Não posso olhar apenas para o hoje. Em todas as eras houve maldições, êxodos, desesperanças. E se alguma coisa me causa estranheza é apenas que a espécie humana, ao contrário de outras, nada aprenda.
O aperfeiçoamento natural, fruto de experiências anteriores, não acontece com as pessoas. Encontramo-lo em animais que vivem no fundo do mar, nas mais inóspitas escarpas, em grutas onde o ar mal circula. Mas não nos humanos.
Em nome de religiões, de racismos, de guerras fraticidas do passado, em nome de qualquer coisa, os homens viram-se uns contra os outros, esquecem séculos de civilização (e falo em séculos porque sei como a memória é curta, senão diria milénios) e, sem pesos na consciência, regridem aos tempos da escravatura, da barbárie, da mais rudimentar selvajaria. A espécie humana é autofágica.
O que se passa com os refugiados é disso prova. Pessoas como nós fogem à guerra e à miséria, despojados dos seus bens, dos seus familiares, de afectos, de tudo, atravessam mares, caminham pela noite. Procuram a paz, esperam encontrar o futuro. E nós, os que ainda não fomos tocados pela gangrena da miséria absoluta, indiferentes.
Sujeitos à abjecção, tratados como indesejáveis animais, deitados pelas ruas, ao frio e à chuva, acantonados em tendas, vendo frustrado o sonho em nome do qual arriscaram a vida, os refugiados vivem o grau zero da dignidade humana. E nós, os locais, indiferentes.
Nem imagino o que estas pessoas sofrem. Nem imagino.
E ver o sofrimento -- humano, tão humano -- destas pessoas reconduz-me à minha condição de cúmplice. Envergonho-me de mim.
A solução para um problema desta dimensão não a conheço. Tem que ser construída. Se fossemos gente de bem, unir-nos-íamos para estudarmos como pôr fim a tamanho sofrimento. Saberíamos ajudar estas pessoas no seu país ou, se impossível, saberíamos acolhê-los com humanidade.
Não são gestos individuais que podem travar esta calamidade -- todos os dias a morrerem nos mares, todos os dias a virem em carrinhas sem condições, vítimas de um asqueroso comércio. Sinto que as minhas lágrimas de nada servem quando vejo as lágrimas indefesas de gente igual a mim.
A selva de Calais está, e bem, a ser esvaziada. Aquele era um zoo imundo em que se enjaulavam pessoas que, coitadas, se tornavam violentas, más, perigosas.
E aqueles milhares de pessoas, que deixaram a vida para trás e sofreram todas as dores para chegarem até lá na esperança de alcançarem um imaginado el dorado, um reino unido que os receberia de braços abertos, vêem-se agora divididos em grupos e transportados para outros alojamentos, mais longe da fronteira dos seus sonhos. Voltam a separar-se de amigos, voltam a ver o seu destino à mercê nem sabem de quê.
Na despedida da selva, abraços e lágrimas. Arrastam malas com mudas de roupa e agasalhos que lhes foram doados. Uns partem para uma nova paragem do desconhecido acreditando que a sua vida um dia fará sentido, outros vão tristes, sem asas, sem amparo, temendo novos perigos.
E nós aqui sem querermos saber de nada.
Mostram-lhes um mapa de França, pedem-lhes que escolham e, consoante a escolha, assim são encaminhados. Muitos escolhem ao acaso (Na madrugada do do 1º dia da evacuação de Calais) |
Desespero e esperança no campo de refugiados de Calais
(17 de outubro de 2016)
Evacuação da 'jungle' de Calais: a manhã de segunda feira
(24 de Outubro de 2016)
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Para um registo completamente diferente (e para o caso de serem como eu -- assistir ao sofrimento é tão insustentável que, perante a minha humilhante impotência, sinto necessidade de mudar de assunto), desçam por favor para verem o que é uma declaração de amor a preceito.
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