o nome do meu pai, a quem ela se dirige, bem como apaguei o nome dela, ao assinar-se, na vertical, de lado). Qual dos dois, o meu pai ou a minha mãe, guardou, e bem escondido, este cartão? Mistério...

No domingo, lá em casa dos meus pais, a minha filha descobriu as máquinas fotográficas do meu pai, em particular uma antiquíssima que eu julgava desaparecida, uma velha Kodak. O estojo já completamente acabado.

O meu pai tirava imensas fotografias. Andava sempre com a sua Kodak. Lembro-me bem de ser bem pequena e de estar a ser fotografada por ele.

Mais tarde, substituiu-a por uma mais moderna. Tenho ideia de que a minha filha também a guardou. Mas hoje não a encontrei. Tenho que procurar melhor.

Tirando isso, antes de almoço apanhei as últimas três laranjas. Doces e sumarentas.

E encantei-me com o jasmim amarelo já a começar a florir. 


E a chuva de finos ramos do chorão, agora nus, começam a querer pintar-se de verde. Um prodígio de delicadeza e beleza.


A Primavera aproxima-se. A vida renasce. A vida reinventa-se. É da natureza. É a lei da vida, dizem. 

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Uma boa terça-feira

Saúde. Alegria e esperança. Paz.

segunda-feira, fevereiro 12, 2024

Não me peçam para comentar o lado positivo e as coisas grossas de que o PCP gosta.
Vou antes contar como foi o meu dia, incluindo o telefonema da minha amiga sobre a minha mãe

 


Dia chuvoso e sem grande atractivo. Mais um dia em casa da minha mãe, mais um dia confrontada com armários e roupeiros cheios que nem ovos, coisas boas, mal empregadas para serem deitadas fora, e nós sem as querermos para nós, porque não temos falta, porque não temos onde pô-las, porque não nos serve ou não são o nosso género.

Tudo muito, muito, tudo infindável.

Valeu-me a minha filha que fez um bom rastreio e que consegue ter um desapego que eu não tenho.

Começo a pensar que, se a minha mãe guardou durante toda a vida, é porque era importante para ela e, se era importante para ela, dá-me pena deitar fora.

Mas tem razão, ela (e do meu marido nem falo pois, por ele, não aproveitava nem um só copo) pois poderia ter importância para ela mas teve-as guardadas longe da vista, durante décadas. A nós pouco nos diz e, a guardarmos tudo aquilo, seria também para ter encafuado, sem qualquer préstimo. E vamos ter as nossas casas atafulhadas de coisas que vão estar escondidas e que são inúteis?

É verdade, reconheço.

Portanto, enchemos vários sacos com coisas que considerámos lixo. 

E voltei a deixar a cama com uma pilha imensa de roupa que a senhora -- que lá ia a casa e que lá irá até esta monda estar feita -- fará o favor de ver se quer alguma coisa para ela e, o que não quiser, tratará de lhe dar destino. Contou que uma rapariga brasileira que veio para Portugal quase só com a roupa que trazia no corpo delirou com a leva anterior, que lhe assenta tudo bom, que está feliz da vida. Fico contente.

A minha filha levou algumas coisas, eu trouxe coisas que acho que têm valor e não podem ir para o lixo e que ela não quer e o meu filho ainda menos.

Ela também já levou alguns livros e eu trouxe também uns quantos. O meu filho diz que fica com o Eça. Mas espero que ele fique com mais alguns pois há muitos, muitos. Eu depois verei se há alguns que  não tenha ou que minimamente me interessem. Depois... nem quero pensar.

E de copos nem sei que dizer. Várias prateleiras cheias de copos. Ora, ninguém quer mais copos, e eu não tenho mesmo onde pô-los. É de loucos, não sei como é possível ter tantos copos. E eu, que ali vivi e que toda a vida frequentei aquela casa, nunca tinha reparado em tal. A gente, à força de tanto ver as coisas, parece que deixa de vê-las. Penso que vamos ter que embalá-los e serão mais alguns caixotes que ficarão na garagem. Como já aqui o referi, só espero que os meus netos, quando estiverem a 'montar' as suas casas, queiram ficar com todo o material que cá estará à sua espera.

Entretanto, quando estava lá, ligou-me uma amiga. Gostei imenso de falar com ela. Conhece a minha mãe desde os nossos dez anos. Contou-me que tem uma grande admiração por ela desde essa altura pois, nesse tempo, entre o nosso grupo de amigas e amigos, era a única mãe que trabalhava. Todas as mães estavam em casa. Lembra-se de estar em minha casa e gostar imenso de falar com ela e de, outras vezes, passarmos pela escola em que ela dava aulas e vê-la, com a sua bata branca. E isso, para ela, era o máximo. Achei graça ela dizer isto. Nunca tinha visto isso segundo essa perspectiva. Para mim era natural a minha mãe trabalhar, tal como era natural que todas as outras mães estivessem em casa. Depois, voltou a estar frequentemente com a minha mãe pois era médica no Centro de Saúde onde a minha mãe ia e, portanto, conversavam sempre e, através dela, ia sabendo sempre notícias de mim. Tal como eu ia sabendo notícias dela. Mas, diz ela, que, do que conhecia a minha mãe, não estranhou a decisão de não nos contar a doença que tinha, não se deixar aprisionar pelos exames e tratamentos que, vendo bem as coisas, não iam servir para salvá-la e iam estragar-lhe a qualidade dos últimos meses de vida. Assim, teve uma morte muito rápida. Quando eu disse que ainda me custa acreditar e que me custa perceber como é que ela esteve tão bem, sem que ninguém percebesse nada, até cerca de mês e meio antes de cair a pique, disse ela: 'Mas ainda bem, não é? Ainda bem que esteve bem quase até ao fim, não é?'. Pois, nessa perspectiva, sim. Esta minha amiga nunca foi médica dela mas conversavam muito e diz que também nunca lhe percebeu nenhum mal estar ou que sofresse daquilo que viria a morrer. Mas reforçou várias vezes: 'Ainda bem que foi assim'.

Hoje, lá em casa, vi as flores que plantou, ela própria, no canteiro do meio, perto do portão, pouco antes de ir para a residência. Estão floridas, alegres. São a prova viva da força dela.

Queixava-se de mil pequenos sintomas, coisas que atribuía sempre aos comprimidos que tomava, achava que mais valia não tomá-los pois vivia melhor sem os seus efeitos secundários. Pelos vistos também não os tomava todos. E, se calhar, dada a conjunção de maleitas e dada a sua idade, mais valia gozar a vida como se tivesse vinte anos, sem medicamentos e, quando tivesse que ser, isto é, quando chegasse a sua vez, chegava. E chegou. Para o mês que vem faria noventa e um anos. 

E toda a gente fala dela como uma pessoa jovial, independente, bem disposta e muito sociável. Uma vez, ao princípio de estar na residência, eu estava a falar-lhe de uma senhora que tomava as refeições na mesma mesa, uma senhora muito interessante, escritora. Como havia lá mais duas, uma delas, uma das quais sua amiga, a minha mãe perguntou a qual me referiu eu: 'Qual, a velhota?'. Fiquei como sempre ficava quando ela se referia às pessoas da idade dela ou mesmo mais novas como 'velhotas'. Mas, de certa forma, percebia. É que, se as outras pareciam ter a idade que tinham, a minha mãe não parecia nada uma velhinha. Nada. Uma vez, ela tinha que ir aos Correios. Disse-me que não ia em dada altura do mês porque estava 'cheio de velhos que iam receber a pensão'. Só que ela parecia bem mais nova mas, na realidade, já era nonagenária. Mas não se sentia. Nunca se sentiu velha. Quando se queixava que os medicamentos para o coração lhe provocavam a sensação de cabeça vazia e tinha receio de ter tonturas, eu e os médicos dizíamos que, se calhar, por segurança, podia usar uma bengala. Nem pensar. Nunca usou. Para ela usar bengala devia ser sinónimo de ser velha. E, de facto, ágil e desembaraçada como era, uma bengala não tinha nada a ver com ela.

Enfim.

Por vezes penso que pode parecer estranho eu, tão cedo, estar a querer dar destino às coisas da minha mãe. Não sei explicar. Como fui várias vezes a casa dela não estando ela lá (quando foi para a residência, como já contei, nas duas ou três primeiras semanas, enquanto ainda estava bem, queria mais casacos, mais sapatos, calças de fato de treino, etc). Por isso, entrar em casa sem ela lá estar não me faz impressão. E acho que, resolvendo já isto, me custa menos do que estar muito tempo sem lá ir e depois ir a uma casa abandonada, triste. Não sei explicar. Cada um vive e gere as suas emoções da forma que lhe é mais natural. Eu parece que fico mais tranquila se souber que as coisas que lhe eram mais queridas estão connosco, em nossas casas. Parece que assim, arrumando e organizando e vendo as suas coisas (como, por exemplo, as cartas, as fotografias, etc), estou a honrar melhor a sua memória, não deixo as suas coisas por lá, tristes e sem razão de ser.

Hoje descobrimos uma coisa que nos fez rir. Num dos roupeiros, numa bolsinha de crochet feita por ela para supostamente trazer, à tiracolo, com o telemóvel ou com a carteira, meia escondida no meio de uns casacos compridos, descobrimos cadernetas antigas da CGD, envelopes de cheques, uns antigos, outros actuais e, no meio, completamente ocultado, um molho de fotografias. Eram fotografias minhas com aquele namorado de quem já tantas vezes aqui falei. Nem me lembrava que as tinha. Ou seja, deu-lhes sumiço, escondendo-as completamente. Provavelmente foi para que nunca se corresse o risco de o meu marido ou os miúdos darem com elas. Mas que mal fazia? Não sei. Só sei que ela nunca engraçou com ele. Não quis que, de alguma forma, ele fosse tema. Fartámo-nos de rir.

