Num dia sentia-se animada, no seguinte já desanimava. Depois alguém lhe sorria e já parecia reviver mas, logo depois, se alguém se cruzava de semblante carregado, já voltava a sensação de rejeição, a tristeza.
Uma abraço quente, um beijo gostoso no rosto, um ombro aconchegante era tudo o que queria. Em vez disso tinha que cumprir tarefas entediantes, em casa ouvir queixumes, limpar baba, ajeitar mantas, repetir mil vezes a mesma frase, acordar com um medo abafado e opressivo de que na cama do quarto ao lado estivesse um ser morto. Uma angústia arrastada. Anos e anos disto.
Até que um dia acordou com uma disposição nova. Pensou ‘coração ao largo’. Pegou nas calças mas logo as atirou para o chão, determinada, ‘nada disto’. Escolheu uma saia, já nem sabia que saias tinha, nem sabia que saias se usavam. Pegou numa saia preta e, para si própria, pensou com uma vaga reminiscência de coqueterie, ‘com o preto nunca me comprometo’. Abriu a gaveta das blusas - ‘tudo desenxabido, credo’, pensou - escolheu uma azul clara, vestiu, achou-se desengraçada, parecia mais gorda, despiu-a, pegou numa estampada em tons de amarelo e laranja, decotada, nem sabe se alguma vez a vestiu, talvez numa encarnação anterior. Vestiu-a, achou-se estranha, era outra. Deixou ficar. Foi para o espelho. Soltou o cabelo, despenteou-se, o cabelo baço ganhou alguma vida. Pôs uma sombra muito ao de leve nas pálpebras, fez um risco discreto na parte de cima, pôs blush, esbateu – ‘nada de rosetas, credo’, pensou - , a caixinha das maquilhagens intacta, com ar de coisa do século passado. Pôs um brilho nos lábios, nem sabia se aquilo tinha prazo de validade, tomara que não lhe fizesse mal. Depois lembrou-se que deveria ter posto um perfume. Despiu a blusa e perfumou-se, uma amostra antiga, um dior do século passado mas, ainda assim, um cheirinho. Voltou a vestir-se. Viu-se ao espelho, remirou-se, gostou do que viu. Era outra, não ela. Escolheu uns brincos, umas bolinhas de ouro simples. Escolheu um fiozinho de ouro. Tirou a medalha que lhe dava um ar mais pesado. Assim, um pequeno fio em volta do pescoço, os brinquinhos, o decote, a blusa luminosa e alegre, os olhos mais radiosos, os lábios brilhantes, toda ela parecia ter renascido. Viu-se de lado, viu-se de costas espreitando pelo ombro, viu-se de frente, sorriu um pouco hesitante, ‘o que irão dizer…? Não será demais?’, pensou já quase arrependida. Mas avançou, não fosse mudar de ideias.
Vestiu um casaco – ‘tão pesadão, que horror, roupa de velha’, e parece que já se via com outros olhos -, compôs o conjunto com uma écharpe de seda colorida que em tempos alguém lhe tinha oferecido e perguntou à senhora que dava apoio - e a quem nem conseguia tratar como empregada, costumava dizer que era a sua ajudante - se poderia ficar até mais tarde porque não sabia a que horas chegava. Ao vê-la naqueles preparos, a empregada espantou-se, ‘Ora viva!’ e ela sorriu a medo, já com um sentimento de culpa, já sem saber que maluqueira lhe tinha dado.
A custo, lá saíu porta fora e, ao respirar o ar da rua, teve vontade de fugir dali para sempre, de fugir da vida de nervos, de medos, de culpas, de fugir até ao tempo em que ainda não tinha nascido. Mas foi apenas um instante. Pensou, ‘vou voltar, claro, mas agora vai ser tudo de outra maneira’, e tentou convencer-se de que iria ter forças.
No trabalho toda a gente ficou de olhos arregalados, ‘mas o que é isto…?!’ e viravam a cabeça à sua passagem. Ela já envergonhada, já arrependida. Tão habituada a que ninguém a visse, aquela curiosidade atrapalhava-a. Mas depois uma colega disse-lhe ‘ficas outra, mulher, devias andar sempre assim, pareces mais nova, até se vê que és bonita e vê se não te vais abaixo e se passas a arranjar-te assim todos os dias, devias era ir também ao cabeleireiro dar um jeito nesses cabelos’ e ela, tímida, insegura, ‘achas?’. ‘Claro que acho, vai à hora de almoço’.
E foi. Cortaram-lhe o cabelo com um corte moderno, fizeram-lhe nuances, e aceitou que pusessem o creme, e mais a máscara hidratante, e as massagens no couro cabeludo souberam-lhe tão bem, finalmente um toque humano.
À tarde regressou, um bocado atrasada, envergonhada, toda a gente banzada, ‘mas isso hoje, hem!?…temos festa, ou quê…?’ e ela sem saber o que responder.
A colega deu-lhe uma ajuda ‘mas vergonha de quê, mulher…?! Deves alguma coisa a alguém….? Ora essa! Levanta essa cabeça, desencolhe-te, baixa esses ombros, peito para a frente, vá…! E, olha, vê lá mas é com a tua empregada se ela pode ficar interna ou, pelo menos, se pode lá ficar também algumas noites. Tens que descontrair, mulher, tens que aliviar a carga que carregas nas costas, tens que viver a tua vida, mulher!’. Suspirou sem saber o que responder, sem saber o que fazer, sem saber como fazer, mas achou que, de facto, era por aí que tinha que ir.
