sábado, março 28, 2020

De que falamos quando falamos de um tempo fora do tempo?






Continuo a não ver aviões. Pelo contrário -- ou talvez também por isso -- sinto que as árvores estão povoadas por cada vez mais pássaros. Cantam, cantam. Parece que estou num recanto do paraíso. Não há sons de gente, não há poluição. 


Tudo floresce e, em volta das flores, há sempre abelhas e outros insectos. Algumas árvores apresentam-se já com pequenos frutos. Os figos que, no verão, estarão pesados, carnudos e doces, são agora umas amostrinhas verdes. As nêsperas já começam a ganhar tamanho e começam a querer ter cor. Penso nelas, sumarentas e doces, e no prazer que terei a comê-las.


Ocorre-me que, se calhar, este ano vou antecipar-me aos pássaros na degustação das ameixas.

Ultimamente, pelos caminhos, à minha frente, vai geralmente uma borboleta. Não sei se é por vontade dela, se apenas coincidimos no espaço e no tempo, eu, silenciosa, ela efémera e bela, ambas sem propósito.

Vejo também cada vez mais lagartixas. Vou a andar e a senti-las a esconderem-se à minha passagem. Talvez não seja medo, só vontade de brincadeira. Tenho vontade de me deixar estar, um dia, sentada no chão, imóvel, em silêncio, para ver que bichos se abeiram de mim. 

O meu dia foi, de novo, ridiculamente intenso. Estou em casa e sem tempo para ela. Isso perturba-me. Em casa, estou habituada a ser rainha e senhora. Agora sinto-me escrava das circunstâncias, habitante improvável.


Fui dar um passeio pelo campo perto das sete da tarde. De novo, muito frio. Caminhei enquanto o sol se punha, aspirei a frescura, enchi o peito de ar perfumado, senti-me mais forte, talvez um pouco mais livre. Quando seriam as sete, ouvi, vindo do lado da serra, o som de um sino. Será que, algures numa aldeia perdida no tempo, ainda vai alguém à capela tocar o sino como se estivesse a chamar os fiéis para o culto? Será que ainda há pessoas na rua? Ou estarão também fechadas em casa como estão tantas pessoas no mundo?

Regressei a casa, já quase anoitecia. Quando a luz se esvai chegam os sons esquivos da noite, um rumorejar, um rastejar, um indefinido bater de asas. Nada se vê. São sons que me arrepiam.

Não passei perto da gruta. Pensei que o ser melancólico e solitário que talvez a habite poderia não gostar de me sentir por perto. Tive medo. As noites são perigosas. Não sabemos quem nos espreita. Talvez um lobo, talvez um louco.


O frio entranhou-se-me. Vim pelo caminho mais longo. Quando cheguei a casa, vesti logo um casaco quente, preparei uma infusão de cidreira e casca de limão. Fiz um arroz com azeite, cebola, alho, cenoura, tomate, salsa, feijão verde, ervilhas e umas lasquinhas de bacon para temperar. Ficou mesmo bom. Serviu como acompanhamento das costeletas que tinha posto no forno à hora de almoço, apenas com um fio de azeite, alhos, orégãos, em calor brando. Claro que à hora de jantar já estavam frias mas deu-se-lhes uma aquecidela e fizeram um gostoso pendant com o arrozinho. Temos comido bem, acho eu. Mas é cansativo. Habituada a ter refeições fora várias vezes por semana, agora obviamente comemos sempre em casa. Sempre a cozinhar, sempre à pressa e sempre a comer à pressa. Mas hoje o jantar foi mais vagaroso. Em tempos, numa vida que quase me parece longínqua, às sextas-feiras à noite eu ia passear à beira-mar e jantar na praia. Agora recordo-o com aquela saudade acrescida que advém de não saber quando poderei retomar essa minha outra vida. 

Para este sábado pensei dedicar-me à arrumação e limpeza, lavagens daquelas que gosto de fazer. A ver se dá tempo para tudo. Mas também há uma secretária grande para montar. Em tempos, numa outra vida que recordo ainda mais esbatidamente, tive uma secretária grande, de madeira de verdade, com um canto em redondo. Depois deixei de ter onde guardá-la e foi desmontada. Há tempos, decidimos que cá é que estaria bem, no estúdio. Talvez seja a tal mesa sob a janela que dá para as laranjeiras à qual me sentarei a escrever. Mas não sei se nos aventuraremos. Agora parece tão difícil, tantas peças, tudo tão pesado. A ver.


Assim vão estes meus dias. Sem perceber onde acaba o presente e começa o futuro ou sem perceber se o futuro será uma espécie de continuação do que era antes ou se vai ser um salto no escuro, não consigo situar-me na linha do tempo nem formular desejos.

Hoje, numa reunião, defendi uma medida radical para o day after mas os meus colegas não quiseram nem sequer pensar nisso, acreditam que dentro em pouco nos reencontraremos fisicamente e voltaremos ao business as usual. Custa-me que não percebam que o mundo tal como o conhecemos é coisa do passado e custa-me pensar que, no day after, em vez de estarmos num mundo entretanto reconstruído, ainda possamos ter a maior parte das pessoas a querer reencontrar um mundo que ruiu.


Mas já chega desta conversa inconsequente. Quando comecei este post tinha acabado de ver o maravilhoso vídeo que vou partilhar e tinha pensado que ia limitar-me a partilhá-lo. Afinal, distraí-me dos dedos e, quais crianças irrequietas, desataram nisto, a fazer o que lhes dá na real veneta. Seja, que brinquem sempre que lhes apeteça. Quem sou eu para cercear a sua liberdade?

Voa, Sergei, voa. 
Enquanto é tempo.



A todos desejo um bom sábado.

Saúde.

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