Assim, parece que, às tantas, vamos encarando com mais naturalidade o que aconteceu e que tanto nos abalou e que tanta tristeza nos trouxe.

Afinal é o que se diz, a vida continua.

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Chegámos a casa ainda a tempo de vermos o Montenegro com a Inês Sousa Real, uma coisa sem história, pelo menos pela parte que me toca. Nada que se lhe diga. E vimos o infeliz Raimundo que, coitado, não consegue dar uma para a caixa a debater com a Mortágua. Também nada a dizer a não ser que o Raimundo arranjou dois tópicos: o PCP está ao lado do que é positivo e que só vale a pena o que é grosso. Quem viu e ouviu poderá confirmá-lo. Ora não explica o que é isso das coisas serem positivas e, quanto àquilo de só valer o que é grosso, nem vou querer saber até porque a língua portuguesa é traiçoeira. Tirando isso, é uma mão cheia de nada e que, quando quer dizer qualquer coisa, não é capaz. E quando se esforça, como no caso da Ucrânia e da Rússia, é uma infelicidade, vem com a conversa das 'forças da paz' sem que ninguém consiga perceber o que é isso das forças da paz. Uma conversa de pombinha, ainda por cima titubeante. 

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Uma boa semana a começar já nesta segunda-feira

Saúde. Ânimo. Paz.

domingo, fevereiro 11, 2024

O tio-avô anarquista, a avó que era Frida vibe, casórios e muitas centenas de cartas e de fotografias (centenas? ou milhares?)

 

Passei o dia de volta das caixas. Descobertas que, para mim, são fascinantes. 

Uma fotografia me encanou: a minha avó materna, muito jovem, sentada com o meu tio, ainda bebé, ao colo e a minha mãe, talvez com uns três anos, muito loura, olhos muito claros, muito séria. Mas o que mais me surpreende é o porte da minha avó, muito direita, com um vestido que devia ser de uma cor viva com um padrão não de bolinhas claras mas um qualquer motivo assim, com mangas compridas, cós branco nas mangas, um decote em bico com uma gola branca em volta e um colar de grandes e coloridas contas. Morena, cabelos pretos, sobrancelhas vincadas. A minha filha disse Frida Kahlo vibe. E é.

Tenho que arranjar maneira de ter em casa, algures, em destaque, algumas das incríveis fotografias que  descobri. E para as cartas antigas. Tenho que tê-las num lugar em que saiba onde estão. Receio guardá-las num sítio em que se perca o rumo para elas.

Descobri também um pequenino caderninho em que a minha bisavó escreveu a data de nascimento da minha avó, a data em que se casou e a data em que a minha mãe nasceu. Afinal nasceu à tangente com a minha avó com dezasseis acabados de fazer. 

Aí escreve também como o filho andou aos tiros, foi preso, foi deportado. Na fotografia dessa folhinha apaguei o nome desse meu tio-avô.

Noutra folhinha, diz que regressou e, mais tarde, foi outra vez preso.

Já descobri que era anarquista. Encontrei-o, via google, num trabalho sobre os movimentos anarquistas. Bate certo com o que a minha bisavó escreveu, a data, o nome do navio, etc. E a minha filha descobriu uma fotografia com os deportados dos anos 30 em Timor, na ilha em que, justamente, ele esteve. Um dos da fotografia é certamente esse meu tio-avô anarquista de que sempre ouvi falar como sendo um combatente, um aventureiro, corajoso. Viveu clandestinamente, esteve preso. Morreu pouco antes do 25 de Abril para grande desgosto da minha avó pois toda a vida ele lutou pela liberdade.

No dia do enterro da minha mãe (custa-me dizer enterro pois foi cremação; apenas uma semana e tal depois é que fizemos o enterro das cinzas), os meus primos, filhos do irmão da minha mãe, disseram que tinham descoberto não sei o quê sobre esse tio, qualquer referência histórica, creio, e que aparecia lá o nome de código dele. Tenho que lhes enviar a fotografia de algumas destas coisas que estavam com a minha mãe e pedir-lhes que me mandem imagens do que, se calhar, estava com o pai deles.

Nesse livrinho a minha bisavó fala de uma Luiza que tinha um amante e que viveu um drama, tendo sido salva. Nunca ouvi falar dela. Seria uma outra filha? Não sei.

Descobri também duas folhas antiquíssimas com textos, creio que humorísticos (mas tenho que me debruçar para conseguir ter a certeza). Tenho ideia que era correspondência dos primos algarvios, entre eles o que foi presidente.

E inúmeras, inúmeras fotografias. Primos em Lisboa, outros no Algarve. E muitas, muitas de quando eram jovens. Era um grupo enorme de amigos e deviam andar sempre juntos. E fotografias do casamento dos meus pais. E dos meus tios, os meus pais como padrinhos de ambos, a minha mãe de chapéu, elegante, o meu pai muto bem, eu de menina de alianças.

Passando para a correspondência que me foi dirigida tenho muitas dezenas, talvez centenas, de uma grande amiga epistolar, alguém que escrevia muito bem, com muita facilidade e que me encantava pelos seus gostos, pela sua cultura. São Tavares. Tenho ideia que estudou História. Tenho cartas que vinham de Leiria mas creio que ultimamente vivia no Porto. Não consigo descobrir o nome completo para conseguir descobrir que é feito dela.

E várias outras. Por exemplo, a Mané de Leiria. Era muito alegre, tenho ideia que era um espírito livre. E muito bonita. Mas a única coisa que sei dela é isto: Mané. Conhecia-a, a ela e à São, num acampamento creio que na Quinta dos Lilases, ao Lumiar. Estivemos uma semana a acampar e tornei-me muito amiga delas, uma amizade epistolar que durou vários anos.

Com tempo vou pôr as imensas cartas por ordem cronológica e vou ler.

Mas já separei as cartas por sacos: um para as cartas da São, outros para as da Mané, outro para as da Jill, outro, quase a rebentar, para o namorado que escrevi que se desunhava. Etc. Encontrei também cartas anónimas de um que dizia que era louco por mim, que me adorava há muito tempo. Como nunca descobri quem era, juntei-as ao saco do namorado. Enfim, vários sacos,

Foi o dia quase todo de volta do conteúdo das caixas. Tinha pensado que o dia me chegava para arrumar lençóis e toalhas de mesa mas o tempo não esticou. Entre refeições, caminhadas, fotografias e correspondências, não deu para mais nada.

A meio da tarde senti um cansaço grande, uma saturação. Ia pondo as coisas em cima de uma mesa e ia vendo, eu de pé. Mas o cansaço não foi, certamente, de estar tantas horas de pé. Deve ter sido de tanto tempo de atenção, de seguida.

Agora tenho que intervalar disso, tenho que descansar a cabeça.

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Um feliz dia de domingo

Saúde. Esperança. Paz.

sábado, fevereiro 10, 2024

Cartas de amor
(em noite de debate de Raimundo versus Ventura e outros)

 

O dia foi um pouco puxado ou, então, sou eu que estou a chegar à fase de alguma descompressão. Não sei. O que sei é que, depois de jantar, adormeci no sofá, mas adormeci tão profundamente que o meu marido estava francamente admirado. Não apenas me acordou algumas vezes como me perguntou o que é que eu tinha. 

Por exemplo, perdi grande parte do debate do pobre Raimundo com o tresloucado Ventura. Quando vi, estava o Raimundo às aranhas, titubeante, a parecer que queria dar cabo do outro mas a fazer aquelas figuras tristes que fazem os cãezinhos minúsculos quando, lá em baixo, se põem a ladrar freneticamente junto às pernas dos cães grandes que não lhes ligam patavina.

Também só vi um bocado do comentário do Paixão Martins, sempre fino como nenhum outro, com o Calafate. 

De facto, não percebi que onda de pesado sono foi esta que me submergiu.

E ainda não me encontro totalmente refeita. 

Por isso, não vou relatar com pormenor as minhas peripécias com a NOS, não apenas telefonicamente como em loja (onde fui entregar os equipamentos que estavam em casa da minha mãe). Digo-vos apenas que é uma despersonalização da mais absurda que há. Reconhecem que erraram (isto é, não deram seguimento ao meu pedido de cancelamento, comprovadamente feito ainda o ano passado), constatam que o erro prossegue (apesar de ter entregue os equipamentos, o contrato continua activo) mas afirmam que têm que continuar a errar (leia-se, a enviar-me facturas relativas ao contrato da minha mãe) até ao fim do ciclo (?) e que só nessa altura é que posso apresentar uma reclamação e pedir que anulem facturas emitidas indevidamente. Explicam-me que, na realidade, compreendem que eu ache estranho mas que não podem fazer nada, 'é o processo'. 

Tanto se automatiza e tanto tentam tornar-se eficientes que se tornam burros.

Já no outro dia, quando estivemos sem comunicações durante três dias e eu me queixei ao jovem que cá veio, respondeu-me ele: 'Três dias? Três dias está é muito bom... Tem vezes que vai quase a uma semana ou mais...'. 

E um desgoverno a gestão das equipas de manutenção da NOS. Dava um post, tal a barafunda e o mau serviço. 

Mas adiante que não estou em condições.

