sábado, fevereiro 11, 2012

Eu e o marido da minha amiga, ao telefone


Uma leitora amiga deixou-me ontem nos comentários um prudencial conselho: que eu estou a 'cutucar a onça com vara curta', que eu devia ter mais cuidado com a mulher do meu amigo, que as mulheres são perigosas. 

É verdade, eu sei, sou mulher, sei como somos. Mas penso que não há problema, a mulher do meu amigo, minha amiga também, é uma querida. E eu também sou, ora essa.

Por isso, não se assustem, acho que não corro riscos de maior. E, de qualquer forma, o risco, na dose certa, dá um picantezinho gostoso à nossa existência.

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Música, por favor.


Natalie Merchant - Motherland

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Como seria de prever, hoje voltaste a ligar-me, cedíssimo. 


Eu estava ainda no carro, ia para o trabalho, tu tinhas estado a correr, disseste-me e, pela respiração  ofegante, dava para perceber que era verdade e eu gostava de esclarecer se a tshirt era preta ou azul escura mas fiquei-me com a dúvida; depois ias para o duche na casa de banho do gabinete, antes de começares a tua jornada de trabalho. E eu pensei que a seguir colocarias Acqua di Gio mas não disse nada, longe de mim atrapalhar-te o raciocínio. Que tinhas estado a fazer horas para eu sair de casa, que és decente - arfaste possesso. 

Eu caladinha, já estava à espera desta reacção, nestas coisas primárias és muito previsível. Que eu pare com isto, que brincadeira de mau gosto vem a ser esta?, que não estás a perceber qual a ideia, que não devo estar a ver bem os danos que posso causar a ti e à tua família e também a mim própria, e mais isto, aquilo e o outro.

Mas, meu amigo, já te expliquei, gosto de escrever, isto é ficção, é uma historiazita à toa. E, de resto, quem lê estas singelas palavras? Apenas umas centenas de pessoas e, como falámos ontem, as probabilidades de alguém ser nosso conhecido são remotas. Sabes bem disso. Mas que mal tem? Ficarem a saber que começas a beber chá e acabas a beber cerveja? Que drama...!

No entanto, como andas stressado - a tua mulher bem se queixa disso -, o teu sentido de humor é inexistente. Furioso, já me gritavas: mas que estupidez, parece um ajuste de contas! - e eu ri-me, inocente, mas que contas em comum é que nós temos, homem de deus?, que parvoíce a tua, já eu não posso dar largas à minha verve?, olha que tu…!

Depois, fulo da vida mas apreensivo (embora disfarçando – só que eu conheço-te bem, escusas de disfarçar), querias saber o que a tua mulher queria comigo. Deves mesmo estar muito cansado e enervado para perderes, desta forma, a compostura habitual. Orgulhoso e convencido, sempre a achares que és o maior (e os prémios que tens recebido ainda mais te alimentam o ego), eis-te agora a descer do pedestal, mostrando insegurança. Então isso é coisa que se pergunte, meu amigo...? Achaste, porventura, que eu te ia dizer? Não me conheces?

Mas, pensa, qual o espanto? Não sabes que sou amiga dela há tanto tempo? Trocamos confidências, e embora sejamos tão diferentes como o dia é da noite, gostamos de conversar, o tempo passa a correr quando estamos juntas. Não sabes isso?

E continuei: Tem é que ser só eu e ela porque, em grupo, como sabes melhor que eu, parece que fica possuída pelo espírito da tia condessa, um sorriso permanente, uma leveza que a torna ainda mais aérea, conversas soltas, uma simpatia que quase se liquefaz de tão doce. Mas, quando estamos só nós duas, é outra coisa; não que seja muito diferente mas, pelo menos, é mais focada, menos radiosa. De qualquer forma, apesar do longo convívio, sinto sempre que ainda não a conheço na totalidade. Aliás, nunca compreenderei como é possível ser-se assim como ela é, leve, aérea, etérea, permanentemente predisposta ao pecado mas sempre na mais cândida das inocências.

O quê?! O que é que disseste?! Pecado?!– perguntaste, sem perceber o alcance da minha afirmação, mas já incomodado.


