terça-feira, março 31, 2020

A terra apareceu coberta de musgo e esse verde dourado quase iluminou o meu dia




Acordei cedo e, como sempre, ao levantar-me, logo abri a porta de vidro e a portada e saí para a rua. Mas, de imediato, arrepiei caminho. Um frio, um cheiro a terra molhada, as gotas da acácia branca a caírem-me em cima. Até exclamei: 'É lá... mas o que é isto?!?'. Pensava que estava a falar sozinha mas o meu marido ia a passar, vindo da rua, e disse: 'E esteve a chover com força. E muito frio. Vê lá o que é que vestes'. Como ando sempre à fresca, tem medo que eu me ponha doente. Deixei as portadas exteriores abertas mas fechei a porta de dentro. Quando me vesti, tive que estudar a indumentária. Quando, à pressa, fizemos a trouxa para virmos para o exílio, não pensei que tinha que me prevenir para este inverno que veio ensombrar a primavera nem que aqui iríamos ficar, sem ir à cidade buscar mais coisas, durante muito tempo.

Felizmente, no outro dia, estive a dar uma volta à roupa desandada, que, por falta de moda, desajuste de número ou desengraçamento, já de pouco préstimo tinha na cidade e que em boa hora, nos idos, pensei que aqui, no campo, num just in case, poderia vir a ser útil. Retirei do fundo do roupeiro uma blusinha já demasiado justa e cor de pele que tinha rejeitado por quase me fazer parecer despida, um colete de veludo quentinho, acolchoado, que sempre me pareceu demasiado campestre, uma blusa preta excessivamente quente, uma blusa lilás num fio que me parece já ilógico -- coisas assim, desirmanadas, vintage até dizer chega. Lavei tudo, não quis voltar a vestir coisa com ar de resto, mofudo, coisa com aquele ar desajeitado que têm as coisas que querem ressuscitar. E foi isso que hoje me valeu e que amanhã e depois também me devem valer. Ponho um colarzinho, uma écharpe, uns brinquinhos e já me acho apresentável. Hoje até me apeteceu pôr um perfuminho. Tenho um frasquinho na maleta do computador. Mas depois racionei. Quem sabe um dia aqui, no degredo, ainda vou precisar. Nunca se sabe. Também não alteraria o visual. De qualquer forma, por videoconferência disfarça, não dá para ver pormenor -- tento eu convencer-me. É que não apenas já preciso de variar como está um frio absurdo, e estas peças, por datadas que sejam, pelo menos não me fazem estar a bater o dente.


O dia foi atarefado. Esta coisa apanha-me a meio de processos que estou a tentar manter em movimento e que acrescem à profunda mudança que, num ápice, se operou na maneira de trabalhar e de viver.

O almoço e o jantar foram restos dos dias anteriores, as favas com entrecosto do almoço de domingo que bem apuradinhas estavam, e peixe cozido com batatas e legumes com que fiz uma salada. Por isso, não tive que confeccionar comida. Por volta da uma e meia despachei-me do primeiro turno, peguei no telemóvel e fui telefonar à minha mãe. E, então, enquanto andava, apercebi-me de um milagre. Fiquei fascinada. Vim a casa, quase a correr, e peguei na máquina fotográfica. E fotografei: de ontem para hoje, tal a força do frio, da chuva e desta terra que antes era pedregosa e que agora é tão fértil, o musgo medrou, macio, alto, fofo, verde quase dourado. Sente-se a macieza só de olhar. Nem passei a mão, não precisava: mais macio que veludo, que lã de seda, que olhar de namorado.

Fotografei, fotografei. É a minha maneira de guardar a eternidade das coisas mais belas, mais efémeras. 

Se não estivesse aqui não tinha assistido a este milagre. Em tudo, em todos os momentos, mesmo nos mais incertos, há breves instantes em que a harmonia do mundo converge na mais insignificante das coisas, torando-a única, infinita como infinitas são as coisas que tocam o nosso coração.


A tarde continuou. Reuniões. Todos se interrogam, todos temem. Ninguém disfarça. Ninguém se aventura a adivinhar qual será o cenário mais provável. Pedem-se salvaguardas para que, no caso de uma catástrofe, pelo menos haja com que pagar os ordenados. Faço de conta que não me deixo afectar com o que ouço. Mas afecta-me: sinto que, por dentro, tenho vontade de me emocionar. Como é que, no espaço de tão pouco tempo, chegámos aqui? A dimensão e a desolação da cratera que pode sobrar, no fim disto tudo, assusta.

À noite, ao telefone, o meu filho traçou cenários. Fala naquilo que será o mais inteligente, aguentar o tecido económico mesmo que a duras custas: não despedir, pagar os ordenados, resistir, não deixar que as empresas vão à falência. É isso mesmo.

Mas quantas empresas conseguirão resistir? E o pequeno comércio? E os trabalhadores individuais? E a gente do mundo dos espectáculos? Tanta gente que vai passar dificuldades.

Mas, mesmo por essas pessoas, por todos, em especial pelos mais pobres, pelos menos seguros, temos que resistir. Fechados em casa, longe dos nossos, preocupados com a saúde dos mais frágeis, mas quebrando as pernas à curva de contágio, defendendo-nos de males ainda maiores.


O tempo passa a correr e em todos os momentos há instantes que cintilam. Um mail bom que recebi, que me deixou toda contente, comentários que me abraçam, deixam-me a achar que escrever aqui, à noite, se calhar até faz algum sentido. O musgo que, da noite para o dia, atapetou a terra de uma espuma viva e verde de veludo macio também faz todo o sentido. O pássaro que passou ali à frente da porta de vidro da sala, saltitando, preto e com o papo branco, com uma poupinha, momento também tão transcendente faz mais sentido que tudo. O gatinho cor de mel e branquinho que já não se assusta, que já vai a andar devagar à minha frente, esperando que eu me maravilhe, durante o tempo que quiser, com cada flor ou ervinha que desponte da terra, também me enleva, também me surpreende. O que fiz eu para merecer tanto?

Liguei a televisão mas as notícias não me trazem o que eu quero ouvir: quero saber de tratamento, vacina, vida em liberdade. Quero notícia boa, feliz, quero sinal de esperança, quero prenúncio de vida nova. Quero antever sinais do mundo que vai renascer. Mas, pelo contrário, ouço autarcas exaltados, ouço acusações tão injustas e ingratas à Graça Freitas, mulher que admiro, que estimo, a quem agradeço, a quem todos tanto devemos. Ou ouço notícias dolorosas, ecos do que se passa em terras aqui tão perto. Não quero ouvir.