Tinha dito que ia fotografar o serviço de café (o tal que não é como aqueles de fundinho branco e florzinhas mimosas da VA, este é de uma fábrica na Baviera) que foi, adquirido pela minha mãe há certamente mais de cinquenta anos, por grande insistência minha. Aqui está, fotografado hoje, depois de ser desembalado e antes de ser devidamente arrumadinho num canto que lá consegui arranjar numa vitrina.


Não é lindão, mesmo?

Também estive a retirar cartas e fotografias e coisas que estavam misturadas nos sacos. Lembrei-me que estavam umas caixas grandes de cartão na garagem e já separei algumas coisas pelas caixas. Dentro das caixas ainda estão a granel e ainda devem ser agrupadas e organizadas. Mas tenho que ter tempo e disposição para isso. A menos que alguém me ajude. Mas também não sei se me apetece que se ponham a ler as cartas que me eram dirigidas, mesmo que de amigas.

Vou colocar as caixas nas estantes do compartimento do sótão que antes, quando a casa tinha outros donos, era a biblioteca privativa do senhor, apenas para as revistas e livros profissionais dele. 

Desencantei também uma saqueta com estojos de canetas. Presumo que fossem presentes que o meu pai recebeu. Claro que também não as usou. Guardou-as e agora vieram parar aqui a minha casa. Estão agora cá, numa gaveta, sem que eu também tenha uso para lhes dar.

No outro dia, em casa da minha mãe, também dei com uma coleção de leques numa gaveta de uma mesa de cabeceira. Ofereci-lhe alguns deles e só me lembrei disso ao revê-los. Ainda este verão lhe trouxe um do Algarve pois queixava-se do calor e nunca a via com leque. Afinal guardava-os todos bem guardadinhos. Como gosto muito de leques e tenho alguns que me parecem bem bonitos, coloquei um deles ao pé dos meus mais bonitos que estão como peça decorativa numa estante com portas de vidro.

Quanto às cartas do meu pai para a minha mãe, quando namoravam e ele estava longe, na tropa, a minha filha está cheia de curiosidade. Vai ficar surpreendida. Acho que vai ela, vai o irmão, vai o meu marido. Também eu estou pois desconhecia a faceta romântica do meu pai. Aposto que o meu marido nem vai querer saber, vai querer respeitar a contenção que o meu pai sempre revelou.

Estive a ver as fotografias dele quando era novo. Era um galã. Vestia-se e penteava-se de uma forma elegante e sedutora. Mas, ao mesmo tempo, era um desportista. Lembro-me muito bem dele a jogar futebol e a organizar torneios e lembro-me que fazia parte da equipa organizadora das equipas que praticavam todos os desportos. Por exemplo, os meus tios jogavam vólei. O meu pai acompanhava-os (e nem sei se também jogava, mas tenho ideia que eles é que jogavam a sério). Mas dois primos dele praticavam hóquei em patins. E eu adorava ir ver, à noite, esses jogos, sempre muito renhidos. Lembro-me bem de estar à espera deles e, às tantas, ouvir o barulho dos patins das equipas a descerem a rampa até ao campo e de achar que aquilo era uma excitação. E lembro-me de uma vez, em campo, se terem picado uns com os outros, já parecia que ia haver pancada, e de o meu pai, muito ágil, saltar por cima da barreira do campo. Pôs a mão em cima, deu balanço, e saltou lá para dentro. E eu fiquei com medo que se envolvessem à pancada com o meu pai no meio. Mas não. Com uma grande calma, lembro-me de ele ter posto uma mão no peito do primo, que era alto e bonito como um galã, do género do Belmondo mas mais bonito, e a outra mão no peito do outro, da outra equipa. E lembro-me de ele ter conseguido impor respeito e eles se terem acalmado e acabarem a dar um aperto de mão e, só então, o meu pai saiu do campo.

Mas, dizia eu, em família não me lembro de observar nele uma faceta romântica. E, afinal, ao ler as suas cartas, fico estupefacta. Ainda só consegui espreitar, e por alto, duas cartas. Sinto-me intrusa. Quem escreve uma carta de amor escreve apenas para a pessoa que ama, não para ser pasto para diversão ou especulação alheia.

Por exemplo, até as minhas cartas, as que foram dirigidas, me custa um bocado a ler. Declarações inflamadas, juras de amor eterno, diminutivos enternecidos, desenhos de corações... Bocados de um tempo passado. Já não somos os mesmos. Quem assim me escrevia já não é hoje assim e a que recebia aquelas palavras pingando amor já não sou eu. Quando me forçar a lê-las, admitindo que o consigo, terei que me esforçar para não as achar cansativamente ridículas. Felizmente não tenho as que eu escrevi senão sentir-me-ia, certamente, agoniada. E, isso, em especial, por, à posteriori, pensar que nada daquilo era verdadeiramente sentido. Se calhar, queria iludir-me, se calhar queria gostar, se calhar sentia-me bem por poder experimentar a sensação de parecer estar apaixonada. Mas na verdade não estava por aquele a quem escrevia as cartas. Portanto, ainda bem que não vejo o que escrevi. 

Mas adiante. Pode ser que um dia me apeteça partilhar aqui uma dessas inflamadas cartas de amor que recebi.

Hoje partilho uma página de uma das cartas que o meu pai escreveu à minha mãe. Aqui fica pro memoria. A sua letra manteve-se assim, firme, determinada, organizada, sem atropelos, com hastes e pernas pronunciadas. Isso diz muito da sua personalidade.


E partilho também uma das páginas da carta que o meu avô materno escreveu à minha avó. Afinal não é tão antiga quanto imaginei. Não sei onde fui buscar isso pois a carta não tem qualquer data e, como foi entregue 'por mão própria', não há carimbo. Mas penso que, no máximo, será de 1930. 

Diria que não era muito fã da sagrada arte da ortografia. Mas, na verdade, não sei se são erros ou se na altura se escrevia assim. 

Mandei antes à minha filha e ela deu-se ao trabalho de traduzir e de me enviar (porque eu estava um bocado impaciente para me concentrar nessa tarefa). Não escrevo aqui para não vos privar do prazer de tentarem descodificar por vós... 😃

Apaguei a nome da minha avó pois acho que devo manter estas coisas anonimizadas mas, por sinal, é um nome de que gosto bastante. 

Sei que eram apaixonadíssimos e que a minha avó ficou severamente abalada quando ele morreu, e ficou-o durante anos, creio para o resto da vida.


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E hoje fico-me por aqui. É tardíssimo.

Um dia feliz.

Saúde. Amor e encantamento e paixão. Paz.

sexta-feira, fevereiro 09, 2024

Eu numa fotografia, eu nas palavras que escrevo, eu nas minhas memórias -- em dia de descobertas e trabalhos pesados

 



Ainda não arrumei grande parte das coisas que vieram em sacos no sábado passado mas, ainda assim, resolvemos lá voltar hoje, só os dois, dar um avanço. 

A minha filha já tinha dito que podia ficar com um serviço de jantar, a minha nora, embora pouco convencida, disse que ainda conseguia acomodar mais um serviço de chá. E eu, não tendo nenhum deles referido um serviço de café que escolhi com a minha mãe quando ainda andava no liceu e de que sempre gostei muito, resolvi que esse viria para mim. O que elas escolheram é da Vista Alegre mas o que eu escolhi é de uma fábrica na Baviera, um desenho e umas cores completamente diferentes. Na altura a minha mãe hesitou pois era muito diferente das louças que ela tinha. Mas consegui convencê-la. Quando o desembalar a ver se fotografo para vos mostrar.

Acondicionar este tipo de louças, especialmente quando serviços completos, é muito trabalhoso e demorado e mais vale estarmos os dois sozinhos pois despachamos muito mais serviço. 

O serviço com que a minha filha ficou, disse-me a minha mãe não há muito tempo, nem chegou a ser estreado. É muito bonito. Já aqui falei nisso pois, quando ela me contou que na parte de baixo do móvel do lado esquerdo havia um segundo Vista Alegre ainda por estrear, fiquei com muita pena. Não sei para que o comprou tendo já um outro e isto para não falar de um outro, da Sociedade das Porcelanas de Coimbra (que viria a ser comprada e absorvida pela Vista Alegre) que, esse, era frequentemente usado. Não sei qual a ideia ao comprá-lo pois era óbvio que não chegaria a ser usado. Não sei se terá pensado que era um investimento. Provavelmente, mais que um investimento, um legado. Acontece que os destinatários já não têm onde guardar mais pratos, mais chávenas, mais copos. Neste caso, em particular, a minha filha diz que vai reformular a arrumação do aparador da sala de jantar para ver se lá o consegue encaixar. 

Mas o que acontece é que, porque me custa desfazer de coisas que a minha mãe adquiriu e conservou com tanto cuidado e agrado, vou trazer tudo. Fica tudo encaixotado num canto da cave e, com sorte, quando os meus netos tiverem a sua casa, virão cá abastecer-se.

No sábado tinha trazido toalhas e mais toalhas de mesa de renda e bordadas que agora tenho que ver onde as vou guardar. Hoje trouxe sacos de lençóis de linho, bordados, lençóis cheios de rendas, a dobra toda em renda, ora em bicos, ora em palas, ora a direito, ou a renda como entremeio, ou com renda e bordados, ou seja, também de toda a espécie e feitio -- predominantemente brancos com rendas e bordados também em branco. Mas vi uns de que me lembrei. A partir de certa altura, não sei bem, talvez tendo eu uns dezassete anos, a minha mãe e as minhas avós resolveram começar a fazer-me o enxoval. E lembro-me de ir a uma senhora que pregava rendas e fazia bordados para escolher para mim e de a minha mãe aproveitar a embalagem e mandar também fazer alguns para ela e lembro-me de ter sugerido que fizesse lençóis brancos com um bordado em cinza claro. Já não me lembrava do efeito mas, na realidade, estão muito bonitos. 