(Fingi que não ouvi e continuei o monólogo). E depois, de vez em quando, aparecem umas pontinhas soltas. Imagina que ontem, antes de nos separarmos, tirou da carteira um post it, a letra não era a dela, com o nome de um livro, A Democracia e os Mercados na Nova Ordem Mundial, do Chomsky. Dá para acreditar?! Queria saber se eu conhecia. Fiquei espantada. Quando lhe perguntei para que era, se ia comprar, se era para ela, quem lhe tinha recomendado, riu-se, aquelas gargalhadas dela, cristalinas, tão cristalinas que não conseguimos perceber se são de alegria genuína ou se aquilo é uma qualquer forma de canto.

Irritaste-te: que diabo de história é essa? Chomsky, sabe lá ela quem é Chomsky? Estás a inventar!, já gritavas. Com muita calma perguntei-te qual seria a razão para inventar uma coisa destas. Mas como os homens são muito primários, tive que te avisar: olha, não lhe fales nisto, não vá ser algum livro para te oferecer…

Chomsky? – perguntaste admirado e já a aceitar isso como provável. Os homens são mesmo infantis.

Disse-te ainda que para a semana, quando estiveres na China, vou lá um dia a tua casa para estar com ela, só nós duas, vamos fazer uma coisa, uma experiência nova para as duas. Aqui sorri, tenho este lado de bad girl, e aguardei pacientemente o fim do silêncio que se fez do outro lado.

Durou algum tempo, devias estar a equacionar hipóteses, até que perguntaste, irritado: estás parva? Esclareci que não. Então que raio de conversa é essa!? Educadamente lembrei-te que estava no carro, a caminho do trabalho, que estar num carro fechado a receber telefonemas em alta voz com gente aos gritos não faz parte dos meus hábitos de higiene auditiva e mental; além disso estava a chegar, ia entrar no parque de estacionamento subterrâneo, ia perder a rede, (senti que não acreditaste mas olha que era verdade), desejei-te boa viagem para a China e sucesso nos negócios e pedi que não quebrasses a confiança que tenho em ti, que não comentasses nada com a tua querida mulher.

Silêncio, não foi? Ficaste imenso tempo calado.


Insisti: Espero que cumpras. Senão processo-te (e ri-me)... Olha, a propósito: por causa de outra coisa, podes dar-me o número de telemóvel da tua amiga advogada? Agora tenho que desligar, manda-me por mail ou por sms, ok? Se não tiveres tempo, deixa, eu ligo para a tua secretária. Beijos.

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E tenham, meus Caros, um belo fim-de-semana!
  

8 comentários:

Maria disse...

Jeitinho amiga:
Bad girl! Que másinha! De verdade ou, em imaginação, está a pôr o homem de rastos. Mesmo sabendo que a curiosidade matou o rato (no caso o rato sou eu), estou morta por saber mais. Se isto não é verdade, há muitas histórias destas. Os homens e algumas mulheres, mereciam apanhar com a minha amiga à perna.
Ai, ai, ai! Já está o meu lado bad girl a vir ao de cima. É que estou a divertir-me muito com esta história. Não pare agora. Enquanto ele está na China é que é. Talvez descubra o "advogado" dela. Não falou em pecado? Vamos a ele.
Será o jardineiro bronzeado e boa pinta? O motorista já entrado mas, com uns olhos lindos e cabelo prateado?
Conte depressa. Não me deixe à espera. Adoro tricas destas.
Beijinho
Maria

A Matéria dos Livros disse...

A ideia de pecado será incomodativa. A esposa poderá ter, terá de certeza, a sua vida calada. Mas, para mim, o que torna este homem e a sua história mais interessantes é a falha na vida perfeita: a sua insatisfação, os seus anseios não partilhados, apesar de ser o amado esposo da esposa dedicada e o objecto de todas as admirações.
Porquê tanta irritação com as histórias da amiga "blogger"? As aparências, os olhares dos outros, são assim tão importantes?

Teresa Santos disse...

