Acordei cedo e, como sempre, ao levantar-me, logo abri a porta de vidro e a portada e saí para a rua. Mas, de imediato, arrepiei caminho. Um frio, um cheiro a terra molhada, as gotas da acácia branca a caírem-me em cima. Até exclamei: 'É lá... mas o que é isto?!?'. Pensava que estava a falar sozinha mas o meu marido ia a passar, vindo da rua, e disse: 'E esteve a chover com força. E muito frio. Vê lá o que é que vestes'. Como ando sempre à fresca, tem medo que eu me ponha doente. Deixei as portadas exteriores abertas mas fechei a porta de dentro. Quando me vesti, tive que estudar a indumentária. Quando, à pressa, fizemos a trouxa para virmos para o exílio, não pensei que tinha que me prevenir para este inverno que veio ensombrar a primavera nem que aqui iríamos ficar, sem ir à cidade buscar mais coisas, durante muito tempo.
Felizmente, no outro dia, estive a dar uma volta à roupa desandada, que, por falta de moda, desajuste de número ou desengraçamento, já de pouco préstimo tinha na cidade e que em boa hora, nos idos, pensei que aqui, no campo, num just in case, poderia vir a ser útil. Retirei do fundo do roupeiro uma blusinha já demasiado justa e cor de pele que tinha rejeitado por quase me fazer parecer despida, um colete de veludo quentinho, acolchoado, que sempre me pareceu demasiado campestre, uma blusa preta excessivamente quente, uma blusa lilás num fio que me parece já ilógico -- coisas assim, desirmanadas, vintage até dizer chega. Lavei tudo, não quis voltar a vestir coisa com ar de resto, mofudo, coisa com aquele ar desajeitado que têm as coisas que querem ressuscitar. E foi isso que hoje me valeu e que amanhã e depois também me devem valer. Ponho um colarzinho, uma écharpe, uns brinquinhos e já me acho apresentável. Hoje até me apeteceu pôr um perfuminho. Tenho um frasquinho na maleta do computador. Mas depois racionei. Quem sabe um dia aqui, no degredo, ainda vou precisar. Nunca se sabe. Também não alteraria o visual. De qualquer forma, por videoconferência disfarça, não dá para ver pormenor -- tento eu convencer-me. É que não apenas já preciso de variar como está um frio absurdo, e estas peças, por datadas que sejam, pelo menos não me fazem estar a bater o dente.
O dia foi atarefado. Esta coisa apanha-me a meio de processos que estou a tentar manter em movimento e que acrescem à profunda mudança que, num ápice, se operou na maneira de trabalhar e de viver.
O almoço e o jantar foram restos dos dias anteriores, as favas com entrecosto do almoço de domingo que bem apuradinhas estavam, e peixe cozido com batatas e legumes com que fiz uma salada. Por isso, não tive que confeccionar comida. Por volta da uma e meia despachei-me do primeiro turno, peguei no telemóvel e fui telefonar à minha mãe. E, então, enquanto andava, apercebi-me de um milagre. Fiquei fascinada. Vim a casa, quase a correr, e peguei na máquina fotográfica. E fotografei: de ontem para hoje, tal a força do frio, da chuva e desta terra que antes era pedregosa e que agora é tão fértil, o musgo medrou, macio, alto, fofo, verde quase dourado. Sente-se a macieza só de olhar. Nem passei a mão, não precisava: mais macio que veludo, que lã de seda, que olhar de namorado.
Fotografei, fotografei. É a minha maneira de guardar a eternidade das coisas mais belas, mais efémeras.
Se não estivesse aqui não tinha assistido a este milagre. Em tudo, em todos os momentos, mesmo nos mais incertos, há breves instantes em que a harmonia do mundo converge na mais insignificante das coisas, torando-a única, infinita como infinitas são as coisas que tocam o nosso coração.