Quero, antes, que cada dia contenha bons momentos e que cheguem até mim ecos de abraços, sinais de afecto, palavras boas, sorrisos, um poema cantado e triste de tão belo, quero ver a terra amansada, coberta de musgo macio, o andar langoroso do gato que me espreita e mostra o caminho. E quero saber que os meus estão bem e que, não tarda, vou poder abraçá-los. Não quero muito. Mas quero tanto...

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Foi pela mão de Mestre Plúvio, com quem aprendo o respeito pela nossa língua, que também conheci este ser extraordinário, Jacob Collier (e é admiração que dura desde que o aprendi)

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A todos desejo um dia o melhor possível. Saúde.

segunda-feira, março 30, 2020

Éramos felizes e não o sabíamos...?
Voltaremos a sê-lo e ainda não o sabemos...?





O meu pai nunca foi de grandes conversas. Mesmo quando estava bem, não era de se rir muito, de falar muito. Pelo contrário, a minha mãe sempre foi boa onda e conversadora. Por vezes, punha-se a recordar os seus tempos de juventude mas ele, que a acompanhou desde sempre, não participava nessas evocações. Maneiras de ser. Quando vejo fotografias de quando eram jovens, lá está ele, sempre sério, bem apessoado, ar moderno mas, não sei porquê, parece que nunca totalmente integrado no buliçoso espírito do grupo. A minha mãe, pelo contrário, aparece sempre radiosa. Claro que o cabelo louro claro e os olhos azuis ajudam a que apareça não apenas sorridente como irradiando luz. Era um grupo de rapazes e raparigas que passeava e se sentava a conversar e algum deles fotografava. Talvez a máquina fosse a do meu pai pois por vezes não aparece e porque, do que me lembro, andava sempre com ela. Uma kodak. Depois namoraram, casaram, nasci eu. Há muitas fotografias. Naquelas em que estou, estou sempre a rir.


Mas, então, a minha mãe, por vezes, ao recordar os seus tempos de juventude, lembrava-se dos tempos da guerra. Era pequena. Lembra-se do racionamento. Não sei se lembra ou se se lembra de ouvir os pais falarem disso.

Agora voltou a falar nisso. Quando insisto para que faça uma lista do que vai precisar daqui por umas semanas para encomendarmos, volta a dizer que não precisa, que ainda tem muitas coisas. E, quando falamos na duração da quarentena e no tremendo abalo que isto vai causar em todo o tecido económico, volta a temer. 

E volta a recordar o que ouvia aos mais velhos: a pneumónica. E a tuberculose. Diz que nunca pensou voltar a esses tempos. Diz que parece que eram coisas de uma outra era. Suspira. Sinto-lhe o medo.
[De tarde, seguindo o conselho do João, estivemos a ouvir o Fernando Rosas. Com um século de intervalo, a história repete-se. ]usta a perceber o que andámos a fazer nos últimos cem anos para termos chegado até onde estamos agora]
Mas, enquanto ela falava, recordando memórias certamente mais dos meus avós do que dela, senhas, filas para levantar umas misérias, tempos de penúria, recordei eu outros tempos.


Outros tempos, tingidos pelo inocente colorido da distância e dourados pela doçura da memória.

O meu pai praticava muito desporto, sobretudo futebol. Os meus tios voleibol. Os primos do meu pai, mais ou menos da idade dele, hóquei em patins. E havia outros amigos, todos também dados ao desporto. E as respectivas mulheres, todas amigas umas das outras, muito alegres. Estavam sempre juntos, quer para ver as partidas desportivas uns dos outros quer em eventos que organizavam. E havia muitos miúdos, os filhos que iam nascendo. Lembro-me muito bem desses alegres tempos. Íamos ao cinema, às matinées. Por vezes organizavam gincanas e era muito divertido, toda a gente participava. Eu, já no liceu, era frequentemente par do primo mais novo do meu pai, um bad guy com coração de ouro que eu e toda a gente adorava. Por vezes, os adultos iam ao cinema à noite e, nessas alturas eu ficava com os meus avós e lembro-me de ficar até tarde a conversar com o meu grande amigo, filho de amigos dos meus pais e cujo avô era vizinho da minha avó, mãe da minha mãe.


Mas as noites de que eu mais gostava eram as dos bailes. O recreio da escola primária era transformado em recinto de baile. De um dos lados punham fiadas de mesas. Debaixo do telheiro estava o agrupamento musical. Do outro lado havia grelhadores e bancadas com outras comidas. A toda a volta havia enfeites. Estendiam cordas de um lado ao outro e penduravam-se flores ou outros motivos de papel colorido. E fiadas de luzinhas. Por vezes estavam todas acesas e as danças eram alegres, movimentadas. Depois reduziam um pouco e, aí, os casais enchiam a pista, abraçados.

A minha mãe e as amigas iam todas bonitas, com vestidos floridos de saias rodadas. Conversavam muito, riam, contavam piadas, dançavam. O meu pai, apesar de não ser de contar piadas ou de rir, enturmava-se e, curiosamente, dançava com a minha mãe. E eu andava com os meus amigos, à solta, correndo, dançando, feliz por estar ali, naquelas noites quentes e felizes.


Outras vezes, organizavam concursos de dança e, nessa altura, os bailes eram mais a rigor. A sala de cinema era transformada em salão de baile. A maioria das mesas ficava lá em cima e, cá em baixo, a meio, era a pista de dança e, à volta, algumas mesas. Nessas noites, o traje era mais requintado. As amigas apuravam-se para olharem umas para as outras com apreço, para receberem elogios. Havia um júri, havia eliminatórias. Geralmente sobressaía um grupo de jovens universitários que faziam passos quase acrobáticos, os rapazes levantavam as raparigas, elas passavam por baixo das pernas deles. A assistência ia ao rubro. Ou a valsa, romântica. A assistência a sentir que fazia parte de um filme. Eu olhava extasiada. Gostava de ver os meus pais, tão jovens, tão modernos, e os seus amigos tão bem dispostos. Apesar disso, a ideia que tenho é que quase não estava ao pé deles. Sempre gostei de sentir liberdade de movimentos. Quando queriam ir-se embora, tinham sempre que andar à minha procura.

Nessas alturas, eu era inocente e feliz.


Claro que havia, de vez em quando, algum sobressalto. Uma que andava sempre triste, sem que se percebesse porquê. Mais tarde viria a suicidar-se. Mas isso, muito tempo depois. Naquela altura, apenas causava estranheza tamanha infelicidade. Ou o irmão da namorada de um dos meus tios que regressou da guerra e que veio cheio de angústias, gritos a meio da noite, e deixou de querer participar nas actividades do grupo, não queria sair de casa. Falava-se à boca pequena, veio perturbado. Ouvia-as a conversarem, davam conselhos. Falavam baixo. Mas eu era miúda, percebia que algo de grave se passava, ouvia falar em guerra, mas, ao certo, não sabia nada. E o grupo continuava a ser a mesma alegria.

