Este fim de semana éramos para ir ver a exposição das naturezas mortas na Gulbenkian mas não fomos, curiosamente havia uma inacreditável fila de gente. Desistimos, vamos mais tarde. Mas, de qualquer forma, almoçámos no restaurante do CAM onde almoçamos há mil anos, ainda as crianças eram pequenas.
Acho que já aqui louvei o local – a comida é exactamente a mesma desde o início dos tempos, os empregados os mesmos (simpatiquíssimos), a (óptima) frequência do local a mesma.
Para quem goste de se cruzar com gente das televisões, dos teatros, até da ala mais cultural da política, é o sítio indicado.
E as exposições, os jardins, tudo aquilo é garantia de uma tarde muito bem passada e é um local que está enraizado dentro de mim.
Mas agora lembrei-me disto porque na fila para o almoço (para quem não conhece, aquilo funciona como numa cantina: nós vamos seguindo com o tabuleiro e vamos escolhendo o que queremos) estava atrás de nós uma mulher de uns quarenta e picos anos com a filha, uma jovem adolescente. Sem querer, nós íamos ouvindo alguns bocados da conversa e estávamos até incomodados.
A mulher, bonita, com bom ar, era, no entanto, uma pessoa que cansava qualquer um ao ponto de ouvirmos a miúda, às tantas, dizer, com ar saturado, que tomara poder ser dona do seu próprio destino, poder ir onde lhe apetecesse. Outras vezes a miúda, com ar cansado, dizia, ‘mas oh mãe, porque é que não posso falar, quem é que aqui nos conhece para não podermos falar…?’.
Se a miúda dizia de um amigo qualquer que era um cromo, que não andava com ninguém, a mãe dizia, com um ar fatalista, que então também ela o devia ser porque também não andava com ninguém. Se a miúda falava de um outro amigo ou amiga, a mãe dramatizava: ‘a vossa relação não anda bem, pois não...?'. Depois dizia que tinha deixado de ir ali porque lhe fazia lembrar o tempo ‘em que vinha com o teu pai’ e, pelo teor da conversa, percebemos que estava divorciada.
E o estranho é que tinha um sorriso pregado ao rosto, como se quisesse mostrar que estava tudo bem com ela mas, coitada, de cada vez que abria a boca, tudo lhe saía com um tom perturbado.
O meu marido de vez em quando afastava-se um bocado, dizia que já não a podia ouvir.
No entanto, eu olhava para ela e era uma pessoa que, se conseguisse tirar a tonelada que carregava em cima, seria certamente uma mulher interessante. Assim era apenas uma mulher complicada. E uma mulher complicada repele qualquer alminha, especialmente qualquer alminha do sexo masculino.
Das mulheres divorciadas ou solteiras tardias que conheço e já aqui o disse, o que verifico é que tendem a achar-se vítimas, ou sentirem que são mais exigentes que as outras, ou menos afortunadas do que o comum dos mortais ou, então, quase que se sente que existe uma espécie de vergonha mal disfarçada, como se fosse um pouco por incompetência sua que estão assim, sem ninguém.
Uma familiar muito próxima, uma mulher muito bonita, elegante, cosmopolita, um cargo de direcção numa das organizações mais conhecidas do país, divorciou-se depois de muitos anos casada, depois de os filhos já serem adultos. Ele tinha-se apaixonado por uma colega, estava de cabeça perdida, um amor dos antigos. Ela não queria acreditar. Dizia que não era possível que numa altura em que deveriam começar a gozar a vida, sem os encargos de filhos pequenos e quando imaginou que iriam viajar, ‘gozar a vida’, ele a trocasse. E ‘a outra’ nem era mais nova, nem mais bonita, nem nada. Achou uma injustiça, maldisse a ’outra’, não descansou enquanto ele não lhe contou os pormenores (quem, há quanto tempo, quando, como), não descansou enquanto não arranjou maneira de ir ver a outra, fez coisas impensáveis, irracionais, e, perante o marido, implorou-lhe que não a deixasse, humilhou-se, sujeitou-se a tudo e mais alguma coisa - e ele, pura e simplesmente, não a queria mais. Depois de um drama impensável, lá se separaram. Ele apaixonado como um menino, ela desfeita.
Venderam a casa, cada um adquiriu sua casa. Ao fim de pouco tempo ele separou-se da sua namorada. Esta minha familiar de novo cheia de esperança, a vida toda em suspenso à espera que ele voltasse para ela. Mas ele nem aí. Ao fim de pouco tempo voltou a arranjar nova namorada e hoje vivem juntos, felizes, um casal.
Ela sozinha, triste, infeliz, abandonada, injustiçada, eternamente apaixonada por ele, lembrando os tempos felizes de casamento.
E, no entanto…
Nunca achei que aquele casamento fosse um casamento saudável, pelo menos tal como eu imagino um casamento saudável.
