sexta-feira, dezembro 06, 2013

Leonor - jantar de Natal e noite de amor






Nem pareceria que já estamos em época natalícia se não se fizesse sentir este friozinho agudo, este sol que não consegue esconder a humidade das folhas caídas. 

Por ali, então, a névoa matinal, o frio que se entranha, a neblina que envolve o entardecer, as noites gélidas são a regra. Faz parte da mística do lugar, dizem.

O grupo está, uma vez mais, reunido na grande casa que se esconde entre altas árvores, muralhas, escadarias e muros cobertos de hera. Lá dentro a grande lareira está acesa como sempre mas agora há também aquecedores a gás espalhados pela casa. O frio parece emanar das paredes de pedra e, sem um suplemento de aquecimento, o lugar em vez de acolhedor seria inóspito. A sala brilha agora com os dourados envelhecidos de uma grande árvore de natal decorada com objectos antigos, raros. E existem mais velas acesas do que é costume, o que transmite um ar de ainda maior aconchego e, num recanto, está o presépio que a mulher de Manuel arranja em conjunto com a cozinheira e restantes empregadas da casa.

Por esta altura reúne-se aqui o grupo do costume mas agora com os respectivos cônjuges. É o jantar de natal. Leonor é a única mulher da equipa de gestão e não traz companhia. Aliás, os colegas, por vezes, na brincadeira, insinuam estranhas preferências como justificação para o facto de não ter companheiro que se lhe conheça. 


Estão, portanto, as mulheres dos colegas; já se conhecem umas às outras e é costume, mal se encontram, retomarem, com animação, a conversa que tiveram na ocasião anterior em que se estiveram juntas. Falam quase ininterruptamente, reportando os acontecimentos familiares desde a última vez ou comentando as notícias que preenchem os tempos que correm: filhos que estão a estudar ou a trabalhar fora, as conversas via skype, as saudades, o receio de que por lá fiquem, e espantam-se com a imbecilidade destes ministros, riem-se da imaturidade e cretinice de alguns secretários de estado, e mostram preocupação pela devastação que o governo está a levar a cabo e que empobrece toda a gente e o país no seu conjunto. 

Leonor enturma-se com elas. Nota-se nas senhoras uma certa curiosidade em relação a esta colega dos maridos. Leonor fala também de assuntos correntes, desliga-se de assuntos profissionais quando conversa com elas. De resto, se há várias que não trabalham nem sabem o que isso é, outras há que são médicas, professoras ou reformadas e que, portanto, têm uma visão muito concreta do que é a vida.

Está também a mulher de Duarte embora ele não esteja. Foi ela a atracção principal no início da conversa. Toda a gente se lhe dirigiu para saber como está ele. Maria João explicou que está bem mas que não o tem visto, que não recebe visitas, que está a fazer uma cura de sono, que teve um esgotamento e dos sérios, que os médicos recomendaram um internamento para poder dormir, descansar, desligar-se de tudo. As outras mostram preocupação, querem saber pormenores. O que sentia? Como estava? Não tinha percebido? Como foi?


Maria João explica que foi progressivo. Que o marido chegava tarde a casa, que andava cansado, irritadiço, que tinha insónias, que andava desconcentrado, que os comprimidos que tomava parece que já não faziam efeito, tomava mais e nada resultava e que estava a emagrecer a olhos vistos. Que, a dada altura, chegou a desconfiar que ele tivesse outra mas que afinal ele estava mesmo era arrasado. E que parecia que não conseguia relativizar os problemas, que tudo era motivo para o deixar ainda mais em baixo. E que, depois, outras vezes andava eufórico, que até custava a aturar de tão doido que ficava. Que chegou a temer que ele se tivesse tornado bipolar.

Enquanto Maria João falava, Leonor temia que ela, na sua inocência, voltasse a falar em cortes de ordenados ou coisas do género que levassem as outras a perceber que a história estava mal contada. Mas ela não falou no assunto e Leonor descansou. Mas receava também que alguém, ao ouvi-la, através de um sorriso ou palavra em falso, cometesse um deslize e ela percebesse que, sim, que ele tinha mesmo outra, sempre, já muitas, ou que alguém piedosamente lhe explicasse que ele namorava como se tivesse necessidade de se sobre-ocupar a todos os níveis, e até a nível amoroso. Mas não ocorreu nenhuma inconveniência e Maria João, com naturalidade, foi prosseguindo a sua conversa. Aliás, num aparte, Maria João tinha-se chegado a ela e, num tom de voz muito baixo para que ninguém ouvisse, tinha-lhe pedido desculpa por aquele telefonema de dias antes, que naquela noite estava assustada, tão preocupada, sabe lá o que aquilo foi.

Leonor disse-lhe que ela não tinha que pedir desculpa, que percebia perfeitamente, que a vida no mundo doss negócios, especialmente agora, é muito stressante e que, às vezes, as pessoas se vão abaixo, mas que tudo ia ficar bem, que ele, repousando, estando uns tempos afastado do stress do dia a dia, iria ficar bom.