E a verdade é que, de modo geral, tenho atravessado o tempo assim, transportando boas memórias, momentos de leveza. Apesar de pressentir que, tantas vezes, há o lado menos bom da vida, sentindo que, por vezes, esse lado chega perto de mim, os meus passos têm-me transportado para os campos cheios de luz onde o passado é bom de recordar e o futuro é para onde sempre quero ir.


Mas agora estou onde nunca estive, a meio de uma fissura que parece abrir-se sob os meus pés. 

Hoje estava a ver o fim do noticiário da TVI quando vi que o Paulo Portas tinha trazido um coro a entoar Verdi, cada um em sua casa e, também em sua casa, o maestro. Custa a acreditar que pudesse ter soado tão bem. Emocionei-me ao assistir, tão bela a música, tão bela a interpretação, e emocionei-me ao ver como, de uma forma ou outra, nos vamos todos adaptando a estes tempos de incerteza e medo. Mas a seguir falou o José Alberto Carvalho. Emocionado, esforçando-se para conseguir falar, deixou-me presa ao que dizia, deixou-me angustiada por ele, pelo sofrimento dele. Muito impressionante, muito triste. Que tempos estes em que nem para confortar quem perde um ente querido, nem para acarinhar os filhos ou netos, nem para sossegar os pais, se pode dar um protector abraço. Que tempos estes, que tempos estes, deus meu. 

Como me parecem longínquos e tão ingenuamente felizes os tempos do meu passado.

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As fotografias, como é bom de ver, foram feitas in heaven, lugar onde se recebem de braços abertos todas as estações

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Tomara que, não tarda, venham novos tempos e que, de novo, possamos estar juntos, abraçar-nos, dançar, ser despreocupados e felizes.


A todos desejo uma semana o melhor possível.

Saúde. E esperança.

domingo, março 29, 2020

Muda a hora, muda o mundo. Só não sei se mudamos nós.




Foi um dia tão cheio de limpezas e trabalhos esforçados que só almocei às três. Estou aqui capaz de ir para férias. Para agravar, o meu marido resolveu fazer um arranjo numa das casas de banho. Mas, com aquela habilidade que o caracteriza, em vez de arranjar uma coisa, desarranjou várias. Agora uma casa de banho está cheia de água e o lavatório da outra pinga. E se eu quiser perceber porque é que tal coisa aconteceu ainda subsiste a ideia de que eu é que não percebo nada de assuntos de tal complexidade. 

Já avancei com uma solução: contratar um canalizador. Mas vamos quebrar o isolamento? Não sei.

Mas, a esta hora, também não quero estar a falar nisto.


Ao fim da tarde, sentei-me a descansar e a ler. Por pouco não adormeci. Aliás, só não adormeci porque estava com um bocado de frio. Mas como não me apeteceu ir buscar um casaco, fiquei ali meio desconfortável, sem dormir, a pesquisar, a tentar perceber o que tanto me preocupa. A minha mãe anda ensimesmada com o corona. O medo, nela, traduz-se, antes de mais, em descobrir o culpado para, a seguir, decretar que ele deveria assumir a culpa e ser obrigado a resolver o problema. Neste caso, diz que acha que o vírus foi fabricado em laboratório pelos chineses com o intuito de vergar as outras economias e que, portanto, eles é que, agora, deveriam ser obrigados a resolver este lindo serviço. Quando lhe digo que não, que nada indicia tal, que é vírus que dá na bicheza que está nos mercados porque é pitéu de eles não abdicam, aí diz que sim, que é o que dizem, que sabe disso, mas que não acredita. Se há tanto tempo gostam de comer bicheza dessa porque é que, desta vez, o vírus virou monstro e se escapou das mãos de toda a gente?, pergunta.

Pois, que nem de propósito, de tarde li: Is factory farming to blame for coronavirus? 

Recomendo a leitura.



E, tal como tinha pensado enquanto estava a falar com a minha mãe e a andar por entre as árvores, parece-me quase natural que se tenha atingido o ponto de saturação do mundo. O espirro de um inocente pangolim foi a gota de água.
Deslocalização de tudo, globalização, dependência de todos para tudo, os países afastados do que lhes é natural, esquecidos da natureza, a comermos ovos de galinhas criadas nem é bom saber como, carnes vindas de planuras lá bem longe, lá onde antes eram florestas, carne vinda de barco, de longe, em navios que sujam os oceanos. Tudo assim. Todos consumistas, todos querendo comprar muito mas muito barato, consumindo produtos cuja matéria prima vem de onde é quase dada, trabalhada lá onde a mão de obra é ao preço da uva mijona. Roupa, ténis, inúteis gadgets, brinquedos, tudo. E vivendo grande parte do tempo em torres de vidro, sem janelas que se possam abrir, a respirar ar condicionado -- que, como Graça Freitas explicou, transforma em aerossol as gotículas onde pairam os vírus --, e passando anos de vida a andar de carro, pendularmente, trabalho casa, casa trabalho, poluindo tudo à nossa passagem. E afastando para as periferias os habitantes, para, nas melhores zonas das cidades e vilas, alojar os que estão de passagem. Um mundo de gente a andar de um lado para o outro, gente que se autofotografa, gente que se esqueceu do que é a vida simples. 
E tão estúpida é esta forma de viver que um espirro de um pangolim no distante mercado de Wuhan bastou para matar muitos milhares de pessoas um pouco por todo o planeta, suficiente para destruir empresas, empregos, destruir a economia do mundo inteiro, para pôr em causa o rumo da civilização.


A propósito de tudo isto, ando com vontade de enviar um mail a um colega com algumas reflexões e algumas sugestões. O mundo vai mudar e temos que perceber isso, temos que respeitar a lição que nos está a ser dada. Temos que ser inteligentes para melhor percebermos o rumo que vamos querer ter na nova vida que se avizinha. No entanto, quando falo nisto a outras pessoas não me dão razão, acham que estou a exagerar. A semana passada disseram-me: Daqui por uns dias, estamos lá de novo. Depois de insistir e explicar que não vai ser bem assim, responderam-me, pronto, está bem, três ou quatro semanas e estamos lá. Lá. Lá, onde se estava antes do mundo mergulhar nesta espiral que está a acelerar não se sabe bem em direcção a quê.

Vou ter que pensar no que lhe vou escrever e vou dizer-lhe que acho que temos que suscitar esta reflexão de uma forma mais alargada, mais profunda.

Nós. Todos.