Pelo toque do tecido e pela forma como estão tão imaculadamente dobrados e arrumados tenho a certeza que não foram usados uma única vez. É que no roupeiro do corredor há pilhas de lençóis normais e eram esses que andavam a uso. Uns coloridos, outros com bordado inglês, outros com bordados simples. De alguns ainda me lembro de quando vivia lá. Imagine-se. Mas, portanto, todo aquele afã de fazer rendas, bordados, de escolher o melhor pano, de escolher a pessoa mais perfeccionista para fazer a obra de arte mais perfeita, foi para encher gavetas e prateleiras com coisas que não eram destinadas a ser usadas.

E agora tudo me vem parar a mim que também não uso nada disso. E fico cheia de pena, quase como se parte dos interesses ou ocupações da minha mãe tivessem sido inúteis. Na prática, como se tivesse desperdiçado parte da sua vida com coisas que, em termos muito pragmáticos, não servem para nada. Isso deixa-me triste.

Quando me encher de coragem para arrumá-los a ver se antes os fotografo. Ao menos vêem a luz do dia e podem ser observados por alguém em vez de estarem, em prateleiras no topo de roupeiros, votados ao ostracismo.

Ao tentar avaliar o volume de trabalho que ainda tenho pela frente, espreitei para dentro de alguns roupeiros. É de pesadelo. Coisas infindáveis. Mas num deles, ao tentar perceber o que me parecia um embrulho feito de tecido, fiz uma descoberta que me deixou emocionada. O vestido de casamento da minha mãe. Era estreita e magra como uma modelo. Não sei como cabia naquele vestido, lindo. Parecia-me que estava embrulhado num tecido fino, branco. Afinal, percebi despois, parece ser uma camisa de dormir, também até aos pés. Deve ter sido a que usou na noite de núpcias. Não sei agora onde vou guardá-lo. Se tivesse uma casa gigante com uma divisão a servir de museu, engomá-lo-ia, mandaria fazer uma caixa de vidro e pendurá-lo-ia lá dentro, como se vê nos museus, um lindo vestido em exposição.

E fiz uma outra descoberta extraordinária: numa gaveta da grande escrivaninha, que tem um conteúdo também infinito, por baixo de exames médicos, dentro de um envelope que estava dentro de um saco, ou seja, totalmente camuflado, estavam cartas escritas pelo meu pai quando estava na tropa e namorava a minha mãe. No endereço estava Menina tal e tal (o nome da minha mãe). Não sei se vou gostar de ler ou se vou sentir-me intrusa. Ao pegar no molho, vi que a última estava num envelope feito à mão, quase a desmanchar-se. E tinha escrito 'Por mão própria'. Uma letra muito bonita, mais bonita que a do meu pai (que é bonita). Se bem percebi, datada de mil novecentos e vintes e tais, é uma carta do meu avô materno dirigida à Menina tal e tal, minha avó. Tenho que rever a data pois, se vi bem, a minha avó pouco mais seria que uma criança. Aliás, a minha mãe, se não estou em erro, nasceu quando a minha avó ainda nem tinha dezassete anos. Tê-los-ia quase, estava por dias, mas ainda não feitos. Creio. 

E muitos envelopes com muitas fotografias. Dos meus pais em jovens, dos amigos, de primos, minhas em bebé e até adolescente, dos meus avós. Tantas, tantas fotografias. Eu deveria ter paciência e tempo livre para ler tudo o que tenho encontrado, para organizar as fotografias e todos os achados.

Mas não sei quando será que isso pode acontecer.

Comecei  também já a separar roupa da minha mãe. Fico com muita pena. Há tão pouco tempo ela ainda usava aquelas blusas, aqueles casacos, aquelas echarpes. A vida é efémera, ingrata. Sei que é da natureza, que não há volta. Tantas vezes eu dizia: 'Ninguém cá fica'. Ninguém. Mas quando nos toca a nós, de perto, as coisas ficam muito difíceis.

Ainda no início de Novembro, há três meses apenas, quando a minha mãe resolveu ir para uma residência assistida, estive com ela a escolher a roupa que ia levar. Só levou roupa de inverno porque, segundo dizia, na primavera ou no verão, ela mesma iria a casa para escolher roupa mais fresca. Estava cheia de planos. Foi carregada. Pensava que ia ainda viver muitos anos, queria levar muitas 'mudas', sempre gostou de se arranjar bem e, além disso, tinha lá amigas e isso ainda incentivava mais os seus brios. Ainda assim, nos primeiros dias em que lá esteve e antes de começar abruptamente a decair, ainda queria mais ténis, uns pares de calças de fato de treino para fazer ginástica, mais casaquinhos, mais não sei o quê. Voltei a casa várias vezes para ir procurar o que ela me ia pedindo. Tinha-se esquecido também de levar o casaco de tricot que estava a fazer, lá andei à procura disso e mais de um saco com novelos dessa lã. Em qualquer instante desses dias em que estava a fazer as malas ou a pedir que lhe levasse mais coisas eu adivinhei que, traiçoeiramente, um monstro silencioso estava a devorá-la por dentro. Dois meses e poucos dias depois estava morta. E eu pensar nisto deixa-me ainda perplexa e tristíssima. Quando escrevo ou digo ou penso que a minha mãe está morta ainda me parece mentira. Uma mentira muito cruel.

Sei que, num plano racional, pode dizer-se que a minha mãe sofreu durante pouco tempo e viveu bem, motivada e autónoma, até pouco antes de cair doente e, em pouco tempo, morrer. Mas, num plano emocional, é muito difícil.

Por exemplo, vendo aquelas suas roupas, as suas carteiras, as suas coisas, tudo ainda tão presente em mim, custa-me muito. E custa-me a acreditar. 

Estou a pôr quase tudo em montes em cima da cama dela. E tenho combinado com a senhora que a ajudava nos cuidados ao meu pai -- e que continuou a ir a casa dela no mínimo duas vezes por dia ver se estava tudo bem e que a ajudava nas compras --, que ela vai lá a casa (tem a chave), vê o que eu coloco em cima da cama, escolhe para ela o que quiser, vê se há coisas que se possam dar a quem precisar. E, se houver coisas que ninguém conhecido queira, ela mesma doa ou põe no lixo. Isso para mim é uma grande ajuda pois não tenho que ser eu a desfazer-me das coisas da minha mãe.

Ah, é verdade. Descobri também um rolo grande e grosso, atado com uma fitinha, e com um papel por fora a dizer Diplomas. Só vi o que era cá em casa. Muitos diplomas. Do meu pai, da minha mãe, meus. E, no meio, uma aguarela da autoria do meu tio, irmão da minha mãe. Lembrava-se daquela pintura. Era eu pequenina e achava que aquela pintura era insólita, inesperada, bonita. Depois deixei de vê-la. Agora descobri-a no meio dos diplomas. Estas descobertas enternecem-me.

Enfim. Irei dando notícias.

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Uma boa sexta-feira

Saúde. Força. Paz.

quinta-feira, fevereiro 08, 2024

O Montenegro quer baldar-se, os polícias metem baixa e a Joana Amaral Dias comenta --
e eu, perante este malsão panorama, acho mais saudável virar-me para as coisinhas domésticas

 

O meu marido diz sempre que temos coisas a mais cá em casa. E, no entanto, a casa está longe de paracer 'atafulhada'. Há muito espaço livre. 

Mas não consigo arranjar espaço para cá ter mais nada sem que pareça despropositado. 

A minha filha diz que, por exemplo, devíamos mesmo arranjar maneira de aproveitar a grande escrivaninha que está na sala maior da casa dos meus pais. É um móvel grande, largo e alto. Tem grandes gavetas e depois tem um alçado considerável que se fecha com a porta que, aberta, assenta em dois suportes, tornando-se zona de trabalho. Sempre me lembro daquele grande móvel e os meus filhos também. Para eles, era uma arca do tesouro. Há lá de tudo. Os meus netos também tinham o hábito de, mal lá chegados, quererem que o 'tampo' fosse aberto para descobrirem canetas, lápis, carimbos, molas, plasticinas, moldes, clips, papéis, autocolantes. Nem sei o que para ali há. 

Mas nem a minha filha tem onde colocar móvel com aquele arcaboiço nem o meu filho nem eu. E não vou pô-la na garagem. Seria um fim pouco digno para um móvel tão icónico.

Eu, que gosto tanto de decoração, sinto-me completamente limitada pois não apenas o meu marido, por ele, teria a casa quase vazia como eu própria me sinto mal em casas com coisas a monte.

Uma das noites em que quase não dormi, incomodadíssima, foi quando fomos visitar um familiar cuja casa pós-divórcio ainda não conhecíamos. Aquilo transtornou-me de uma maneira difícil de descrever. Uma grande moradia numa quinta. Mora ele e a actual mulher. Só os dois e os cães. A casa é enorme, tenho ideia que térrea mas, sinceramente, não tenho a certeza que não tenha um piso superior. Sei é que tem uma cave com a mesma área que o piso térreo. E tudo cheio que nem um ovo. Sempre lhe tínhamos conhecido gosto por algumas coisas. Por exemplo, relógios. Pois tem salas pejadas de relógios, relógios de toda a espécie e feitio, em prateleiras, de chão, vitrinas com relógios mais pequenos e delicados, até as paredes todas cobertas com relógios de parede incluindo um de uma estação de comboios. Depois tem miniaturas de comboios, linhas de comboio montadas, carruagens, máquinas, cidades e montanhas para servirem de cenário aos comboios. Salas pejadas de comboios. E por onde passávamos havia muito de tudo. Mesmo a casa, no piso térreo, tinha móveis, sofás, cadeiras, cadeirões, mesas, cadeiras, aparadores, escrivaninhas, estantes, tapetes, quadros, relógios, tudo, tudo em excesso. Uma pessoa sente-se esmagada. E, no entanto, ele estava orgulhoso. 