Duarte tinha aceitado tratar-se com a condição de ninguém, nem no trabalho nem na família, saber qual a verdadeira causa do problema. Leonor tratou de tudo, falou com médicos, acompanhou, aconselhou e apoiou Duarte. Para todos os efeitos, diriam que ele ia tratar-se de um esgotamento nervoso, que iria ficar internado para fazer cura de sono. Depois teria um período de baixa para continuar a ser seguido.
Entretanto, Duarte tinha começado a dizer que ia largar o emprego, que iria viver para o campo. Mas quer os médicos, quer Leonor o aconselharam a que deixasse os planos para depois.
Maria João não soube o que se estava a passar tal como não soube da intervenção de Leonor. Aliás, ninguém soube.
Por várias vezes Afonso tinha perguntado a Leonor se sabia o que se passava com Duarte e ela tinha mantido a mesma versão: parece que estava à beira de uma depressão ou de um esgotamento, seja lá o que isso for, e de tal forma devia ser, que os médicos o mandaram internar.


Neste jantar não está também a mulher de Afonso. De resto, foi uma surpresa para toda a gente. Quando não a viram, toda a gente lhe perguntou por ela. Com ar descontraído, informou que se estavam a separar. Os próprios colegas ficaram a saber naquela altura com excepção de Manel a quem ele tinha dito antes. Algumas senhoras ensaiaram um ar compungido mas alguns dos colegas levaram o caso para a brincadeira, Pois o que seria de esperar? Quem é que atura um tipo destes? E outro, mais malandreco acrescentou logo, Parece que a coisa correu tão, tão mal que ela até terá trocado de gostos: parece que o trocou por uma e não por um. Afonso riu-se, via-se que era assunto que não o incomodava.

Leonor ouvia e sorria, como se o assunto para ela fosse tão irrelevante como para cada um dos restantes.

O jantar foi requintado como sempre mas, desta vez, houve uma inovação: juntou-se à cozinheira um chef conceituadíssimo que preparou algumas iguarias de tipo cozinha de fusão e, em conjunto, serviram uma surpreendente ementa de degustação. A qualidade e criatividade das receitas animaram ainda mais o ambiente que, no entanto, se manteve no mesmo registo suave, adoçado pela luz das velas.

Mais para o fim do jantar Leonor sentiu um pé a subir pela sua perna. Afastou-o quase sem se mexer e continuou a conversar como se nada se passasse. Admitiu que fosse Afonso mas ele também conversava naturalmente com as pessoas do lado e nada no semblante o poderia denunciar.

No final, a cozinheira e o chef vieram saber se tinha estado tudo bem e toda a gente louvou e agradeceu a arte e a perícia que eles tinham demonstrado na confecção da refeição. Depois, na mesa da sala, havia uns saquinhos com umas lembranças.

Despediram-se com boa disposição e, em alguns casos, com verdadeira estima pessoal. Leonor lamentava que o seu amigo Dr. Lampião e a mulher, uma senhora muito querida, não estivessem, mas era sabido que, mal Dezembro começava, eles não descansavam enquanto não rumavam a norte. Por lá as temperaturas exteriores são frias mas o seu coração aquece-se com o calor do reencontro dos seus. Nem a ele, nos mails que trocam, Leonor tinha contado o que se estava a passar com Duarte. Dir-lhe-á mais tarde, e só a ele, pessoalmente.

Quando se estavam a despedir uns dos outros, Duarte que, como de costume, estava de moto, como quem não quer a coisa disse a Leonor, Hoje está para além de boazona. E esse vestido fica-lhe a matar… Posso ir conferir como estamos de underwear?

Leonor com o ar mais normal do mundo, os outros vendo-os a conversar daquela forma pensarão que estão a falar de trabalho, respondeu-lhe, Hoje quero serviço de massagem. Tem competência para isso? Se tiver, dispenso o massagista brasileiro que contratei e arrisco pôr-me nas suas mãos.

Pelo caminho, noite fria e escura, estradas ladeadas por grandes árvores, Afonso foi a serpentear na estrada, ora ultrapassando o carro de Leonor ora deixando-se ultrapassar.

Leonor entrou na garagem, Afonso estacionou no passeio.

Quando Afonso tocou à campainha já Leonor o esperava. Afonso zangou-se, Mas o que vem a ser isto? Já despida? E toda despenteada? Querem ver que me atrasei...? Já aqui esteve o massagista brasileiro ou quê?

Leonor olhou-o e, em voz baixa, perguntou, Estou mal?
- Não... Mas é que estava tão boazona, queria tê-la assim só para mim. E queria ser eu a despi-la devagarinho. 
Olha para ele, que abusador... Mas ainda não percebeu que está aqui só como massagista? Por isso, vá lá, profissionalismo, se faz favor.
- Então, vá, vamos tratar do ambiente. Vou escolher uma música apropriada. Vá-se pondo a jeito. Já sei, Agnes Obel. Vai gostar. Ouça. Deixe-se ir.