Está nas nossas mãos. Não nas mãos do corona.


Bem. Conversa mais cinzenta esta, ainda por cima para um sábado à noite, madrugada de domingo. Peço desculpa. Não gosto de contagiar ninguém, nem com covides nem com apreensões.

Vou antes ver como o Sergei voa quando acorda, quando se entrega à vida. É bom a gente levantar-se, abrir a porta e sair para a rua. Agora, pelo menos, posso fazer isso.


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Alguns painéis, nomeadamente o primeiro e o quarto, são da autoria de Nick Bayer and he worked with his co-artists James Clark and Sam Douglas. Não garanto que os restantes também sejam deles. 

O Cinema Paradiso é trazido por Pat Metheny com Charlie Haden -- e eu agradeço a quem mo fez chegar

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A todos desejo um bom dia de domingo.
E que não nos cheguem notícias muito más.
Saúde.

sábado, março 28, 2020

De que falamos quando falamos de um tempo fora do tempo?






Continuo a não ver aviões. Pelo contrário -- ou talvez também por isso -- sinto que as árvores estão povoadas por cada vez mais pássaros. Cantam, cantam. Parece que estou num recanto do paraíso. Não há sons de gente, não há poluição. 


Tudo floresce e, em volta das flores, há sempre abelhas e outros insectos. Algumas árvores apresentam-se já com pequenos frutos. Os figos que, no verão, estarão pesados, carnudos e doces, são agora umas amostrinhas verdes. As nêsperas já começam a ganhar tamanho e começam a querer ter cor. Penso nelas, sumarentas e doces, e no prazer que terei a comê-las.


Ocorre-me que, se calhar, este ano vou antecipar-me aos pássaros na degustação das ameixas.

Ultimamente, pelos caminhos, à minha frente, vai geralmente uma borboleta. Não sei se é por vontade dela, se apenas coincidimos no espaço e no tempo, eu, silenciosa, ela efémera e bela, ambas sem propósito.

Vejo também cada vez mais lagartixas. Vou a andar e a senti-las a esconderem-se à minha passagem. Talvez não seja medo, só vontade de brincadeira. Tenho vontade de me deixar estar, um dia, sentada no chão, imóvel, em silêncio, para ver que bichos se abeiram de mim. 

O meu dia foi, de novo, ridiculamente intenso. Estou em casa e sem tempo para ela. Isso perturba-me. Em casa, estou habituada a ser rainha e senhora. Agora sinto-me escrava das circunstâncias, habitante improvável.


Fui dar um passeio pelo campo perto das sete da tarde. De novo, muito frio. Caminhei enquanto o sol se punha, aspirei a frescura, enchi o peito de ar perfumado, senti-me mais forte, talvez um pouco mais livre. Quando seriam as sete, ouvi, vindo do lado da serra, o som de um sino. Será que, algures numa aldeia perdida no tempo, ainda vai alguém à capela tocar o sino como se estivesse a chamar os fiéis para o culto? Será que ainda há pessoas na rua? Ou estarão também fechadas em casa como estão tantas pessoas no mundo?

Regressei a casa, já quase anoitecia. Quando a luz se esvai chegam os sons esquivos da noite, um rumorejar, um rastejar, um indefinido bater de asas. Nada se vê. São sons que me arrepiam.

Não passei perto da gruta. Pensei que o ser melancólico e solitário que talvez a habite poderia não gostar de me sentir por perto. Tive medo. As noites são perigosas. Não sabemos quem nos espreita. Talvez um lobo, talvez um louco.


O frio entranhou-se-me. Vim pelo caminho mais longo. Quando cheguei a casa, vesti logo um casaco quente, preparei uma infusão de cidreira e casca de limão. Fiz um arroz com azeite, cebola, alho, cenoura, tomate, salsa, feijão verde, ervilhas e umas lasquinhas de bacon para temperar. Ficou mesmo bom. Serviu como acompanhamento das costeletas que tinha posto no forno à hora de almoço, apenas com um fio de azeite, alhos, orégãos, em calor brando. Claro que à hora de jantar já estavam frias mas deu-se-lhes uma aquecidela e fizeram um gostoso pendant com o arrozinho. Temos comido bem, acho eu. Mas é cansativo. Habituada a ter refeições fora várias vezes por semana, agora obviamente comemos sempre em casa. Sempre a cozinhar, sempre à pressa e sempre a comer à pressa. Mas hoje o jantar foi mais vagaroso. Em tempos, numa vida que quase me parece longínqua, às sextas-feiras à noite eu ia passear à beira-mar e jantar na praia. Agora recordo-o com aquela saudade acrescida que advém de não saber quando poderei retomar essa minha outra vida. 

Para este sábado pensei dedicar-me à arrumação e limpeza, lavagens daquelas que gosto de fazer. A ver se dá tempo para tudo. Mas também há uma secretária grande para montar. Em tempos, numa outra vida que recordo ainda mais esbatidamente, tive uma secretária grande, de madeira de verdade, com um canto em redondo. Depois deixei de ter onde guardá-la e foi desmontada. Há tempos, decidimos que cá é que estaria bem, no estúdio. Talvez seja a tal mesa sob a janela que dá para as laranjeiras à qual me sentarei a escrever. Mas não sei se nos aventuraremos. Agora parece tão difícil, tantas peças, tudo tão pesado. A ver.


Assim vão estes meus dias. Sem perceber onde acaba o presente e começa o futuro ou sem perceber se o futuro será uma espécie de continuação do que era antes ou se vai ser um salto no escuro, não consigo situar-me na linha do tempo nem formular desejos.

Hoje, numa reunião, defendi uma medida radical para o day after mas os meus colegas não quiseram nem sequer pensar nisso, acreditam que dentro em pouco nos reencontraremos fisicamente e voltaremos ao business as usual. Custa-me que não percebam que o mundo tal como o conhecemos é coisa do passado e custa-me pensar que, no day after, em vez de estarmos num mundo entretanto reconstruído, ainda possamos ter a maior parte das pessoas a querer reencontrar um mundo que ruiu.


Mas já chega desta conversa inconsequente. Quando comecei este post tinha acabado de ver o maravilhoso vídeo que vou partilhar e tinha pensado que ia limitar-me a partilhá-lo. Afinal, distraí-me dos dedos e, quais crianças irrequietas, desataram nisto, a fazer o que lhes dá na real veneta. Seja, que brinquem sempre que lhes apeteça. Quem sou eu para cercear a sua liberdade?

Voa, Sergei, voa. 
Enquanto é tempo.



A todos desejo um bom sábado.