Eu andava por entre aquela avalancha e só pensava que uma casa assim é impossível de limpar. É que nem consigo imaginar como se mantém uma casa tão grande, tão, tão, tão cheia de tudo. 

Por aqui, por estas bandas, as pessoas de vez em quando devem redecorar as casas, desfazendo-se do que têm. Nas noites em que o carro da Câmara passa a recolher monos, por vezes, quando ando a caminhar, vejo coisas que me deixam cheia de vontade de as levar, eu, para casa. No outro dia vi um cadeirão largo e baixo, em veludo, num tom de azul alfazema escuro, em perfeito estado. Tinha uma forma elegante, pouco usual, o género de peça que pode ser o focal point a nível decorativo de uma divisão. Nem ousei dizer que gostava de ficar com ele senão o meu marido rifava-me. Mas, também, não teria onde pô-lo. No entanto, que pena uma coisa assim estar no passeio, desprezado. Numa outra vez vi uma estante alta, de boa qualidade, bonita. Quem é que se desfaz de uma estante assim? Com a falta que as estantes sempre fazem... E houve uma vez que nem queríamos acreditar. O passeio cheio de mobílias boas, móveis de excelente design e madeiras, sofás em perfeito estado, muitos. Nem percebíamos se teriam posto ali para serem transportados para outra casa. Depois compreendemos que não, pois, no dia seguinte, ainda lá estavam. Eram 'monos'. Provavelmente alguém quis vender a casa sem móveis e não se deu ao trabalho de lhes arranjar melhor destino. 

E, no verão, num pinhal aqui perto, apareceu um conjunto completo de sofás de veludo, sofá de três lugares, sofá de dois e dois individuais. Impecáveis. Até parecia que alguém, como elemento provocador, mais do que decorativo, tinha resolvido ver o que as pessoas faziam ao darem com uma espécie de sala a meio do pinhal. Ali estiveram talvez uma semana. Depois desapareceram.

E, se estou com isto, é porque ando cansada demais e sem grande pachorra para falar do Montotónegro que agora teve a peregrina ideia de se fazer representar pelo Baldasmelo* nos debates com aqueles que, pelos vistos, eles acham que é malta da equipa B.

Muito menos tenho pachorra para a tropa fandanga das polícias e afins que, entre baixas a pontapé e ameaças de toda a espécie e feitio, resolveram fazer o papelão que, antes, os professores -- a toque de caixa do baderneiro do Stop e do social-baderneiro Nogueira -- faziam. Com a diferença que, enquanto os professores se limitavam a prejudicar os alunos e as famílias e a fazer cartazes em que o Primeiro-Ministro aparecia com cara de porco e lápis espetados nos olhos, as chamadas Forças da Ordem têm a particularidade de andar armadas e de chegarem ao ponto de ameaçar com a não realização das próximas eleições. Gente fina.

Muito menos tenho inspiração para comentar o surrealismo que vi de passagem, estando a Joana Barbie-Kitada Dias a comentar os debates ou lá o que é que ela estava a comentar. Há coisas do além que a gente ainda consegue aguentar. Mas esta não.

Portanto, desculpem-me mas só me apetece dizer o mesmo que a mãe de um amigo meu, prima de umas conhecidas manas benzocas de sangue azul e já aqui algumas vezes referidas: 'Não tenho idade nem condição social para aturar isto'.

Portanto, penso que conseguirão compreender e desculpar-me: aos costumes digo nada e viro-me mas é para a arquitectura, para a decoração e coisas afins.

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Simplicity and Sophistication: TJ Residence by Lucas Takaoka 
| ARCHITECTURE HUNTER

TJ Residence, situated in Barueri, Brazil, was designed by architect Lucas Takaoka, especially for his parents. Takaoka's thoughtful choices and intricate details weave a narrative of responsibility and personal expression into the very fabric of the house, serving as a testament to the architect's profound connection to home. Dive into The Panorama of Residence TJ!


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Um dia bom
Saúde. Paciência. Paz

quarta-feira, fevereiro 07, 2024

Certidão permanente, caderneta predial, teor do artigo ou artigo do teor, matriz e o escambau.
Coisas que não sei como é que o Kafka deixou de fora
Salva-se, desta problemática, a maravilhosa casa de João Vicente de Castro

 

Continuo na minha tentativa de cumprir com as diligências. Mas parece que, em larga percentagem, me saio sempre mal.

Tento fazer como manda a lei mas não é fácil perceber o que manda a lei. Depois, faltam-me os termos e o conhecimento dos meandros das coisas. Não percebi ainda a diferença entre certidão urbana permanente, caderneta predial urbana, artigo de teor (ou teor de artigo?), matriz predial, etc.

Acontece que a casa em que viviam os meus pais, em termos dessas coisas está um bocado baralhada.

A história é a seguinte. Quando os filhos eram jovens, creio que talvez quando atingiram a maioridade, os meus avós paternos ofereceram-lhes um terreno. Os dois irmãos embrenham-se na construção de uma moradia dupla. Desenharam, contrataram técnicos e projectistas, acompanharam a construção. O meu pai orgulhava-se de que a casa levou muito mais ferro do que necessitava, queria que fosse boa construção. Eram muito jovens, os irmãos. Mas ambos levaram tudo muito a sério.

Não ligaram muito foi ao lado burocrático.

O terreno tinha uma determinada área e, depois de implantada a área habitacional, sobrou o terreno do qual fizeram respectivamente, atrás hortas e à frente jardins, uma divisão feita entre eles, daqui para ali, daquele lado da casa é meu e, de lá para acolá, deste lado, é teu.

Depois, tiveram o cuidado de ir à Conservatória desanexar a casa de cada um do edifício inicialmente registado como único. Ou seja, fizeram a divisão da coisa comum, por aquisição um ao outro. Isso está registado. Mas só desanexaram do artigo inicial, que era um todo, as respectivas zonas habitacionais especificando a área e depois escrevendo 'e logradouro', mas esqueceram-se de especificar a área de cada logradouro. Ou seja, o terreno remanescente, o chamado logradouro, em termos da certidão ou da caderneta ou do teor ou sei lá do quê, permaneceu comum já que não especificaram a área de cada logradouro que deveria ter sido desanexado tal como a zona habitacional.

Mas para eles estava tudo bem.

Além disso, em termos de IMI, cada um pagava o seu, ou seja, o correspondente à sua casa.

Até que um certo dia, na sequência da informatização nas Finanças, começou a aparecer como se as duas casas fossem uma única e em que cada um era dono de 50% de cada.

A minha mãe falava disto en passant. Chegou a ir às Finanças dizer que se tinham enganado. Presumo que não deve ter percebido nada do que lhe disseram pois, por algum motivo, se calhar por não estar esvaziada a área do artigo inicial, não corrigiram. O meu pai tinha tido o AVC e as prioridades e os problemas dela eram outras. E das minhas nem se fala. Ouvia falar disso como coisa remota, desinteressante.

Quando o meu pai morreu e se teve que fazer a habilitação de herdeiros, apareci como dona de uma parte da casa dos meus pais e de uma parte da casa dos meus tios. Um disparate. A minha mãe disse-me que vinha desse 'erro' das Finanças. E, creio que nessa altura, falou com os meus tios que também estavam admirados com tudo aquilo. A minha prima, sem tempo para coçar, muito menos tempo teve para se preocupar com tal coisa. E eu idem. Ficou.

Quando a minha mãe estava internada fui eu que paguei o IMI dela. Lá estava a pagar 50% do IMI da casa dos meus pais e 50% da casa dos meus tios. Falei com a minha prima que foi ver e disse que com os pais acontece o mesmo mas que, no conjunto, pagamos o valor correcto portanto, mais coisa menos coisa, 'que se lixe'...

Concordei. Preocupada, aflita e angustiada que andava quis cá eu saber disso.

E agora estou nesta situação absurda e sem saber por que ponta pegar. Nas Finanças falam-me em pôr em propriedade horizontal. O Conservador ri-se: 'Mas propriedade horizontal de quê? Isso era antes de eles, nos idos de 1900 e troca o passo, terem desanexado cada um a sua casa...'. Portanto, estou nisto.

Provavelmente terei que contratar um solicitador. Mas tem que ser ao mesmo tempo que os meus tios. E eles são idosos, isto deve fazer-lhes confusão, o lógico é que não sejam perturbados. E a minha prima, cheia de trabalho, ainda menos pachorra deve ter para isto.

Só que, nestas circunstâncias, para o que quer que seja, não consigo fazer nada da casa pois, para todos os efeitos, em termos de Finanças, sou dona de apenas uma parte da casa e os meus tios donos do restante. Um absurdo de todo o tamanho.

Ao ouvir-me queixar desta trapalhada, o Conservador ria-se : 'Se não tivesse recebido nada em herança não teria trapalhada nenhuma...'. Pois. Mas herdei.