Resolveu sair um pouco mais cedo, foi passear à beira do rio. Cruzou-se com muita gente, não fazia ideia que havia este movimento todo à tardinha. Depois foi para uma esplanada, devia ser a primeira vez que se sentava assim sozinha, numa esplanada junto ao rio. Tirou um livro da mala, começou a ler, pediu um chá. Olhava em volta, tanta gente feliz, uma criança na outra mesa olhou para ela e riu e ela retribuiu, fez adeus. A criança riu e fez-lhe também adeus. Sentiu-se mais leve.
Então, reparou que, na mesa em frente, estava um homem que a olhava. Atrapalhou-se, baixou o olhar mas já não conseguiu ler mais, desatenta, vontade de voltar a olhar, tímida, insegura, e já se sentia uma cinderela, e já sentia medo de se desiludir, e o coração já batia, uma parvoeira: o costume. Depois, como quem não quer a coisa, olhou em volta e o homem ainda a olhava. Disfarçou. Ele disfarçou também. Sentiu-se corar. ‘Que disparate, credo’, censurou-se.
Foi-se deixando ficar enquanto pensava, ‘amanhã venho outra vez’. Depois o homem levantou-se e foi-se embora, era um homem em que se sentia também o peso da solidão. Passado um bocado, pediu a conta e saiu também. ‘E agora, o que é que hei-de fazer?’, pensou. Resolveu ir ao cinema. Nem sabia se havia de comer qualquer coisa antes, não estava habituada a gerir a sua vida fora do ambiente trabalho-casa, sempre preocupada, sempre ansiosa. Agora queria libertar-se um pouco e nem sabia como. Telefonou para casa. Do outro lado, a ajudante descansou-a, ‘a senhora esteja descansadinha, por aqui as coisas estão bem, ou melhor, estão na forma do costume, distraia-se, se for preciso passo cá a noite’.
Respirou fundo, parada, sem saber o que fazer.
Depois resolveu ir até ao centro comercial para ver que filmes havia. Nada de especial mas, mesmo assim, comprou um bilhete para a sessão das 9, depois foi comer uma salada. No espelho da casa de banho, antes de entrar no cinema, quase nem se reconheceu. Deu-lhe vontade de rir. Que aventura. Quando entrou na sala de cinema, sentiu um arrepiozinho de emoção: há quanto tempo…! O cheirinho da sala, o escurinho, que saudades… Reparou que havia uns quantos mais assim, desirmanados, homens e mulheres. Sentiu-os como brothers in arms. Não era a única, afinal, não precisava de se sentir envergonhada como se tivesse nascido com defeito, como se ninguém a quisesse, quase como se fosse uma imprestável.
No fim, à saída, com as luzes, sentiu-se meio atarantada, precisava de ter por perto alguém a quem dar o braço. Mas não tinha, paciência. Pensou ‘e agora, a esta hora da noite, o que é que faço? Como é que vou para casa? Com tantos assaltos… e eu com estes ouros…’. Dirigiu-se ao segurança e perguntou se não havia táxis. O segurança tranquilizou-a. ‘Há, saia por aquela porta que há sempre ali algum, mas, senão, vamos ali ver o número de telefone e a senhora telefona e pede um que a venha aqui buscar’. Tranquilo o homem. Sentiu-se tranquila também. Afinal tudo tão fácil. Havia táxi. Gostou de ir de noite, assim, sozinha, soube-lhe bem o passeio, parecia que se estava a emancipar. Chegou a casa, a ajudante via televisão ‘Então, já veio? Escusava de estar preocupada. Olhe, ali o nosso bebé adormeceu ainda não eram 10, já dorme o soninho dos justos. Quer que eu fique cá? Só tem é que me arranjar um pijaminha’. Ficou.
Antes de se deitar espreitou o quarto onde uma pessoa de idade, ralos cabelos brancos na almofada, a respiração com a pieira do costume, dormia. Estava tudo bem. Sentiu-se como se estivesse de férias, menos esmagada pelo peso das circunstâncias. Adormeceu tranquila, quase como se estivesse feliz.
Quando se levantou já a ajudante andava levantada, ‘ já está a higienezinha feita, já comeu o Nestum, comeu tudo, estava até com fominha, já perguntou por si, vá-lhe ali dar um beijinho mas já está tudo tratadinho, pode ir descansadinha’, contente pela própria eficiência.
Respirou de alívio. Sentia que uma nova vida estava a começar. Escolheu a indumentária e resolveu ‘hoje, à hora do almoço, vou comprar roupa’.
Foi e logo lá trocou a que trazia pela nova. Olhou-se no espelho - verdadeiramente uma outra, um ar de mulher ainda apetecível, mais moderna, mais descontraída. Depois comprou sapatos, depois uma mala. Brand new, novinha em folha. À saída viu um contentor de recolha de roupas usadas. ‘Não é tarde, nem é cedo: vai tudo de abalada!’ e enfiou nele o saco com a anterior indumentária. Que sensação de limpeza, de novidade, de vida nova. Pensou, ‘vou sair ainda mais cedo, vou dar uma volta pelo rio e vou mais cedo para a esplanada e quem sabe…?’.
Aquele olhar do homem da véspera estava a causar-lhe impressões pelo corpo adentro, coisa que não sentia há mais de mil anos. Sensação gostosa. Uma emoção! Uma vida nova afinal ali tão ao alcance da sua mão. E resolveu 'amanhã vou comprar lingerie, uma coisa sexy' e, sorrindo, concluiu para si própria, 'we never know...' e sentiu uma inesperada malícia a esboçar-se no pensamento.
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Rachel McAdams for Vogue by Mario Testino |
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[O par David e Anna-Marie Holmes, do Canadá, executa um pas-de-deux ao som do Adagio de Albinoni. Norman McLaren dirigiu este pequeno filme em que, em câmara lenta, podemos observar a beleza absoluta dos movimentos aqui desenhados com uma precisão e rigor técnicos que nos deixam assombrados.]
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Um bom dia para vocês.