Seria bom que se esclarecesse se a empresa do Montenegro não foi criada para ele pagar menos impostos dos que seriam devidos se fosse taxado como pessoa singular.
Uma breve análise das notícias que têm vindo a público levantam dúvidas que parecem apontar nesse sentido.
Vejamos: estamos perante uma empresa cujos sócios são uma educadora de infância e dois jovens. Mas faturou centenas de milhares na área da consultoria conhecendo-se, referido pelo Luís, que um dos negócios foi efetuado com a Medialivre, ex-Cofina, e teve a ver com consultoria na área do RGPD. Também foi noticiado que a empresa, no início, tinha dois empregados, um dos quais a tempo parcial, que ganhavam praticamente o salário mínimo. A "coisa" não bate. Consultores RGPD ganham muitíssimo mais que o salário mínimo e não consta que educadoras de infância tenham formação que permita fazer consultoria em RGPD e também não é credível que jovens estudantes estejam capacitados para o fazer. Restam três hipóteses: ou o trabalho não foi feito, ou o Luís Montenegro fez ele próprio o trabalho e sigilosamente prestou consultoria nesta área (mas, nesse caso, porquê através desta empresa e não através do seu escritório de advogados?) ou a empresa contratou consultores externos para fazer o trabalho. Admitindo como boa a terceira hipótese ficam, mesmo assim, muitas dúvidas. Quem no âmbito deste tipo de trabalhos representaria a empresa junto dos clientes e angariaria os negócios? Uma educadora de infância? Dois jovens estudantes? Assalariados que usufruíam o salário mínimo? Quem acreditar no Pai Natal poderá admitir que uma destas possibilidades corresponde à realidade. Talvez seja muito mais realista admitir que estes negócios, se existiram, eram conseguidos pelo então presidente do PSD, atual primeiro-ministro. Mantem-se, de qualquer forma, a dúvida sobre quem efetuava o trabalho.
Será que aqueles trabalhadores da Spinumviva, que ganhavam mais ou menos o salário mínimo, eram, por exemplo, a senhora da limpeza e o motorista da família Montenegro? E será que nos custos da empresa não estão contabilizados despesas de restaurantes, férias (contabilisticamente classificadas como 'Deslocações em serviço' ou 'Estadias',...?), os custos das viaturas da mulher e dos filhos do Montenegro, todos os gastos com o edifício onde habitam (água, eletricidade, comunicações, quiçá até rendas) já que, provavelmente não por acaso, a casa é a sede da empresa.
Pode ser que não exista nenhuma ilegalidade na empresa -- já que o nosso sistema fiscal se presta a estas habilidades -- mas o funcionamento da empresa, a respectiva contabilidade/fiscalidade e os negócios que fez e com quem foram feitos deveriam ser devidamente explicados.
Aliás, a propósito das facilidades que o nosso sistema fiscal proporciona, não é por acaso que médicos criam empresas para prestar serviços como tarefeiros ao SNS (onde ganham mais e pagam menos impostos do que se pertencessem ao 'quadro'), tal como empresários de todo o tipo e profissionais liberais fazem a mesma coisa. Faturam através de empresas de que são sócios onde metem todos os custos que conseguem, não pagam IRS e, desejavelmente, também conseguem não pagar IRC.
Quem por aí anda a encher a boca para falar da reforma fiscal melhor faria se pusesse o dedo na ferida e acabasse, de vez, com este forrobodó.
No caso do Montenegro, se as dúvidas que formulei forem verdade não será ilegal, mas para um primeiro ministro será muito reprovável, quer numa perspetiva ética quer politica.
Convém não esquecer que há muito poucos dias um secretário de estado demitiu-se por uma situação que, por ser dúbia, levou a que Montenegro tenha referido que o tipo tinha sido imprudente. De tudo o que a Comunicação Social tem divulgado, parece que também ele, Montenegro, parece ter sido imprudente -- mas não terá sido mais do que isso?
Uma nota final: ouvi o Miguel Sousa Tavares falar hoje na TVI sobre este assunto. Foi de uma suavidade e candura raramente ouvidas na personagem. Um amigo meu, que me telefonou há pouco, também surpreendido, até se interrogava: Será que o Miguel também fatura à TVI através de uma empresa da qual é sócio?