Liguei para as Finanças e fiquei desconcertada, desanimada. Falaram-me em ir à Câmara. Liguei para a Câmara, expliquei. Pediram-me uma série de coisas, escritas com as siglas. Tive que ir descodificar. Mas olho para o que tenho e não percebo o que corresponde a quê. E na Câmara dizem-me que o não sei quê que devo apresentar, se quiser fazer não sei o quê, deve ser actualizado. Pergunto-lhe se está a falar daquele livrinho escrito à mão, na Conservatória, e parece que ela nem sabe de que é que estou a falar. Às tantas apetece-me desistir. Não tenho pachorra, não tenho conhecimentos para tão exigente empreitada, não tenho tranquilidade para pesquisar ou pensar nestas coisas.

E acho que tenho prazos para tratar destas coisas e receio não conseguir encontrar o caminho deste emaranhado, a tempo e horas.

Enfim. Uma seca de todo o tamanho.

E continuo com avaria de comunicações desde segunda de manhã. O operador tinha mandado mensagem a dizer que devia ficar resolvido esta terça à tarde. Nada. O meu marido ligou e agora dizem que talvez na quarta a virar para quinta. Nem televisão, nem internet, nem telefone. Só o telemóvel funciona nesta casa. É da rede do telemóvel que estou a alimentar o computador.

Está bonito, isto, está mesmo.
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Salva-se deste relambório chato para caramba, o vídeo da lindíssima casa de João Vicente de Castro. Fico perplexa com tamanha e tão bela casa. Não por acaso a Vogue faz reportagem com ela. Só conheço o João Vicente de Castro da Porta dos Fundos. Não sei se é daí que vem o budget para um casarão tão impressionante mas, verdade seja dita, é coisa que não me diz respeito.

Espero que gostem. Garanto que merece muito a pena.

Tour pela casa sofisticada de João Vicente de Castro | CASA VOGUE

No Jardim Botânico,  Rio de Janeiro, a casa de 500 m² do ator João Vicente de Castro, com reforma recém-finalizada pelo Estúdio Orth, ficou exatamente do jeito que ele imaginava: confortável, convidativa e contemporânea. Faça um tour!


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Desejo-vos um bom dia

Saúde. Ânimo. Paz.

terça-feira, fevereiro 06, 2024

Coincidências do caraças

 

Por estas bandas, a maior concentração de aniversários verifica-se nos meses em que o calor já se faz sentir. Mas, apesar disso, ainda há os que vieram ao mundo uns meses antes. Por exemplo, parecendo que não, ainda há uns aquários e como, nestas coisas, parece que gostam de se juntar, já vamos no segundo.

Por isso, cheguei a casa mais tarde. Acontece que, dado que a avaria comunicada à hora de almoço ainda não está resolvida, estou sem televisão por via normal e a net que tenho no computador está a ser fornecida pelo telemóvel. 

Ainda chegámos a tempo de tentar ver o Luís Paixão Martins mas parece que não houve. Espero que não o tenham cancelado pois, de facto, é daquelas vozes que sabe bem ouvir. Não tem medo, não tem papas na língua e é inteligente, et pour cause irónico. Se o retiraram das televisões fizeram mal.

Enfim, espero que tenha sido ele a ter tido algum resfriado ou insignificância do género e que não tenha querido estar a falar e a espirrar ou a assoar-se em directo e que, amanhã ou para a semana, esteja de volta.

Hoje também cheguei à conclusão que uma série de démarches que, na minha santa ingenuidade, convencida eu que o mundo já estava a virar digital, pensava que poderia resolver por mail enviando todos os documentos, e, ainda por cima, enviando-os de um mail certificado junto dessas instituições, afinal têm que ser resolvidas presencialmente, com papéis na mão. Um atraso de vida. Portanto, amanhã vou ter que andar a visitar capelinhas, à moda antiga.

Durante a tarde estive a dar uma volta, ainda que superficial, muito pela rama, no saco com a correspondência de que falei ontem. Há ali muito mais cartas e postais do que poderia supor.

Descobri o nome completo daquele tal meu amigo do Porto. Estive a reler várias das suas cartas. Era um aluno excelentíssimo, tinha tido 20's e 19's e, naquela altura, estava indeciso quanto à profissão a seguir. Pois bem, o google leva-nos quase até casa das pessoas. É um ilustre catedrático na Universidade do Porto, membro de inúmeros júris de doutoramento a nível internacional, publicou dezenas de artigos. Vi as fotografias dele agora. Não mudou muito. Era alto, magro e bonito e assim continua, só que agora em versão platinada, mais interessante que antes. Se quisesse poderia contactá-lo pois lá está o endereço de mail dele.

Encontrei também várias cartas do Brian, um inglês de que, estranhamente, também já não me lembrava. De Wales. Era alto, na altura parecia-me desengonçado, cabelo liso pelo ombro. Ao reler as cartas fiquei admirada: como pude varrer da memória o que, lendo agora, me parece bastante interessante? Falava do ambiente em Inglaterra, dos problemas com o IRA, do separatismo. Contudo, à medida que ia relendo, a memória parece que ia acordando. Naquela altura, lembro-me agora, era excitante eu corresponder-me com uma pessoa que me falava de temas que me eram, então, algo distantes. Tinha um cosmopolitismo que eu sentia como contagiante. Eu devia colocar-lhe muitas questões pois ele escrevia que estava a responder às minhas questões e que ficava muito contente quando, ao receber o envelope, percebia que lá dentro vinha uma carta com muitas folhas. As dele também eram grandes. Pesquisei. Com o nome dele, e tinha o nome completo, em Wales, encontrei um que foi desportista em novo e também um cirurgião. Falecido há dois anos. Não consigo ter a certeza que era o mesmo.

Encontrei também várias cartas de um amigo de liceu que viria a ser colega de faculdade do meu marido e com quem eu me dava muito bem. Digamos que se chamava Valeiro. Tinha muitos irmãos e queixava-se do barulho que havia sempre em casa. Era uma pessoa de uma franqueza extraordinária. Era diferente. Tinha interesses e gostos atípicos nos rapazes daquela idade, naquela altura. Gostava de música clássica e inventava aparelhos que eu achava fantásticos. Era um amigo com quem eu treinava a telepatia. Ele achava que eu tinha dons de divinação pouco usuais e punha-me à prova e eu gostava que ele o fizesse. 

O ano passado escrevi uma história na qual incluí diversos acontecimentos invulgares e, estranhamente, verídicos, acontecidos comigo numa dada altura da minha vida. Uma vez encontrámo-nos e ele, do nada, perguntou-me se não estavam a acontecer-me coisas inexplicáveis. Fiquei muito admirada com a pergunta e contei-lhe. Ele disse-me que não se admirava e aconselhou-me a ter cuidado. Contei isso na história. E, tal como sempre me acontece quando escrevo, às tantas, no decurso da história, as coisas ganham uma dinâmica que é independente da minha vontade. E foi assim que, na história, eu descobria, consternada, que esse meu amigo, que coloquei a viver no Alentejo, tinha morrido. Fiquei muito incomodada por estar a 'matar' um personagem que era, na verdade, uma pessoa real. Tive vontade de apagar aquelas páginas mas não consegui pois esse era o rumo que a história tinha seguido. Convenci-me que não era ele, era um personagem fictício e, embora com algum esforço, prossegui.

Entretanto, tentei ver se sabia alguma coisa dele. Googlei. Não encontrei. Procurei pelo nome de que me lembrava, digamos que João Valeiro. Nada. Tentei lembrar-me de outros apelidos. Não me lembrei.

Por essa altura, estava eu já mesmo quase no fim da história, uma amiga ligou-me. Falámos de um outro. Perguntei por esse tal outro. Digamos que Antunes. Essa minha amiga perguntou: "Qual Antunes? É que havia dois, não sei se te lembras, o Vaz Antunes e o Antunes Valeiro". E eu respondi: "Ah, pois é, tens razão. Mas referia-me ao Vaz Antunes. Sempre tratei o Valeiro por João Valeiro, nem me lembrava que também era Antunes. Que é feito dele também?" Ela não sabia do João, só que estava pelo Alentejo. Sabia, sim, do primeiro, do Vaz.

Nesse dia contei ao meu marido a graça da coincidência. "Vê lá tu que estou a escrever uma história em que entra o João Valeiro e, sem mais nem ontem, hoje liga-me a Sofia e às tantas veio à baila o nome dele, parece que está a viver no Alentejo". O meu marido lembrava-se bem dele, ficámos a conversar sobre as suas excentricidades. Eu não achava que fossem excentricidades, achava que eram apenas coisas surpreendentes de uma pessoa surpreendente.

Dias depois, estando eu a conversar com outros amigos, porque andava com aquela atravessada, perguntei se sabiam do João Valeiro. Fiquei gelada quando me disseram que tinha morrido recentemente. Nem perguntei como foi não fosse dar-se o caso de ser como eu escrevi na minha história. 

Quando contei ao meu marido, ficou incomodado. Tínhamos estado a recordá-lo, era 'rapaz' da nossa idade e, afinal, já tinha morrido.

Não tive coragem de lhe contar que, na minha história, ele também tinha morrido, deixando a personagem feminina, que eu escrevi na primeira pessoa, eu, deveras abalada.

Tive vontade de não pegar mais na porcaria da história, tão incomodada fiquei com a diabólica coincidência. Mas depois forcei-me a ser racional. Tinha sido uma coincidência (uma coincidência do caraças mas uma coincidência). Por isso, acabei a história.

Como sempre faço, no fim, peço ao meu marido para ler. Mando-lhe por mail na noite em que acabo.

No dia seguinte, o meu marido estava mal disposto. Nem queria falar. 

Quando lhe perguntei o que era, quis saber: 'Quando escreveste que o personagem do João Valeiro tinha morrido já sabias que ele tinha morrido de facto?'