Saúde.

sexta-feira, março 27, 2020

Kulikitaka, sex toys descritos em língua gestual... e Carla Nunes que não tem nada a ver com nada disso e que sabe bem do que fala


Se eu contasse como foi o meu dia, o meu e o do meu marido, nem daria para acreditar. Stresses, correrias, telefonemas intermináveis, cenas sobrepostas,  ir para uma videoconferência com o cabelo ainda completamente molhado, ter que andar literalmente a correr para pôr a roupa a lavar, quase não conseguir almoçar, jantar às quinhentas... e tudo o que de disparatado se possa imaginar. E isto tudo, estando em casa. Mas não vou falar de nada disto, não estou com pachorra.

Vou falar de outra coisa.

Esta sexta-feira (chiça. já sexta-feira outra vez!) vou tentar fazer uma coreografia maluca com o meu marido para mandar à família. No outro dia recebemos um vídeo hilariante da menina mais linda com a sua mãe numa crazy dança, ambas com o cabelo para a cara, desafiando os da mesma camada etária a fazerem o mesmo. Não achei bem. Porquê essa discriminação? Ora. Disse logo que também enviaríamos o nosso. O meu marido não disse, nem diz, nada. Nestas ocasiões, faz de conta que não é nada com ele. Palpita-me que não vai querer colaborar... o que para mim fará com que o desafio tenha um outro desafio dentro. E outro ainda: onde pôr o telemóvel para nos apanhar capazmente? Só de pensar nisto já me dá vontade de rir. Perguntei que música era aquela e disseram que era esta:


Se ficar coisa decente, capaz de ainda aqui pôr para me desacreditar de vez junto de vós. Tirando isso, para já, é o que tenho para dizer.

Mais só se for que, quando nos despachámos, fomos até à rua e estava um tal frio que tivemos que regressar logo.
Arranjei agora um novo sítio para me instalar enquanto trabalho: é junto à porta-janela que dá para a rua, para entrar mais luz e estar mais calorzinho. E estava, então, no meu estaminé, de tarde a dar-me o sol de frente, e a pensar que devia era estar lá fora, a apanhá-lo de feição, em todo o corpo. Imaginei que estava calor. E, na volta, àquela hora até estava. Mas, ao fim do dia, não se conseguia estar na rua. Que amplitude térmica, senhores.
Ainda fomos estender a roupa mas custou, tal o frio. Poças. Que desperdício de vida ao livre, este meu.

Bem. Tirando essas minudências, verdadeiros não-temas, o que posso dizer é que, enquanto ouço na televisão uma pessoa inteligente a falar, Carla Nunes de seu nome, um bálsamo -- e daqui vai também um agradecimento ao Vítor Gonçalves que tem andado a  fazer utilíssimas e ponderadas entrevistas com gente sabedora e inteligente -- estou para aqui a jogar conversa fora. Tenho a cabeça tão habituada a ter as mãos ocupadas com trabalhos manuais enquanto vejo televisão ou ouço música que, mesmo involuntariamente, estou sempre com um olho no burro e outro no cigano: com a cabeça presto atenção ao que estou a ouvir e, com as mãos, isto é, sem cabeça, vou escrevendo.

E agora, na tentativa de não maçar muito quem aqui vem na vã esperança de ter com que ocupar o tempo,  partilho um vídeo que Leitor, a quem muito agradeço, me enviou. 

Nesta era em que as notícias nos chegam sempre também por língua gestual, aqui partilho este, por acaso muito sugestivo, a propósito de sex toys

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Ando aqui a magicar umas coisas a propósito do Covid-19 (imunidade e etc) e se hoje ainda tiver tempo ainda aqui venho explanar. Agora ainda não estou com cabeça para me abalançar a tal.

quinta-feira, março 26, 2020

A ver é se quando sairmos da hibernação está de sol e bom para a praia e não um gelo como este camarada aqui abaixo encontrou


Esta minha hibernação tem a particularidade de eu não ter tempo para nada, muito menos para descansar. Acresce que hibernação que é hibernação tem garantida a televisão por cabo ou cenas afins e, eu aqui, zero: os quatro canais generalistas, a rtp3 e a memória, e é um pau por um olho. Uma pessoa, ao fim de algum tempo aqui enfiada, não apenas se sente uma ursa como sem pachorra para notícias, cada uma pior que a outra. Deviam abrir um canal só para boas notícias. Outro só para orquídeas para mostrar um mundo florido à Luísa. Outro só com aulas práticas de corte de cabelo à la maison, culinária, ginástica, costura, jardinagem de varanda e coisas afins. Isso é que era. A televisão digital terrestre deveria alargar a oferta e disponibilizar canais para coisas assim. E um canal só para poesia. Numa altura destas, a cura da alma é capaz de vir da poesia. Ou da música. 

Mas não. Ou vejo repetições com ar vintage ou desgraças ou tretas. Por isso, invariavelmente esqueço a televisão e viro-me para a página em branco, esta que aqui vou bordando. 

O que me apetecia agora era acordar amanhã e haver uma boa notícia. Não apenas aquela dos testes de fazer em casa em quinze minutos (que é boa mas not enough boa) mas outras ainda melhores, como, por exemplo, que o paracetamol misturado com sumo de limão, orégãos, hortelã e uns grãos de pimenta rosa matavam o bicho em três tempos. A pimenta é porque consta que o bicho é capaz de não ir à bola com calores. Ou que o sumo de meia beterraba misturado com o de uma laranja, um pouco de tomilho, uma folha de manjericão e um pé de salsa fazia o efeito de uma vacina contra este covid e todos os coronas que por aí derem as caras. 

Ou, então, um dia, estando eu nesta hibernação de faz de conta, ouvir foguetes everywhere e, ao ligar a televisão para saber que festança era aquela, dar com breaking news a bombarem em todos os canais, que havia ordem de soltura, que quarentena já era, que já se sabia como prevenir e matar o bicho, que bastava tomar banho e lavar os dentes três vezes por dia e, pelo meio, ir bebendo água morna com um cheirinho a licor beirão e covid já era, e que era tempo de toda a gente ir para a rua para lhe saltar em cima a pés juntos.

Enfim. Ou isso ou coisa do género desde que igualmente boa. Nisso não sou exigente. Só quero notícia boa. De preferência rápida, acessível, coisa de pôr toda a gente a rir na cara do corona.

