segunda-feira, março 25, 2019

Um dia in heaven
[E uma noite a preparar a semana que já aí está --- e um casal muito especial que vive em montanhas diferentes]





Às sete e tal da manhã uma mensagem. Tinha deixado o telemóvel a carregar na sala. Já estava sozinha na cama. Durmo com um madrugador. Já andaria nos seus passeios por entre arvoredos e orvalhos matinais, quando os verdes ainda estão azulados pela frescura da noite. Levantei-me, ensonada, para saber o que seria àquela imprópria hora da manhã. Desde que troquei de telemóvel comecei a habituar-me ao convívio com um ser inteligente e pespineta, cheio de opiniões mesmo que a despropósito. Era o caso: não era uma sms mas uma notificação. Dizia-me qual a temperatura e a humidade relativa do local. Só me apeteceu mandá-lo bugiar mas consegui não descer a esse ponto. Deixei-o lá e voltei para a cama. Soube-me tão bem, a cama quentinha e eu ainda com tempo para dormir. Enrosquei-me e foi até às dez. Acordei a ouvir lá fora o som da escada. Era ele a entrar em casa e a arrumá-la. Pensei que já devia ter desramado os dois cedros gigantes que tinham sobrado da véspera. Levantei-me. Fui ver. Era. O chão estava forrado com uma densa e perfumada manta de ramos de cedro. 

Ali mais à frente, eram ramos de azinheira. No sábado, ao fim do dia, tinha andado a alguns metros de altura, com o serrote na ponta, a serrar os ramos grandes que estavam a vergar na direcção do telhado do estúdio. Pensei que não fosse conseguir mas conseguiu. Cá em baixo, muitos ramos enormes. 

Mais longe, grandes ramos de pinheiro que, ali no chão, quase pareciam pinheiros autónomos.


Voltei para casa, lavei-me, vesti-me ao de leve, comi uma banana, uma laranja, meia dúzia de miolos de amêndoas, bebi um café e parti para a luta. O meu marido arrastava os grandes ramos lá para baixo. Peguei no serrote que já pouco corta e fui cortar mais ramos de pinheiro, de azinheira e aroeira. Uma luta.

O José Ferreira Marques recomenda uma serra eléctrica de bateria. No outra dia à noite fomos ao Leroy e vimos lá uma delas mas é daquelas de corrente e o meu marido tem uma cisma com correntes. Temos uma. Melhor: duas. Uma a gasolina e outra eléctrica. Ambas de mão, não destas telescópicas. Em ambas, ao fim de minutos a corrente solta-se. Não posso ajudar: aparelhos eléctricos desse género não são a minha praia. Podendo parecer que não, a verdade é que tenho um acentuado lado feminino. (Se calhar, dizendo isto, torno-me machista). Mas as coisas são o que são. Tal como nunca atinei com mudança de pneu ou lavagem de carro na bomba automática, também não me dá para pegar em rebarbadoras, roçadoras, berbequins ou serras eléctricas. Quando o vejo passado a tentar pôr a corrente à volta da lança, tento ajudar. Mas, de facto, não consigo. Aquilo ali é um karma. Não se percebe como há tanta gente que se ajeita com uma serra eléctrica e nós é isto, uma tremenda falta de pouca sorte. (Ou isso ou falta de jeito).


Gosto de desbastar árvores. Olho para elas e vejo o que está a mais. Não podendo cortar fartas cabeleireiras de mulher, coisa que tanto gosto de fazer, limito-me ao escasso cabelo do meu marido e às minhas bem amadas árvores.

Depois fui também carregar os ramos, os que eu tinha cortado e os que ele tinha cortado. Os ramos mais pesados são os de cedro. Pesam toneladas. Verdes, densos, com aquelas bolas que adivinho cheias de sementes, pesadas. A distância é grande e eu esgoto-me a puxar aqueles pesadelos. 