'Não. Escrevi isso a meio da história. E só soube que isso aconteceu de verdade para aí há uns três ou quatro dias, já a história estava praticamente no fim. Porquê?'

'Foi o que pensei, que não tinhas tido tempo de escrever tudo em tão pouco tempo'

Quis saber o que tinha achado. 

Incomodado disse-me que tinha parado ali pois tinha percebido que eu tinha adivinhado que ele tinha morrido.

Não consegui que ele acabasse de ler a história. Acho que teve receio de descobrir mais coisas estranhas.

E hoje, ao ler aquelas cartas dele, uma pessoa tão especial, tão diferente, também me fez muita impressão. Como é possível que já não esteja vivo? E como é possível que eu tivesse adivinhado que ele tinha morrido? É que nem consegui alterar a história pois parece que tinha a certeza de que ele já não estava vivo.

Tempos depois, num almoço de verão, um outro amigo perguntou-me: 'Já sabes que o João Valeiro morreu? Foi recentemente.... Uma coisa terrível... um choque para toda a gente...'. Disse que sim mas atalhei a conversa com receio que ele fosse contar-me a causa e que fosse tal e qual como descrevi. 

Numa das cartas ele falava-me num equipamento que estava a testar, que descodificava o código de morse e enviava sinais já nem sei para onde. Estava sempre a ter ideias. E, na história que inventei, muito da trama tem a ver com uma cena engendrada por ele. Na volta, de lá, onde está agora, envia e descodifica sinais que eu, que sempre captei os seus pensamentos, consigo 'apanhar'.

Enfim. Coisas que não consigo bem explicar. Nem interessa. Mais vale ficar assim.

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Desejo-vos um dia bom

Saúde. Serenidade. Paz.

segunda-feira, fevereiro 05, 2024

Um saco cheio de cartas

 


Quando eu deixei de morar em casa dos meus pais, deixei lá ficar, numa gaveta do roupeiro do meu quarto, toda a minha correspondência. Para mim, tudo aquilo era privado. Mesmo que não tivesse nada de especial, era privado, cartas que troquei com amigas e amigos, com namorados, conversas só minhas. Claro que ali só estava o que eu recebia, não o que eu escrevia, mas ali estava muito da minha vida. 

Sempre gostei muito de escrever e, na altura, não havendo blogues, havia a correspondência. Estava sempre à espera de cartas. E escrevia longas cartas, cada carta tinha sempre várias páginas. A bem dizer, isso durou, na prática, até ir de férias para Angola, com dezassete anos acabados de fazer, pois, a seguir a isso, veio a faculdade e, nessa altura, passei a ir a casa dos meus pais apenas ao fim de semana e, como é bom de ver,  as solicitações e os desafios eram tantos que, pelo que me lembro, o hábito de escrever e receber cartas se foi atenuando. Não acabou, acho que não, mas, forçosamente, deve ter sido mais esparso.

Mas, ao sair de casa, sabendo que aquela gaveta estava cheia de cartas, centenas, creio, não quis levá-las pois tenho esta característica: sempre que entro numa nova fase da minha vida, fecho a porta e sigo viagem sem levar nada atrás. 

Por vezes pensava que, estando ali tudo tão disponível e, em especial, tendo aquele quarto passado a ser o quarto da minha mãe quando o meu pai teve o AVC (ele teve que passar a estar numa cama articulada com protecção), era natural que ela não resistisse à tentação de ler todo aquele imenso manancial de informação. Desejei que não o fizesse mas sempre pus o coração ao largo: se lesse, paciência. Nunca lhe falei naquilo nem ela a mim. Aliás, sempre pensei que, mesmo que ela lesse, não ia confessá-lo pelo que, em termos práticos, era como se não tivesse lido.

Há algum tempo, quando estive num almoço em que esteve um meu ex-namorado, ao comentar algumas coisas com a minha mãe, ela disse-me que eu ainda tinha lá em casa toda as cartas que ele me escreveu. Eu disse que sim, que sabia, e 'deixe-as lá estar'.

Neste sábado, lá em casa, ao avaliar por alto o trabalho que temos pela frente e, sobretudo, o que pode ser distribuído entre os meus filhos (e, confesso, estou bem apreensiva pois vejo neles pouca receptividade -- e compreendo as suas razões), lembrei-me dessa gaveta. 

Não tinha ideia que fosse tanta coisa. Trouxe. Um saco cheio, cheio. Está agora aqui, na cave. Não sei quando vou ter tempo e paciência mas acho que deveria minimamente organizar aquilo. 

Hoje, quando fui lá abaixo à procura de uma coisa, lembrei-me de espreitar o saco. Vi um molho de cartas que, de repente, acendeu em mim uma recordação que eu julgava apagada. Um amigo algo especial, um rapaz muito interessante, muito inteligente. Era do Porto, do Liceu D. Manuel. Conheci-o em Lisboa, encontrámo-nos algumas vezes e tenho ideia de que pintou um climinha. Terei que ler as cartas para perceber a dimensão da coisa. Mas, ao pensar nisto, não posso deixar de concluir aquilo que é mais do que óbvio: isso também aconteceu enquanto namorava aquele tal outro, embora, no caso, ainda estivesse no início. Mas é mais uma que só prova aquilo que está mais do que provado, aquele namoro foi mesmo um flop, mas um flop dos gigantes, pois foram vários os interesses que tive enquanto o namorei. Mesmo naquele mês em Angola tive um outro interesse, e esse dos valentes, um que foi um vendaval, um tufão. Porque deixei que o namoro continuasse é daquelas coisas que ainda hoje me intriga. É certo que tentei, algumas vezes, acabá-lo mas continua a ser para mim um mistério o não ter posto um ponto final mal começou, isto porque comecei a namorar sem dar por isso. Criancices, só pode.

Também lá está, no meio do saco das cartas, um outro saco. Fui ver: as cartas desse tal namorado. Foi certamente a minha mãe que lá arrumou assim. Eu sempre fui na base de tudo ao molho e fé em deus, carta recebida ia direitinha para a gaveta, estava lá eu para fazer molhinhos. Abri uma carta só para me certificar que, naquele saco, eram as cartas dele. Eram, claro. Uma caligrafia perfeita. Era das coisas que eu gostava nele, a sua letra. Sendo figura das artes e das letras, reconhecido e incensado, às tantas ainda tenho para ali algum futuro tesouro.

Tenho é também que ver se descubro as cartas de um pen friend que conheci através de um anúncio numa revista. Era africano, dizia que vivia numa zona de guerra, que passava mal. Escrevíamo-nos em francês. Eu gostava muito de lê-lo e andava sempre aflita com medo que lhe acontecesse alguma coisa. Até que deixou de escrever. Naquela altura, sem internet, as pessoas que se perdiam de nós ficavam perdidas para sempre. Tenho que ver se, pelo nome, consigo saber alguma coisa dele. Mas tenho pouca esperança.

Também deve haver muitas cartas da Jill. Conheci-a na Figueirinha, teria eu uns dez ou onze anos, não sei. Ao passo que os meus pais eram jovens, os dela pareciam avós. Eu andava dentro de água como um peixinho. E ela, muito branquinha, não sabia nadar e tinha muito receio. Brincámos muito e, por fim, já ela andava na maior comigo, na água. Foi o meu pai que a ensinou a nadar. Escrevemo-nos durante anos. Eu pasmava com a liberdade dela e com a naturalidade com que falava de coisas que, para nós, na altura, em Portugal, eram tabu. A ver se, pelo nome, consigo saber alguma coisa dela.

Tem graça isto. Eu que pensava que as portas que, ao longo da minha vida, fui fechando estavam mais do que fechadas para todo o sempre, vou agora verificando que, aos poucos, por umas ou por outras razões, parece que, mesmo sem que seja eu a querê-lo, se vão reabrindo. Tem mesmo muita graça, isto.

A vida surpreende-nos.

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Este domingo foi muito feliz. Estivemos juntos, almoçámos juntos, estivemos na praia, houve futebolada no areal. Seis renhidos futebolistas cheios de energia e amor à competição. 

Uma alegria. Adoro estar com eles, adoro vê-los juntos.

No entanto, do nada, quando regressei a casa senti uma grande tristeza. A minha mãe já cá não está. Ainda me parece mentira. Mas é verdade. Até cerca de dois meses antes dela morrer eu pensava que, à parte das doençazecas naturais da idade, ela era saudável e que iria viver ainda por muitos anos. Todos os dias eu falava com ela, em média duas vezes por dia, e, portanto, contava-lhe muitas coisas, conversava sobre os meninos, sobre os meus filhos, sobre o que calhava. Até para a distrair daquilo que eu pensava que eram sintomas de nada que ela, por medo, empolava, eu arranjava sempre mil assuntos para conversar com ela. Na última vez que conversei com ela, ela fraca, fraca, eu a perceber que a sua vida poderia estar por um fio, contei-lhe sobre a operação da Kate Middleton, sobre a estranheza pública sobre aquele longo internamento, contei da operação à próstata do Carlos, contei que o William tinha cancelado os compromissos e que, por isso, agora era a Camilla que andava em funções. E a minha filha gozou com a outra que se refere a ela como a Camela. A minha mãe ainda tentou sorrir. E agora já cá não está. E, de vez em quando, abate-se sobre mim uma grande perplexidade e uma grande tristeza.

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira

Saúde. Força. Paz.

domingo, fevereiro 04, 2024

Uma carta do meu bisavô escrita à minha bisavó antes de eu nascer.
E, para animar, 50 minutos de gaffes e momentos cómicos da RTP

 

Não sei se estou muito afim de falar do meu dia de sábado. De forma breve posso dizer que teve várias facetas desde passear à beira rio até outras tarefas menos alegres.