E quero outra coisa, se faz favor. Que nesse dia esteja sol para a gente se ir abraçar e beijar para a rua, o dia da libertação, marinheiros a dobrarem mulheres com a força do beijo, fotógrafos dos bons a fotografarem a alegria, velhos e velhas a dançarem em roda, floristas a oferecerem cravos a quem passa, raparigas em tronco nu e bandeira na mão aos ombros de garbosos calmeirões, drags e queens pintadas de arco-íris a cantarem como se não houvesse amanhã, várias lilis caneças a fazerem boquinha, aperaltadas com vison e chapeau com pena de faisão, avoilas e nogueiras com cartazes a pedir aumento, o marcelo com um telemóvel em pau de selfie rodeado de fãs, o chicão mascarado de soldado montado num chaimite de brincar, os adeptos do benfica de braço dado com os do sporting todos montados em leões e de águia ao ombro. Coisa assim. Uma festa como nunca se tinha visto igual.


Mas pronto. Isto sou eu a querer que o fim da hibernação chegue depressa e seja um dia de festa, um dia cheio de sol e felicidade, um dia sem máscaras, sem medos, sem nuvens negras a pairarem nos céus, sem necessidade de desinfectar, lavar mil vezes as mãos ou fugir do outro pobre coitado que tossiu só porque alguma coisa lhe foi ao goto.

E, agora, olha o ursinho tão lindo



E um dia razoável para toda a gente

Saúde, minha gente.

quarta-feira, março 25, 2020

Chega de conversa e vamos mas é ver como é que a Dona Helena está a viver a sua quarentena





Um outro dia, Filo. Mais um dia sem história, um daqueles dias que, mal acaba, imediatamente desaparece esvaindo-se no buraco negro que parece querer sugar-nos.

De novo, desde que me levantei até depois das dez da noite, não tive um segundo de descanso. Tempos complexos. E à noite confeccionei o almoço de amanhã pois durante o dia não consigo. E só às sete e tal da tarde, quase a correr, depois da última reunião, consegui uns minutos no campo. E depois os telefonemas. Muitos. Cheguei à sala depois das onze da noite. Não consegui, sequer, ver os noticiários. Chegam-me, das reuniões, notícias arrepiantes nas quais nem quero pensar. Contudo, inevitavelmente os telefonemas da família giram em volta disto. O meu marido zanga-se, já não consegue ouvir conversas sobre o assunto. Mas, todos confinados, como não desabafarmos quando falamos uns com os outros?

Angustia-me não saber quando poderemos retomar a vida normal, ter a mesa grande de novo cheia, a bancada cheia de travessas de comida que voam num abrir e fechar de olhos, os meninos a brincarem, as sessões de cantoria, ou todos no jardim da minha mãe, ela toda contente com a família em volta. Enquanto cozinho, um cheirinho gostoso pelo ar, penso que eles iriam gostar e depois penso, com pena, que, se calhar, nem tão cedo eles poderão comer a comida que tão dedicadamente confecciono. Angustia-me pensar nisso.

E depois há o medo. De tarde, nas VCs (vou escrever assim para abreviar as VideoConferências) quase sinto que o diabo -- em forma de milhões de bichos malignos e invisiveis -- começa a aproximar-se de cada um de nós. Ouço que uma pessoa com quem estive a semana passada deve estar infectada e que parece que não está nada bem. Outro esteve num local carregadinho de bicheza e estive também com ele várias vezes durante a semana passada.
Aliás não, que disparate. Já viu como ando, Filo? Estava a escrever 'semana passada' depois de recordar os dias e os locais onde estive com cada um deles. E agora reparo que não, que já foi na outra semana. O tempo confunde-se na minha cabeça. Tão depressa me parece, para algumas coisas, que já foi há muito tempo, talvez até numa outra vida, como, para outras, me parece que foi há três e quatro dias e, afinal, há que somar a semana de hibernação que já passou.
Quando percebo que devo ter estado ao lado de alguém que, se calhar, agora está infectado, penso: ainda bem que não fui a casa dos meus pais. Tenho tanto medo de ser veículo de um bicho que, dada a idade e condição deles, os encontre indefesos. Mas, ao mesmo tempo, custa-me tanto não ir lá. Há muitos anos que vou todas as semanas. Agora é a minha mãe que não me quer, insiste: 'não preciso, tenho tudo, não preciso, não venhas'. E eu, perante estas situações que, na altura, desconhecia penso que é mesmo melhor que me mantenha aqui, acompanhando-a à distância, a ela (e ao meu pai, coitado, sem se dar conta de nada disto).

É verdade, sim, Filo, esta mudança súbita, este afastamento e este desconhecimento e temor pelo que aí vem, assustam-me, preocupam-me, deixam-me um bocado desalentada.

Claro que a minha maneira de ser leva-me, durante o dia, a atirar estes estados de alma para trás das costas e penso que os que trabalham comigo me acham capaz de virar o mundo do avesso. Mas, ao contrário do que é costume, chego a esta hora e estou tão exausta e apreensiva que não consigo disfarçar.

Mas, ao mesmo tempo, tenho esta sensação -- talvez absurda, João, talvez acabe mesmo por desiludir-me -- de que este era o tropeção na linha do tempo de que o mundo estava a precisar para recuperar o equilíbrio e voltar a encaixar-se no planeta. Como se na vida de excessos que nós levávamos (e falo em nós de forma genérica, claro), consumistas até à medula, distantes da natureza, narcisistas e estúpidos, histéricos e absurdos, estivéssemos a precisar de um par de estalos. E, saído das profundezas na terra, um insignificante e insignificante bichículo está a ser suficiente para nos provar que temos pés de barro, que somos umas frágeis criaturas que vão ao tapete num abrir e fechar de olhos.

Diz o João, o outro João, que o René Thom (o matemático da Teoria das Catástrofes) escreveu um livro há muitos anos (e não me lembro bem se o diz explicitamente ou se fui eu que tirei umas pelas outras) onde defende que grandes transformações e saltos evolutivos/qualitativos na Biologia e na sociedade ocorrem nas bifurcações que as catástrofes abrem; ou vamos por um lado ou pelo outro, irreversivelmente. E é isso que eu acho. Tomara é que, a seguir, não sigamos pelo lado errado.

Mas acredito que não, acredito que, ainda que trôpegos e apalermados, haveremos de cair na real e passar a ter uma vida mais racional, mais respeitadora do habitat em que nos foi dado o privilégio de viver.

Só não sei é se acredito mesmo ou se quero acreditar. Mas isso agora também não interessa para nada.

Agora não é tempo para grandes dissertações, agora é tempo de sobrevivência e de quarentena. Nós e a Dona Helena.

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Pinturas de Edward Hopper na companhia de Julee Cruise a interpretar Falling
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Sabe, Filo, quando, num outro tempo, fui passar três dias à Barragem da Aguieira éramos para ter ido ao lugar onde agora está. Não fomos porque estava chuvoso e achámos mal empregado ir para aí com tempo assim. Tinha visto fotografias e tinha achado um lugar muito bonito. Um dia destes tenho que lá ir conhecer. Perto do mar, perto da Lagoa, perto de terras muito bonitas.  Desfrute. E daqui lhe envio um sentido agradecimento pelo carinho que me enviou por outra via.

