Na altura disse-o e hoje volto a referi-lo. O futebol, tal como muitos outros espectáculos, vivem muito de patrocínios. Um patrocínio consiste geralmente em uma empresa contribuir financeiramente através de pagamento de utilização de espaços para publicidade ou através do financiamento de eventos em que usa a ocasião para se publicitar. Geralmente compra bilhetes para os espectáculos ou tem camarotes. Quando compra bilhetes, 'cadeiras' ou camarotes está a garantir receita de bilheteira. E depois, tendo esses bilhetes disponíveis, a empresa financiadora oferece-os a quem quer: a clientes, fornecedores, colaboradores, familiares de colaboradores, gente conhecida.
E isto é o normal. As empresas para que tenho trabalhado costumam patrocinar eventos ou clubes. Por isso, poderia ususfruir. Como sou um bocado bicho de mato não costumo aproveitar mas já tenho usado ingressos que me estariam destinados para os meus filhos e amigos. E muitos colegas meus assistem regularmente a desafios de futebol ou espectáculos desta maneira.
Se os clubes de futebol, os concertos, os espectáculos de qualquer tipo não tiverem patrocínios dificilmente se aguentam. E, como se pode facilmente perceber, se os patrocinadores não arranjarem quem dê uso aos ingressos que adquirem ficará desagradável ver os lugares vazios.
E vem isto a propósito de um absurdo que há tempos aconteceu e que enlameou estupidamente três pessoas honestas.
Os jornalistas que estão carecas de saber disto, com a falta de escrúpulos que caracteriza tantos, passaram por cima disso pois querem é arranjar títulos e polémicas. E a 'malta', que vai atrás de todos os ossos que são atirados para a via pública, logo desatou a ladrar, a morder, a querer despedaçar. A 'malta' gosta de pisar quem vai ao chão, a 'malta' gosta de sangue, em especial do sangue daqueles que acha que são 'poderosos' -- como se trabalhar num governo fosse a mesma coisa que pertencer a um gang de ladrões.
E vem isto a propósito de uma das pessoas honestas que foram vítimas da sacanagem que com eles fizeram: João Vasconcelos, que morreu esta semana e sobre quem Ferreira Fernandes escreveu no DN a crónica que abaixo transcrevo quase na íntegra.
Eu escrevo, assim: "João Vasconcelos, ex-secretário de Estado da Indústria, morreu." Primeiro, o nome do homem extraordinário, para que se saiba logo a extensão da perda; e, de seguida, nunca escondendo a palavrinha fundamental que deixei escrita na frase do meu anúncio: ex. É, temos de pensar na palavrinha.
Ex, pois. Quando o João Vasconcelos morreu aos 43 anos, nesta semana, era um ex há quase dois anos. Evidentemente, não para os seus, nem para os que profissionalmente continuavam a beneficiar da sua inteligência e rasgo. Mas uma crónica de jornal é dirigida para o público e, oficialmente para os portugueses, ele estava assim: ex. E quem perdia com isso eram os portugueses.
João Vasconcelos governou-nos, deixara de nos governar e dificilmente haveria um governo que voltasse a interpelar os portugueses sobre a tentação de o trazer para o natural lugar dele: querem voltar a tê-lo como ministro?
Já perdemos a noção da diferença entre um escândalo e um escândalo fátuo. Em havendo canzoada, vergamo-nos. "Eh pá, ele teve aquele problema... - Mas qual problema?... - Sim, sim, eu sei, não foi bem problema, mas..."
Enfim, mas. Esse argumento definitivo a que se vergam as sociedades assustadas pelo coro com os escândalos verdadeiros, os assim-assim, os nem por isso... Então, ele já era um ex-político quando morreu. Infelizmente para nós todos, o que nos remete para a obrigação de pensar a causa e o efeito da tal palavrinha, ex.
João Vasconcelos tornou-se um ex-governante por causa de um bilhete de futebol para jogo do Campeonato Europeu de Futebol. Ele e mais dois secretários de Estado aceitaram um convite para um jogo e a viagem em voo fretado pela empresa patrocinadora da Federação Portuguesa de Futebol, a Galp. Fez-se um caso, os secretários de Estado ainda pagaram as despesas de que beneficiaram, mas abriu-se um inquérito, eles foram constituídos arguidos, demitiram-se. O Ministério Público abandonou o assunto e uma juíza quer prossegui-lo. Em todo o caso, para o que diz respeito à nossa perda, era isto quando ele morreu: João Vasconcelos, ex-governante.
Os jornais chamaram Galpgate ao caso, os jornalistas nem foram admoestados por falta de imaginação nos títulos (o que é um erro profissional?), os diretores dos jornalistas não foram incomodados por terem ido com os mesmos bilhetes grátis (a hipocrisia é um erro moral, e então?), e o segundo político mais famoso comentador político desta vez não comentou, pois fora visto nesse verão de 2016, indo e vindo a Paris, com os seus habituais cachecol e bilhete de borla... Mas o facto foi: João Vasconcelos saiu definitivamente da coisa pública, passou a ex.
(...)
Mas o que aqui me traz, mesmo, é sublinhar a defesa do nosso interesse. O nosso, o de todos - lembrar como a histeria do patrulhamento leva, por razões fúteis, a perdermos os melhores. A modernização da indústria portuguesa, a evolução industrial da digitalização, o regresso dos nossos jovens mais qualificados - e nem meto siglas para impressionar, Web Summit, Startup Portugal, Indústria 4.0, porque não quero impressionar, quero que sintam a perda - enfim, expulsámos da nossa empresa, Portugal, o político João Vasconcelos, por causa de um bilhete de futebol. Não se entende. Pensem no tamanho desperdício de João Vasconcelos não nos ter governado nos derradeiros dois anos da sua já de si curta vida.
Nos últimos meses, conheci-o pessoalmente. O interesse era todo meu e, confesso, cronista da espuma das coisas com que construí a minha carreira, ele atraiu-me pela dimensão do "não se entende" como o Portugal político (metam políticos nisso, mas sobretudo a canzoada popular, incluindo a manhosamente organizada) o desperdiçou. Acontece que nos últimos tempos, porque diretor de um jornal, isto é de uma indústria de tão dramático presente e ainda mais de futuro promissor, precisei dele. Sabem? Paguei-lhe dois almoços e, confirmou-se a frase feita, não foram grátis. Fiquei a dever-lhe uma fortuna: fiquei ambicioso quando já não me pensava virado para aí.
O João Vasconcelos falou-me do pequeno e ágil, do bem feito e do ousado. Do mundo que nos espera, quanto mais cedo soubermos melhor. Tinha a cara de boxeur como a imagem das luvas com que um dia posou. A última vez que o vi, passou montado na ironia: uma trotineta que anunciava à Galp que ela tem de se reinventar... E, numa destas manhãs, quando soube, no que pensei, mas logo, foi logo, em mim: perdi-o. Calculem agora o que Portugal perdeu.
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Se calhar não faz sentido, num texto destes, estar aqui a colocar cantorias, cerejeiras em flor ou bailados mas eu gosto de aqui ter cor, música, voos e não creio que isso desvalorize as palavras. Pelo contrário, a minha intenção é que respirem, que, quem as lê, possa fazer pausas, deixar que elas melhor irradiem.
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