A tarde continuou. Reuniões. Todos se interrogam, todos temem. Ninguém disfarça. Ninguém se aventura a adivinhar qual será o cenário mais provável. Pedem-se salvaguardas para que, no caso de uma catástrofe, pelo menos haja com que pagar os ordenados. Faço de conta que não me deixo afectar com o que ouço. Mas afecta-me: sinto que, por dentro, tenho vontade de me emocionar. Como é que, no espaço de tão pouco tempo, chegámos aqui? A dimensão e a desolação da cratera que pode sobrar, no fim disto tudo, assusta.
À noite, ao telefone, o meu filho traçou cenários. Fala naquilo que será o mais inteligente, aguentar o tecido económico mesmo que a duras custas: não despedir, pagar os ordenados, resistir, não deixar que as empresas vão à falência. É isso mesmo.
À noite, ao telefone, o meu filho traçou cenários. Fala naquilo que será o mais inteligente, aguentar o tecido económico mesmo que a duras custas: não despedir, pagar os ordenados, resistir, não deixar que as empresas vão à falência. É isso mesmo.
Mas quantas empresas conseguirão resistir? E o pequeno comércio? E os trabalhadores individuais? E a gente do mundo dos espectáculos? Tanta gente que vai passar dificuldades.
Mas, mesmo por essas pessoas, por todos, em especial pelos mais pobres, pelos menos seguros, temos que resistir. Fechados em casa, longe dos nossos, preocupados com a saúde dos mais frágeis, mas quebrando as pernas à curva de contágio, defendendo-nos de males ainda maiores.
O tempo passa a correr e em todos os momentos há instantes que cintilam. Um mail bom que recebi, que me deixou toda contente, comentários que me abraçam, deixam-me a achar que escrever aqui, à noite, se calhar até faz algum sentido. O musgo que, da noite para o dia, atapetou a terra de uma espuma viva e verde de veludo macio também faz todo o sentido. O pássaro que passou ali à frente da porta de vidro da sala, saltitando, preto e com o papo branco, com uma poupinha, momento também tão transcendente faz mais sentido que tudo. O gatinho cor de mel e branquinho que já não se assusta, que já vai a andar devagar à minha frente, esperando que eu me maravilhe, durante o tempo que quiser, com cada flor ou ervinha que desponte da terra, também me enleva, também me surpreende. O que fiz eu para merecer tanto?
Liguei a televisão mas as notícias não me trazem o que eu quero ouvir: quero saber de tratamento, vacina, vida em liberdade. Quero notícia boa, feliz, quero sinal de esperança, quero prenúncio de vida nova. Quero antever sinais do mundo que vai renascer. Mas, pelo contrário, ouço autarcas exaltados, ouço acusações tão injustas e ingratas à Graça Freitas, mulher que admiro, que estimo, a quem agradeço, a quem todos tanto devemos. Ou ouço notícias dolorosas, ecos do que se passa em terras aqui tão perto. Não quero ouvir.
Quero, antes, que cada dia contenha bons momentos e que cheguem até mim ecos de abraços, sinais de afecto, palavras boas, sorrisos, um poema cantado e triste de tão belo, quero ver a terra amansada, coberta de musgo macio, o andar langoroso do gato que me espreita e mostra o caminho. E quero saber que os meus estão bem e que, não tarda, vou poder abraçá-los. Não quero muito. Mas quero tanto...
Quero, antes, que cada dia contenha bons momentos e que cheguem até mim ecos de abraços, sinais de afecto, palavras boas, sorrisos, um poema cantado e triste de tão belo, quero ver a terra amansada, coberta de musgo macio, o andar langoroso do gato que me espreita e mostra o caminho. E quero saber que os meus estão bem e que, não tarda, vou poder abraçá-los. Não quero muito. Mas quero tanto...
Foi pela mão de Mestre Plúvio, com quem aprendo o respeito pela nossa língua, que também conheci este ser extraordinário, Jacob Collier (e é admiração que dura desde que o aprendi)
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A todos desejo um dia o melhor possível. Saúde.
Como é bom sintonizar o canal UJM! Ntícias só por escrito as úteis e os ecos da ciência.
ResponderEliminarA propósito de Chicão, é como sou chamado pelos meus colegas de escola, o que, claro já deu direito a muitas piadas.
Um belo dia!