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A todos desejo um dia bom

terça-feira, março 24, 2020

Trinta minutos para espantar a ausência





Estou hoje, de facto, muito cansada. Estive a trabalhar até agora. Falta-me o tempo em que, antes, numa outra vida, no carro, no trânsito, atravessava a cidade ouvindo música ou entrevistas. Descansava a cabeça. E depois chegava a casa, despia-me, mudava de cenário. E à hora de almoço também mudava de ares e isso, mesmo sendo por vezes muito a correr, parecendo que não, também era um intervalo na minha jornada. Agora não, agora é desde que me levanto quase até que me deito. Non stop. O almoço foi à pressa, o jantar à pressa foi. Muitas videoconferências, muitos telefonemas, muitos mails, muitas aprovações, muitos relatórios para ver. Muita coisa, muitos problemas, muita coisa que dá que pensar. 

E, portanto, à noite, estou a pensar no que hoje ouvi, nas preocupações grandes pelo que aí está, medo por situações de que soube e que não me tranquilizam nada, medo pelo que antecipo que está por vir. A preocupação quando envolta pelo medo tolhem. Esforço-me por pensar que faltam dois meses e tal para que respiremos de alívio. E penso: dois meses e meio passam num instante. Se conseguisse estar dois meses e meio sem saber de notícias talvez nem desse por nada e não me preocupasse. Mas como consegui-lo, logo eu, que preciso de estar junto dos meus, de vê-los, de tê-los junto a mim...?

E o que vem a seguir? Não sei mas vejo uma nuvem negra cada vez mais próxima. 


Mas não quero falar mais nisto. Sei que depois disto, talvez daqui por uns dois ou três anos, tudo isto será passado, motivo de filme, de série de Netflix, de livro, de tese de economia, de finanças, de sociologia. Talvez a Hélia Correia um dia se saia com um livro, poesia da boa, nós feitos cegos esgotados, animais, nós à deriva, tomados pelo medo e pelo abandono. Sei que nessa altura haverá retoma, reconstrução, recomeço. Sei, João, sei que o mundo vai ficar melhor. Não sei durante quanto tempo durará essa nossa ilusão. Mas talvez dure três ou quatros anos, o suficiente para falarmos, com sabedoria, sobre estes confusos tempos em que o anterior sistema implodiu. Haverá gente que descreverá a cratera deixada, e fá-lo-á através de comparações com as hecatombes nucleares, outros, mais inspirados, usarão metáforas, alguns metáforas inspiradas nas quais outros pegarão, papagueando-as até virarem buzzwords. O mundo mudará mas, seja qual a dimensão e a natureza da mudança, sempre os papagaios sobreviverão.

Estou cansada. Tinha aqui na mesinha um copo de água e, cansada que estou, entornei o copo em cima do computador. Sacudi-o logo, aflita não fosse ele avariar-se. Era o que me faltava, estar em teletrabalho sem ter com o que trabalhar. E agora que vejo a água entornada lembro-me que hoje nem fiz um chá. Nunca tal aconteceu. Sempre bebi chás, infusões. Faço misturadas. Parece que não há nada vida que eu consiga consumir plain. Só se for a água. Misturo chá branco com casca de limão, cidreira com casca de laranja, lúcia-lima com gengibre. Coisas assim. Só um que é especial, e que é tão especial que agora nem me lembro do nome, é que bebo puro. Mas hoje não tive tempo, esqueci-me. Devo, pois, ter chegado a esta hora não apenas cansada e desanimada como desidratada.


Tenho um mail, importante para mim, para responder. A ver se consigo. Estou cansada, parece que as palavras não fluem para que cheguem a quem me lê como um ramo de flores do campo, simples, sem giroflés a servir de enfeite. 

Gosto de escrever quando as ideias fervilham em mim e os dedos me levam sem que eu tente saber para onde. Por vezes, é quando estou mais cansada, quando o meu eu consciente se desliga, que eu escrevo de uma maneira que me dá mais prazer, deixando correr o fio das palavras para me ir deixando surpreender pelo que vai aparecendo escrito.


Não bebi chás nem infusões nem li nem ouvi música nem apanhei banhos de sol nem passeei nem fiz fotografias. Nada. Por isso vou ouvir poesia, a ver se me sinto compensada pelo dia que foi. Gosto da voz de Tom Hiddleston, gosto da forma como ele diz poesia.

Ouvir poesia amansa-me, dobra-me, pega-me ao colo. Ouço-o e, ao ouvi-o, o céu fica estrelado sobre mim, o chão floresce sob os meus pés e as flores dobram-se, tanta a cor, as árvores enchem-se de frutos sumarentos, doces e carnudos, o fundo do mar é turquesa e verde cobalto e há conchas de madrepérola que escondem segredos que não quero descobrir, e eu ouço-o e entro pela floresta, ao encontro dos bichos que a habitam e que, ao ver-me, me aceitam e fazem uma roda em minha volta, e uivam, azuis, solitários, perigosos de tão belos e tentadores que são. Ouço-o e fecho os olhos porque, de repente, todos os mistérios e segredos e acasos se juntam e fazem sentido e eu, então, compreendo tudo, a loucura e a estranheza mais absolutas, o sobressalto estético que me dobra, me desarma, me vence.

E talvez nada disto que escrevo faça sentido e, se assim for, é assim que está bem. Em dias assim o melhor é não fazer sentido, apenas ser.


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Pinturas de Lee Krasner
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Um dia feliz
(na medida do possível)

segunda-feira, março 23, 2020

Mais um dia neste limbo de incerteza, rodeada de uma paz que parece de um outro mundo,
mas pensando no incerto caminho que temos pela frente

-- Do not go gentle into that good night --





Este meu domingo voltou a ser atípico. Parece que, por uma qualquer convulsão, simultaneamente temporal e espacial, tivéssemos vindo aqui parar. Esta não é a nossa condição habitual.

Sobretudo, faz-me muita impressão não ter conhecimentos para poder ver o futuro menos enevoado do que agora o vejo.

Levantei-me com mais motivação e fui arrumar roupas e outras coisas que para aqui tínhamos trazido e que, com a loucura que foi a semana, foram ficando fora de sítio. Não trouxemos muita roupa. A saída de casa, tal como tinha sido a saída dos dois escritórios onde habitualmente trabalho, foi algo desorientada, mal pensada, triste. Saímos sem saber por quanto tempo. Não trouxe quase nada, apenas o mínimo, quase uma ida para férias mas sem se saber quando se volta, uma sensação algo angustiante. Para quem me lê e já não trabalha ou trabalha em casa isto pode não se perceber bem mas a verdade é que a sensação que senti foi a de estar a haver um tremor de terra e em que, sem se saber o que vai acontecer, a gente pega em meia dúzia de haveres, os básicos, e sai sem saber se regressa.