Havia uma dependência doentia. Quando ele chegava ao trabalho, ela queria que ele lhe ligasse. Quando ele saía, ela queria que ele lhe ligasse. Quando estávamos juntos, se ele atendia o telemóvel, logo ela queria saber quem tinha sido. Se estávamos ao sol, já ela se inquietava se não seria melhor ele ir buscar um boné. Se estava frio, já ela ia buscar um pullover para que ele não se constipasse. Se ele se estava a rir e a dizer disparates, já ela estava a repreendê-lo. Toda a atenção dela sempre esteve no marido. Era dedicada, atenta. Mas era também ciumenta e insegura.
No entanto, ela é giríssima enquanto ele é um homem normal (embora tenha aquele charme e humor que os homens com algum excesso de peso às vezes têm).
Desde que me lembro, ele sempre teve uma vontadinha irreprimível de pular a cerca e ela sempre, sempre a fazer marcação cerrada. E, quanto mais ela o tentava controlar, mais ele arranjava maneira de tentar pregar a partida.
Que me lembre (ou que eu saiba), durante os tempos radiosos de casamento feliz que ela recorda saudosa, teve ele dois casos. Nós sabíamos e ele sabia que nós sabíamos - era mais do que óbvio que ele andava de caso - mas ela nunca o soube porque nunca quis ver o óbvio. Durante esses períodos em que ele se andava a encontrar às escondidas (e nos intervalos dos telefonemas de controlo) com outra, andava ela desconfiada a querer saber onde é que ele tinha estado que ela tinha ligado e ele não tinha atendido ou que telefonema tinha sido aquele que ele tinha atendido na varanda. E, em simultâneo, andava também a arranjar programas, jantares, festas, de modo a tê-lo sempre ocupado, entretido.
Nunca, durante o longo e feliz casamento, eu vi esta bela mulher feliz, descontraída, segura, a gozar o casamento. Nunca. Andava sempre ou a tomar conta dele, ou a servir-lhe o prato, ou a perguntar-lhe se estava bom, se queria repetir, ou a ir buscar-lhe o casaco, ou a perguntar se ele queria alguma coisa, ou a desconfiar, ou ciumenta, ou a queixar-se que ele não lhe dava muita atenção, ou que se ria muito com as outras pessoas, mais que com ela. Sempre a censurá-lo, sempre a espiá-lo, sempre a controlá-lo, sempre a ajudá-lo.
Eu achava que era demais. Por mais que eu lhe dissesse para o deixar em paz, para não andar sempre na marcação, que o deixasse rir, telefonar, sair, nunca conseguiu dar-me ouvidos porque, quanto mais ele se queria escapulir, mais ela o queria agarrar. E, se ele se aborrecia e se zangava, ela entrava num sofrimento, chorava, dizia que ele já não gostava dela, ficava numa tristeza, lamentava-se, e ele lá lhe jurava amor, fidelidade, lá se rendia.
Quando ele resolveu deixá-la não me surpreendi. Tive imensa pena dela mas percebi que, com a maneira de ser dele (e dela), outra coisa não era de esperar.
Sendo eu muito amiga dela, percebia perfeitamente que, no casamento, era uma chata.
Num casamento, tal como numa qualquer relação, a liberdade é fundamental. Ninguém deve controlar ninguém, tal como ninguém deve sentir-se responsável por tomar conta do outro, ninguém deve estar na relação por obrigação, por dever. Em cada momento, deve-se estar sempre de espontânea vontade.
E deve respeitar-se os silêncios, os segredos dos outros. E, não se deve querer possuir o outro, ou a vida do outro.
Os ciúmes matam uma relação. A desconfiança mata uma relação. A vitimização ou a insegurança matam uma relação.
A cada momento, sem direitos adquiridos nesta matéria, estar um com o outro deve ser uma opção. Sem compromissos, sem promessas. Estar um com o outro deve ser bom, deve ser uma coisa leve, festiva, divertida.
E deve haver igualdade. Igualdade no investimento, na dedicação, na entrega. E deve haver interesse mútuo, partilha de interesses, carinho, tolerância, ajuda.
E, se a coisa correr mal, não se deve ficar a carpir, a sofrer: é lutar, discutir, ir à luta. E depois esquecer, sem mágoas, sem ressentimentos, sempre um recomeçar de novo, sem passivos, sem cobranças. Curtir. Ter prazer. Descobrir. Festejar.
E, claro, se a coisa der para o torto e uma das partes já não estiver nem aí, é ir cada um à sua, na boa, sem dramas. E recomeçar - que a vida se fez para ser vivida e não recordada ou imaginada. Para a frente é que é caminho e o que está para a frente é apenas futuro (e as coisas boas do passado, apenas as boas).
[Nota 1: Foi basicamente esta minha ideia do que é o casamento que eu 'preguei' no casamento da minha filha (com excepção do último parágrafo - que não ia estar no casamento da miúda a pôr a hipótese da separação, como é óbvio),
quando mal consegui ler o que tinha escrito, ideia não muito canónica mas, enfim, é o que eu acho.
Nota 2: Fiz as fotografias no Centro de Arte Moderna (CAM) e nos jardins da Gulbenkian e, claro, não têm nada a ver com os casos referidos no texto.
Nota 3: Na
Música no Ginjal hoje temos Yuja Wang a interpretar Mendelssohn. Uma maravilha.]