Lá ao fundo, o meu marido fazia a fogueira (autorizada, sacramentada). Não se imagina o braseiro forte, não se imagina a força do calor do inferno que dali se solta. Mas o lustro, o brilho de óleo que refulge quando a chama lambe os ramos do pinheiro radiata é o mais surpreendente. Bonito. A azinheira crepita, a aroeira frige, o cedro inflama. Mas o pinheiro derrete primeiro a sua essência. É um instante bonito e breve. Logo será nada. Um imenso mar de ramagens fica reduzido a um insignificante montinho de cinza. E só isto deveria ser suficiente para nos reduzirmos à nossa insignificância.


O meu marido disse que, de manhã, enquanto comia uma maçã, se pôs a contar os ramos que cortou do cedro grande e que pensa que foram pelo menos cinquenta. Ninguém imagina o quanto temos reduzido as ramagens das árvores. Os técnicos florestais chamam-lhe combustível e eu, que sou sensível às palavras, assusto-me e corto o que posso.

Mas, com tudo isto, apenas almoçámos às duas e tal. De tarde, adormecemos. Mas antes e depois estivemos a ler uns livros incomuns, mas mesmo muito incomuns, sobre história, arquitectura e tudo o que se possa imaginar em torno disso. Foi um amigo que me emprestou, antevendo que eu iria gostar. O autor é senhor de muita cultura e muito humor.  De facto, há pessoas extraordinárias e uma pessoa que se põe a escrever livros daqueles só pode ter uma personalidade invulgar. Num dos livros fala muito do nosso primo presidente. Era primo da minha bisavó. A minha avó, que o designava assim quando falava no primo Manel e eu lhe perguntava qual era esse, lembrava-se de ele ter sido recebido na cidade em grande festa e de, ao passar por elas, a ter puxado por um braço e a ter levado a cavalo com ele. Era pequena, claro.


Andei também a fotografar, dentro e fora de casa. Reflexos nos vidros, relances, uma rola pensativa. Também uma das pequenas estantes com dvd's. Houve uma altura em que víamos muitos filmes quando lá estávamos. Uns eram comprados, outros vinham com os jornais, outros nem sei. Olho para eles e, em relação a alguns, tenho dúvidas que os tivesse comprado. Mas a vida é assim mesmo, com curvas, desvios, alçapões. E tudo bem. E vejo que um dos miúdos riscou o banquinho amarelo. E vejo também que as aranhas estiveram entretidas a tecer entre os pés do que foi a máquina de costura de uma das minhas avós e que agora é uma mesa com tampo de azulejos. E só agora o vi pelo que ainda lá ficaram. Para a semana as teias estarão mais compostas. 

Bem. De volta à cidade, vinha de desejos de um gelado. Ao domingo à noite fico de desejos, em especial de kumkuat ou gianduja. Juraria que não estou grávida, que isto é só gula. Mas já era quase oito da noite, a gelataria estava desgraçadamente fechada. Uma carência. Ainda estou assim, de apetites. Não está certo, não se nega um desejo a quem muito o deseja.


Cá em casa já fiz uma máquina de roupa, uma panela de sopa, um tachinho de papas de aveia para o pequeno almoço de amanhã, um tabuleiro de lombinhos de porco no forno. E já pintei as unhas e já arrumei roupas e etc. E sei lá que mais.

Há bocado concluímos que temos trabalhado que nem uns mouros. Pensei e disse-lhe: 'um dia que a gente se reforme, temos que descobrir coisas que fazer para nos mantermos ocupados'. Ele disse que eu sou é maluca, que é justamente ao contrário, que espera é que nessa altura consiga tempo para descansar.

Se calhar tem razão. Mas eu gosto de fazer coisas, não me imagino sem ter o que fazer.

Bem. É tarde e já escrevi demais. Uma parladeira, é o que sou. Mas só a escrever. Ao vivo, sou contida.

É verdade: ontem enganei-me. Não eram flores de marmeleiro, eram de pereira. Hoje quando estava ao lado da pereira, fui cheirar as florzinhas e pensei: 'olha que burra, então ontem fotografei as flores e fui confundi-las com as outras.'. Fica a correcção.

Também, a propósito de falos, fotografei a antes erecta flor do aloé. Agora está como aqui abaixo de vê, murcha. É a vida. Daqui por uns meses volta-lhe o vigor. Dir-se-á que meses de intervalo não é grande performance. Mas, como dizia o outro, é a vida.