E ainda não me habituei bem à ideia de estar em minha casa e, em vez de poder estar vestida à vontade e andar a fazer o que me der na bolha, ter que estar dentro de horários, a atender telefonemas, a ter que estar arranjada, a participar em video-conferências. E a mostrar a minha casa como agora toda  a gente a mostra. 

Temos comido bem e acho que equilibradamente. Fomos ao supermercado creio que na terça-feira da semana passada (ou na quarta? - já não tenho ideia, parece que também ando desorientada com os dias da semana) e, com o que trouxemos, tem-se conseguido variar. E, pelas minhas contas, ainda conseguiremos aguentar-nos com o que temos até ao fim da semana. Com aquela coisa do covid se aguentar activo sobre as superfícies até cerca de 3 a 4 dias, em especial no plástico, a semana passada pusemos em quarentena, no estúdio, tudo o que não fossem frescos. Temos a sorte de podermos dispor de um espaço para estas habilidades.

De tarde, fui lá para fora ler, mas arrefeceu. Fui buscar uma mantinha e estive ali bem confortavelmente. Se me abstraísse das circunstâncias, quase poderia dizer que estava feliz da vida. Mas claro que não estava. Sinto-me inquieta. Depois arrefeceu ainda mais. Vim para dentro. Quando estava a vir, vi no chão uma peça brilhante, colorida. Fui ver o que era. Uma pedrinha de vidro transparente, colorido. Não sei de onde veio. Pensei que pudesse ser da almofada mas não, não tem pedrinhas, apenas missangas. Não faço ideia. Mistérios. Coloquei-a em cima do livro e fotografei-a. Assim ocupo o meu tempo.


Em casa, no sofá, dormitei um pouco. Depois fomos fazer uma caminhada. O meu marido olhou para o céu e disse: 'antes víamos sempre aviões'. E era. Na cidade em que os temos sempre por cima da cabeça já nem damos por eles. Aqui no campo, olhávamos para o céu e lá iam, um pontinho branco deslizando no azul e deixando um véu de tule branco à sua passagem. Era normal vermos dois e três, cada um em sua rota. Parece que foi há muito tempo, num outro tempo. Agora olha-se não se vê nem um. Não se ouvem motas ao longe, não se ouve nada. Apenas o cair da chuva ou o suave som da aragem a correr sobre os ramos das árvores e, sempre, o canto dos pássaros, felizes e desconhecedores de todo este caos.

Entretanto, recebi documentos de trabalho para reuniões desta segunda. Não consegui ler tudo, não me apeteceu ler tudo.


Estive a ler, isso sim, algumas coisas sobre esta maldita pandemia. Passo ao lado de teorias da conspiração e parvoíces para me focar nos aspectos que mais me preocupam: 
  • Em primeiro lugar, como vamos viver até que a imunidade esteja instalada, sendo que a vacina vai demorar e que ainda não estão no terreno alternativas de forma a podermos aguentar o embate até lá. Vamos viver enclausurados durante mais um ano e tal? Como o aguentaremos? Vamos isolar os mais velhos e os mais vulneráveis, mantendo os demais em circulação? Como suportaremos fazer isso? E como suportariam os mais velhos e os mais frágeis a tristeza de tal isolamento?
  • O que vai ser, entretanto, de todos os que vivem de actividades que dependem da circulação ou da concentração de pessoas? Sectores como o turismo, restauração, comércio massificado, todas as formas de espectáculo, viagens, etc, vão viver de quê? E não só esses: sectores como os das limpezas de escritórios, agora que os escritórios estão fechados, e tantos, tantos outros.
  • E o que vai ser o day after, seja ele quando for? Daqui por um ano ou ano e meio, tendo as pessoas interiorizado uma outra maneira de viver, como vai ser? Os escritórios vão voltar a encher-se? Não vão. Não vão até porque as empresas não aguentarão continuar a pagar pesadas rendas durante os meses em que as pessoas estão em casa, grande parte das empresas paralisadas e mal tendo dinheiro para pagar ordenados. E os centros comerciais vão voltar a encher-se? Tenho dúvidas. Com as lojas fechadas ou com a clientela reduzida por tempo indeterminado, grande parte delas fecharão. E os hotéis que estavam cheios de turistas vindos do mundo inteiro como se aguentarão agora que os turistas estão impedidos de sê-lo e que nem tão cedo poderão voltar a sê-lo? Muitas incógnitas. E, certamente, muito desemprego, muitas falências. O mundo, e desculpem se me repito, vai ser outro. Tem que haver muita criatividade, muita reflexão. Tem que se perceber para onde vai o mundo e, até que lá se chegue, tem que se saber como manter vivas tantas pessoas que vão ficar sem ocupação nem rendimentos.

Talvez eu esteja a ver o filme mais negro do que será, no futuro. E, de cada vez que penso em futuro, não sei onde situar-me. Lá para finais de Maio ou em Junho, se tudo correr bem, estaremos a sair da hibernação. Mas não sairemos completamente pois, sem 70% da população imunizada, para que a catástrofe não se abata de novo sobre nós, teremos que limitar fortemente a nossa movimentação. 

Ou aquilo do soro do sangue dos recuperados resulta e aí talvez se consiga antecipar o regresso à normalidade ou se descobre um cocktail que, sem danosos efeitos secundários, consegue atalhar o efeito do bicho no organismo, ou o futuro vai tardar a chegar e, quando chegar, ver-nos-emos chegados a um cenário que não vamos gostar de ver.

Claro que a UE e os Governos, se tiverem juízo, se unirão para fazer frente a uma hecatombe e o mundo não acabará. Mas temos todos que ser criativos, disponíveis para ajudar, temos que deixar de ser comentadores de bancada, maledicentes, clubistas, medíocres. Temos que ter visão, temos que ser generosos.


Acredito mesmo que esta pode ser a oportunidade para fazermos a viragem para um mundo mais inclusivo, mais inteligente, mais saudável e equilibrado, respeitando o planeta na sua infinita variedade e beleza. 

Mas temos que lá chegar. E é esse espaço, esse caminho até lá, esse labirinto que ainda vejo envolto em névoa e incerteza, que me assusta um bocado. Isso e haver tanto estúpido e bronco à solta.

Mas haveremos de lá chegar. Isso eu sei, de certeza. E também sei que, uma vez lá chegados, será um mundo melhor.




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