 
- Vá, não lhe disse para se pôr a jeito? Deite-se de barriga para baixo. E feche os olhos, não olhe assim para mim... senão não respondo por mim. Sinta as minhas mãos no seu corpo. E descontraia. 
Leonor respondeu, Eu estou descontraída, você é que está desfocado. Concentre-se na massagem e pare você de olhar assim para mim.
- O que é que quer? Sou um simples amador. Se quer profissionalismo, se calhar é melhor chamar mesmo o brasileiro.
Leonor disse, toda ela malícia, Já é tarde para isso senão chamava-o e você ficava a ver... para aprender. Mas daqui a nada você tem que se ir embora, e ainda temos que dormir alguma coisa. 
- Mas, ó Leonor..., nem hoje me vai deixar ficar cá a dormir...?
Nem pense. E vá, se não tem competência para me dar uma massagem, ao menos dispa-se e venha aqui para o meu lado.


Afonso despiu-se, pegou num papel e num lápis que estava na mesa de cabeceira, e provocou, Sim, doutora. Diga lá então o que é que quer que eu faça agora, mas diga tudo, step by step, dite que eu escrevo que é para não falhar nada.

Leonor olhou-o nos olhos, toda ela entrega, sedução, gozo, Largue o papel. Não vou dizer nada. Improvise. Faça o que quiser. No fim logo toma nota de algumas acções de melhoria. Agora não. Agora limite-se a provar do que é capaz.

E ele assim fez.



THE END


*****

As músicas são, respectivamente:
  • Have yourself a little Merry Christmas, por Melody Gardot e 
  • Close Watch por Agnes Obel

Este é o último episódio desta história. Dei-lhe o nome de Leonor e Afonso e pode ser lida de seguida, (do primeiro ao último episódio, de baixo para cima, claro) se procurarem esse título nas etiquetas aí em baixo do lado direito. Se quiserem ler apenas o episódio de ontem, está aqui: Duarte - a queda do belo albatroz 

*****

Sobre a morte de Madiba poderão descer um pouco mais que está já aqui a seguir.

*****

E, por hoje, é isto.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta feira!

6 comentários:

bons temposhein disse...

Muito bem. Um fim pacífico e sedutor.
Há segredos entre amigos que, por isso mesmo, nunca se divulgam.

Apenas um detalhe de somenos: Será que a ex de Afonso o trocou pela menina do "volluto"? Se assim foi, teve bom gosto, "orientações" à parte, claro...
:)))

jrd disse...

Reparo agora que o comentário saiu em nome do bth. Trata-se do lapso. Troquei as mãos...mas sou eu!
Peço desculpa.
Abraço

Tété disse...

Olá Tazinha. Muito bem mais uma vez, mas parece-me que neste ultimo episódio se referiu ao nome de Duarte quando queria dizer Afonso. Certo? Mas não faz mal porque a história está perfeita.
Cá vou andando a fazer companhia ao meu convalescente,com o tempo a escassear mas graças a Deus está tudo a correr bem.
Beijinho e bom fim de semana.
Teresa

Um Jeito Manso disse...

Olá jrd,

Percebi de quem se tratava, fique descansado.

E obrigada pela indicação da troca de nomes do outro comentário. Desde o início que andei a trocar as mãos com os nomes deles. Para a próxima vez que escreva uma história não posso escolher nomes do mesmo género senão dá nisto.

Ainda por cima, como escrevo directamente aqui e acabo às quinhentas, quando chego ao fim já não consigo reler. Por vezes de manhãzinha, arranjo uns minutos para reler mas desta vez foi-me impossível. Só à noite vi a sua indicação e depois vi-me aflita para corrigir. Ler comentários e publicá-los a partir do telemóvel é fácil mas corrigir é impossível (eu, pelo menos, ainda não sei fazê-lo).

E como fui para casa do meu filho, só quando lá cheguei consegui corrigir e isto com as crianças a mexerem no rato do computador, a quererem carregar nos botões, etc, e eu a ver que ainda dava cabo do texto todo...

(O que eu sofro...).

Quanto à ex do Afonso, dava para eu fazer uma historiazinha bem caprichada... Mas, enfim, é época natalícia e tenho que ter cuidado :)

Obrigada por tudo.

Um abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá Teresa-Teté,

Tem razão: tinha mesmo trocado conforme já acima referi pois o Caro jrd também já me tinha chamado a atenção. Olha se isto fosse na vida real e eu, querendo referir-me a um, me saía o nome do outro... Que crise de ciúmes poderia despertar... já viu?

Ainda bem que o seu doente já não está doente. Tomara que ele já se sinta bem. O tempo frio não é grande coisa para isto mas, com sorte, ele nem dá por isso.

Beijinhos para a enfermeira Teté e muito obrigada.

Bom fim de semana!

Olinda Melo disse...


Querida UJM

Gostei muito deste conto, um verdadeiro Conto de Natal. No fim sentimo-nos confortados com as coisas a entrarem nos eixos pelo lado de Duarte e, também, com uma história de amor a iniciar-se, tendo como protagonistas, Leonor e Afonso.

A escolha das imagens, excelente.
E a música também, de muito gosto.

Obrigada.

Beijinhos

Olinda