Jeitinho Manso,

Começo a ficar condoída com a aflição, a incerteza, o medo do nosso herói.
Do stress passa à fúria, da fúria à apreensão, da apreensão ao espanto. Pecado?
"Pecado" palavra tabu, palavra proibida no código de conduta atribuído à SUA mulher.
E para que tudo ainda fique mais confuso: Chomsky?

Enquanto que os homens têm muito de infantil, a mulher tem muito de sageza, no que isto tem de bom e mau.

E estou curiosa.
Como seria esta história se estivéssemos perante uma heroína?

Qual será a reacção da mulher quando tiver conhecimento que uma qualquer suposta advogada foi ter com o marido? Que este a esperava ansioso? Que quando ela se afastou ele ficou destroçado, com as lágrimas a correr sem sombra de pudor?

As mulheres, no seu pragmatismo, são impiedosas.

E que venha a continuação da odisseia.

Beijinho.

Um Jeito Manso disse...

Mary, my friend Mary,

O que eu me divirto sempre com o que diz. As suas observações são um desafio!

Eu gostava de lhe fazer a vontade, contar montes de tricas, lágrimas, desesperos, etc, mas eu só conto o que tenho para contar. Ou coisas de verdade ou coisas imaginadas, a coisa só se escreve quando se escreve por si.

Não sei se hoje vou conseguir escrever alguma coisa disto, não aconteceu nada de especial para contar.

E já é tarde...

Mas, se ainda me der para isso, fique descansada.

E, se um dia destes, por aqui não aparecer já sabe, é porque algum deles me impediu à força...

Um beijinho, Maria e obrigada - as suas palavras são um incentivo!

Um Jeito Manso disse...

Olá Leitora de A Matéria dos Livros,

O seu comentário surpreende-me. A ideia de pecado é incomodativa...? Não acho nada, acho até bastante confortável (se é que confortável é o contrário de incomodativo.

Não sabe porque é que ele anda irritadiço, enervado, tenso? Eu sei, sei muito bem. Mas não conto...

E se para um homem assim a opinião dos outros é importante...? Então, não? Eu, um dia, explico...

-> Já vi lá no A Matéria dos Livros o seu belo texto, belíssimo. Que bem escreve, que bem, a oficiante das palavras.

Um beijinho, Leitora.

Um Jeito Manso disse...

Olá Teresita,

Eu leio os comentários e começa a vir a vontade de desatar a escrever.

Homens em stress, que vivem em picos de adrenalina, com muita reunião, muita entrevista, acabam por viver também num equilíbrio instável. Precisam de um 'lar' estável mas precisam também de momentos disruptivos e, por vezes, a coisa escapa ao controlo, e ficam frágeis como crianças.

Conheço bem estas situações.

E sei também que a vida se processa em camadas: as que se vêem, as que se escondem, as que se imaginam.

E, pelas suas palavras, vejo que a Teresita também percebe bem estas várias faces (ou facetas) da vida. Leio as suas palavras e sinto que se adequam muito bem a estes seres que habitam a minha vida (ou a minha cabeça).

A ver vamos como me vou sair desta história.

Muito e muito obrigada, Teresa.

Leonor disse...

UJM, estou mesmo a gostar. Nesta narrativa temos um homem angustiado (a cujo sofrimento e, depois, mal-estar vamos assistindo), uma narradora hábil e cada vez mais insinuante e uma mulher/ amiga cujo vulto já tínhamos avistado e que aqui ficamos a conhercer melhor... pelo olhar da narradora/ amiga. Acho que estas personagens vão continuar a surpreender-nos e aguardo novas tessituras.
Um beijinho de bom domigo.

Um Jeito Manso disse...

Leonor d'allure,

(Apeteceu-me escrever assim, em vez de 'de Alhures' - embora não tenha a ver)

E a ginástica que eu tenho que fazer para não revelar mais do que devo, para mostrar mas não tudo, para evidenciar as camadas ocultas mas sem ser indiscreta...?

E o tenho que evitar para não ser óbvia? E o que tenho que ajeitar para não arranjar problemas...?

Ou melhor, o que eu tenho que imaginar para isto fazer sentido?

... e o que eu me divirto a fazer isto...?

Tomara que vá conseguindo manter o interesse de quem lê, é o que é!

Um beijinho e um bom domingo, Leonor!