E vou ainda acrescentar que, tendo trazido de casa dos meus pais umas pastas de uma das gavetas da escrivaninha na esperança de lá descobrir um documento de que necessito, não apenas não o descobri como fui desencantar num envelope em que, no meio de várias outras coisas, encontrei as confrontações do terreno que supostamente tenho no Algarve a meias com a minha prima mas que, na verdade, nem faço ideia de como saber se ainda o tenho ou se já alguém o ocupou, pois, a estar registado em nome de alguém será do meu avô ou da minha bisavó (ou do meu bisavô?).

E, ainda mais surpreendente, fui também desencantar uma carta, datada de Maio de 1953, escrita em espanhol, pelo meu bisavô e dirigida à minha bisavó. Custa-me imenso perceber o que lá está pois, embora a caligrafia seja elegante, não apenas o seu desenho é algo rebuscado, cheio de pernas e hastes inclinadas, como se encontra um pouco esbatida e escrita em espanhol. Ou seja, torna-se um documento dificilmente decifrável.

Tenho estado aqui às voltas e voltas e já consegui perceber que diz que não voltou a ter mulher, que a sua vida é triste, que pensa nos filhos, que tinha perdido tudo e as esperanças também, que não podia voltar a Portugal pois não tinha documentos. E que, por não ter documentos, não podia mandar a procuração que lhe pedia a Maria.

Isto deixou-me ainda mais surpreendida. Então, a filha escreveu-lhe a pedir uma procuração... Ou seja, a filha, irmã do meu avô, uma mulher austera que cheguei a conhecer, tinha conseguido descobrir onde vivia o pai.

Este foi o meu bisavô que, tendo perdido terras e gado e casas e dinheiro, creio que ao jogo, fugiu não sei se para a Argentina ou para a Venezuela (tenho que perguntar à minha prima, talvez ela saiba), deixando a mulher e os filhos na única casa que sobrou. E supostamente deixou também o tal terreno. Se calhar, era para venderem o terreno que queriam a procuração. Não sei.

Presumo que esta carta estivesse com o meu pai depois do meu avô ter morrido. Provavelmente foi a minha bisavó que deu a carta ao meu avô. Mas também não sei. Nem sei se lhe responderam ou se o ignoraram. 

Só aqui está a carta, não o envelope. Por isso, não sei de onde vem. Aliás, o meu bisavô escreve em cima, junto à data, o local mas só percebo Constancia la -----. Não percebo a terceira palavra.

Sempre ouvi falar deste bisavô com muito desprendimento, como sendo um fraco que, tendo sido de famílias abastadas, tudo tinha desbaratado e, como se isso não fosse pouco, tinha zarpado deixando a mulher com os filhos pequenos para criar. Sempre me ficou a ideia de que ninguém na família se tinha interessado por saber do seu paradeiro.

Encontrei também o registo de propriedade de um carro de que o meu pai gostava muito, um Fiat 600 amarelo, um amarelo torrado. Já nem me lembrava disso. Na altura, tinha outro carro, um carro normal, digamos assim, mas gostava de andar neste, que era pequeno e engraçado, sobretudo para ir para o trabalho. De facto, agora que me lembro, era um carro com muita piada, muita pinta. O meu pai chamava-lhe 'o bolinhas'. Tenho ideia que foi parar a um dos meus primos. 

Enfim. À medida que formos mexendo, iremos descobrindo coisas.

Para já temos vários problemas, um dos quais, bem grande, é o da grande quantidade de livros. Ninguém tem espaço para tanto livro. Por exemplo, os Eça, os Ferreira de Castro, os Aquilino, os Camilos e etc.... Eu já os tenho e os meus filhos, não os tendo a todos, também não têm onde arrumar tudo aquilo. é que quem diz esses, diz muitos, muitos outros.

Mas, pronto, é o que é. Haveremos de ir encontrando soluções. 

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São duas e meia da manhã, estou cansada. Partilho apenas um vídeo que aqui me apareceu e que, tendo espreitado, me pareceu engraçado.

RTP - 50 minutos de gaffes e momentos cómicos


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Desejo-vos um belo dia de domingo

Saúde. Ânimo. Paz.

sábado, fevereiro 03, 2024

Helena Sacadura Cabral
[E, pouco a propósito, algumas reflexões sobre as lacunas do sistema público de apoio a idosos doentes e não ricos]

 

O meu dia foi muito ocupado. Nem consegui tempo para pegar no livro que estou a ler, A Escrita ou a Vida de Jorge Semprún. Há tempos o meu filho interrogava-se como seria se eu ainda estivesse a trabalhar. Não sei. O tempo que se perde nestas coisas não se imagina. 

Outra coisa que ele me perguntou e que também é de difícil resposta é como é que se gerem situações complexas a nível de saúde e que requerem muitos cuidados e acompanhamento a tempo inteiro quando não se tem dinheiro para residências assistidas privadas.

No caso da minha mãe esteve durante quase quatro semanas num hospital privado pois no dia em que foi internada ia a uma consulta num médico que dava lá consulta e, por estar tão mal, foi desviada para as Urgências e daí imediatamente internada. Felizmente podíamos pagar. Mas, se não pudéssemos, e, estando-se em pleno pico de Gripe A, a minha mãe teria estado horas nos corredores, em macas, provavelmente sem eu poder estar ao pé dela, certamente muitas horas até que se concluísse pelo seu internamento. E mal como de repente ficou nem consigo imaginar como seria... E digo isto pois passei várias vezes pela experiência, quer com a minha mãe quer com o meu pai, de estar com eles nas Urgências de hospitais públicos. Depois de internadas, as pessoas ficam bem amparadas nos hospitais públicos. Mas até que lá cheguem é um calvário. Qualquer coisa vai muito mal na organização das Urgências. Talvez agora com a integração que aí vem com os Centros de Saúde, talvez conseguindo retirar os que lá vão sem necessidade disso, talvez se consiga melhorar.

A minha mãe esteve na ala dos paliativos com um acompanhamento de excelência e esteve até que se considerou que o tratamento que estava a receber lá poderia recebê-lo num lugar em que houvesse enfermagem vinte quatro horas por dia e médico diário. Mas, uma vez mais, o lugar que encontrámos é privado e igualmente muito caro. Muito bom mas caro. Se não pudéssemos pagar não sei como faríamos pois, a nível público, só há Cuidados Paliativos através de referenciação ou pelo hospital público ou pelo médico de família. Mas, após ser referenciada (e isso, em si, também leva tempo), poderiam decorrer um ou dois meses (ou, se calhar, mais). Ora a minha mãe não viveria para lá chegar. E até lá? Impossível estar em casa pois o seu estado requeria cuidados permanentes de enfermagem.

Por isso, com o envelhecimento da população, cada vez (felizmente) havendo mais velhos, cada vez com mais doenças, a sociedade não está apetrechada para acolher tantos idosos com tantas maleitas. É necessário mais clínicas de cuidados continuados e paliativos e residências assistidas para quem não tem posses. Ao ver o estado em que a minha mãe estava pensei muitas vezes como seria se não houvesse recursos para pagar o que foi pago. 

Se calhar só se pensa nisto quando se passa por elas mas, se não morrermos novos e saudáveis, um dia lá chegaremos. É urgente pensar-se nisso quando se pensam em políticas públicas no domínio da geriatria.

A par das creches gratuitas, essenciais para que haja mais nascimentos e para que os pais tenham qualidade de vida, é indispensável que o Estado invista mais em instalações para tratamento e acompanhamento de idosos que requerem tratamento e/ou acompanhamento clínico. E, certamente, também mais lares normais para quem não tem posses.

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Alguns dos meus amigos têm a sorte de ainda terem mães vivas (por acaso só mães, não pais) e, talvez pelo frio que é mau amigo dos idosos, vivem tempos duros. Hoje morreu uma senhora e outras duas estão doentes. E eu vejo-os a passarem pelo que passei. É muito complicado e triste quando percebemos que já ninguém deseja as melhoras das nossas mães. Sabemos todos que, quando se começa a descer a rampa inexorável que leva ao esvaimento absoluto, o melhor que se pode desejar é que não sofra muito.

Por isso, cada vez mais me convenço que a vida tem que ser vivida, o melhor que se saiba e possa, enquanto há vida com um mínimo de qualidade. Há que dar valor à vida. Há que agradecer a vida que se tem enquanto não se entra na rampa descendente.

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Se há pessoa que mostra dar valor à vida é Helena Sacadura Cabral. Podemos nem sempre concordar com ela, podemos não apreciar grandemente os seus dotes literários, podemos não elegê-la como a nossa guru intelectual ou espiritual. Não tem mal. Não deve haver muita gente que cumpra todos os nossos requisitos.

Helena Sacadura Cabral tem 89 anos e vejo-a com alegria, com motivação, com planos, com energia, com sentido de humor, com prazer em partilhar memórias, experiência, acções. E acho isso notável. Penso que é exemplar e todos nós deveríamos pôr os olhos nela.

Por isso, hoje partilho este vídeo que é longo mas que é um gosto ver e ouvir. 


N'A Caravana com Helena Sacadura Cabral #226 Charutos, 89 anos de amor e sacos de alfazema

É licenciada em Economia e ocupou vários lugares de chefia na Administração Pública. Colunista de diversos jornais e revistas e comentadora em televisão, é também autora de vários livros (talvez já vá em 50). Concilia ainda a participação cívica com a atualização dos seus blogues.


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Um belo sábado
Paz. Ânimo e alegria. Paz.