E agora permitam que partilhe um vídeo muito bonito. Um estilo de vida que me atrai. A paz do campo e das montanhas envolve a alma e eu cada vez preciso mais disso.


Uma boa semana, a começar já esta segunda-feira.

9 comentários:

  1. Eu tenho uma serra eléctrica (black & Decker?) sem corrente. Não tem bateria, mas tenho uma extensão de 25 metros e há maiores...

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  2. Curioso, há dois ou três dias também andei a fotografar DVDs, mas só do Woody Allen.
    Quase 30, nem sabia que tinha tantos.
    E ainda dizem que não há coincidências...
    Muitos também foram comprados com os jornais. Que eu saiba eles não oferecem filmes, apenas os vendem mais baratos, o que já é muito bom :)
    Boas sessões!
    Maria

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  3. Francisco de Sousa Rodriguesmarço 25, 2019

    Olá!!

    Isso é que foi serviço, por isso é natural que estivesse cheia de desejos.
    Até hoje os meus desbastes de árvores foram sempre à força de braços, mas flora que requeira mais que uma tesoura só tenho 3 exemplares. Já tenho plantadas duas oliveiras e um castanheiro, mas só daqui a bons anos darão trabalho.

    Lembrou-me uma coisa engraçadíssima, mudanças de pneus, o primeiro carro da minha mãe era com pneus de câmara-de-ar, aquilo nos três anos que tivemos o carro foram aí uns 7 ou 8 furos, claro está que nem havia aquela noção da possibilidade de chamar o reboque, pelo que ficámos profissionais nesse serviço.

    E como não há uma sem duas, as suas lides de final de domingo fizeram-me lembrar uma tia minha, muito dada às limpezas, que quando alguém lhe liga depois de andar na azáfama faz logo o relatório de serviço - "fiz uma panelão de sopa, uma tachada de jardineira, limpei as casas".

    Uma semana do best, do melhor para a UJM.

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  4. Não sei onde vai buscar tanta energia!

    Gostei muito das fotos!

    Uma boa semana também para a UJM:))

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  5. Olá José,

    Voltei aqui atrás para lhe agradecer: essa informação alegrou a nossa existência. Se encontrarmos essa ferramenta mágica, veremos a nossa qualidade de vida melhorar substancialmente.

    Muito obrigada.

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  6. Maria,

    Pois não sei se os dvds eram dados ou com desconto. Se calhar era isso, mais baratos. Apenas me lembro de virem com o jornal. Em tempos idos. Tristemente já não compro jornais.

    Um bom dia para si.

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    1. Olá, bom dia,

      Eu ainda tenho umas recaídas de vez em quando.
      E agora raramente saem filmes com os jornais, todos "sacam" os filmes da net.
      Não me recordo se a Ujm gostava do Bergman, mas a Fnac está agora com os filmes dele a 5€.
      Quando penso que dei 25€ pela Flauta Mágica...
      Se quiser rever algum, fica a sugestão.

      Um bom dia para si também.
      Maria

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  7. Olá Francisco,

    Mas é que sou mesmo assim. Quando relato o meu dia, ocorre-me sempre rematar com os afazeres domésticos onde se incluem panelas de sopa, máquinas de roupa, coisas assim.

    Sou uma mulher de trabalho, uma proleta, uma rústica. E o pior de tudo, o que revela que tenho pancada: gosto de trabalhar, de fazer coisas destas, de dar-lhe no duro. Serrar, varrer, lavar a cozinha e as casas de banho, lavar o chão. Gosto. Mas cada maluco tem a sua mania, certo?

    E isso das árvores sabe como é: sabedoria é a gente plantar uma árvore à sombra da qual nunca se sentará.

    E, no entanto, no meu caso, cresceram tanto que já dão uma sombra de dar gosto.

    Um dia feliz para si, Francisco.

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  8. Olá Isabel,

    Energia...? Sabe lá... Um sono desgraçado. O que se passa é que devo ser sonâmbula. Por exemplo agora se não estou a dormir disfarço bem.

    Beijinho, Isabel!

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