Para o João Carlos Lopes, guardador de memórias em Torres Novas
E então sentámo-nos os quatro à volta da lareira, eu, Isabel, Afonso, Carlos; e eu disse ‘tinha estado um dia de névoa, a noite estava ainda assim, toda embrulhada, e os cavalos ouviam-se no empedrado’. Isabel continuou ‘estava frio, embrulhei-me numa capa de lã e fui à janela, os cavalos já lá iam, mas ainda vi o último que passava por debaixo das arcadas, parecia vir dos lados da praça, ia na direcção da ponte. Estava escuro, o cavalo, de tão escuro ao luar, quase parecia azul. Pareceu-me ver uma mulher, pela capa, pelos cabelos’ mas era vago o olhar de Isabel. Afonso recordou-se ‘nessa noite eu não conseguia dormir, andei de sala em sala, pegava e largava livros sem me conseguir fixar em nenhum, acendi a lareira, fumei, os gatos roçavam-se lá fora nas portas, tinha recebido uma carta muito estranha, deixou-me perturbado’. Carlos lembrou-se então ‘também eu tinha recebido uma carta misteriosa nesse dia, senti-me tentado, ou intimidado ou pior que isso’. Isabel segurou a mão de Carlos ‘não sabia, nunca me tinhas falado nisso’. Ele abraçou-a ‘foi há muito tempo, já nem me lembrava e, olha, já passou’.
Continuei ‘os cavalos andavam à volta da casa, tive medo de espreitar, os cavalos pareciam nervosos’. Afonso olha para baixo, esfrega as mãos ‘para que foste agora puxar esse assunto?’, e Isabel olha para mim, está incomodada, não lhe agrada o rumo da conversa.
Continuo ‘nesse dia, Isabel, toda a tarde escreveste, estavas nervosa, e depois, Isabel, não saías da janela. Quando te procurei no quarto, assustada com os cavalos à volta da casa, não te encontrei’.
Carlos, agita-se, olha Isabel e não consegue dizer nada.
Eu prossigo ‘depois os cavalos largaram em tropel, ouvi-os cada vez mais longe. Na manhã seguinte o sol tinha descoberto e ninguém mais falou no assunto, nem tu Isabel’.
Isabel, então, levanta-se e sai. Nenhum de nós diz nada. Carlos abre a janela e olha a noite escura. Afonso, hesitante, lento, levanta-se e diz apenas ‘está frio’ e, de longe, diz-me ‘há coisas que não fazem sentido’, e põe uma mão no ombro de Carlos.
Não voltámos a falar no assunto.
Uns anos depois, eu e Afonso descemos a avenida como tantas vezes o fazemos, era tardinha, quase noite, a cidade a recolher-se, fomos até à Praça, os jacarandás já começando a ganhar corpo. E então ouvimos o som de cavalos ‘que coisa mais estranha’, disse eu, ‘cavalos aqui?’ Estava uma temperatura agradável, quase ninguém na rua, e eis que passa um cavalo numa correria. ‘Parecia a Isabel, viste?… Será possível?’, espantei-me. ‘É natural’ disse Afonso e eu não percebi. A seguir passou outro cavalo, este sem ninguém, numa corrida inquieta, e inquieta também eu ‘que estranho, o que se passa?’. Afonso disse ‘não queiras saber. Olha a beleza destes jacarandás’. Já floridos, lilases e belos, uma cor suave, um doce e vago perfume no ar, talvez viesse dos jacarandás, talvez tivesse sido deixado por Isabel. Um gato contemplava-nos do muro, imóvel. E eu pensei ‘um dia, quando os jacarandás da praça florirem em todo o seu esplendor, sentar-nos-emos aqui e falaremos finalmente daquela noite’.
[Segundo me contou João Carlos Lopes, editor em Torres Novas, cidade muito bonita, muito estimada, foi pedido a uma série de amigos um texto, um pequeno conto, uma short story que deveria respeitar uma única condição, incluir a frase “quando os jacarandás da praça florirem em todo o seu esplendor”. Não sabiam uns dos outros e depois foi recolher o material, pedir a outra amiga que concretizasse o design já estabelecido. A coisa é mais ou menos explicada na introdução do livro que assim nasceu: no último arranjo da praça mais bonita de toda esta região, plantaram jacarandás a substituir as “mélias”. De ano para ano, a floração aumenta um bocadinho, mas eles são jovens, ao contrário de muitos espalhados pela cidade. Mas hão-de atingir o seu esplendor.
Assim mo explicou João Carlos Lopes.
Como reconhecimento pelo mérito da inovadora ideia e pela amabilidade, sem ter ainda lido nenhuma das histórias incluidas no livro, aqui deixo um pequeníssimo conto que respeita a condição de incluir a referida frase.]
[E, por falar na simpatia e generosidade dos leitores, peço-vos que desçam um pouco mais para verem, já aqui abaixo, notícia das imagens de NY enviadas pela Tita]
Querida jeito manso
ResponderEliminarÉ sempre um prazer ler o que escreve.
Fico feliz por fazer parte dos meus dias.
Um grande abraço de Natal para si e para todos os que aconchega no seu coração.
Querida Era uma Vez,
ResponderEliminaré um privilégio ter a sua companhia, aqui neste meu recanto.
Um feliz Natal também para si e para os que lhe são mais próximos.
um beijinho.
bonita história e lindo quadro, de chagall, será?
ResponderEliminarPatrício,
ResponderEliminarTem graça que hesitei entre Chagall e este.
Este é de Franz Marc, um pintor alemão que morreu novo (1880-1916) e que pintou estes fantásticos cavalos azuis.
Gostei que tivesse gostado da história. Obrigada.