segunda-feira, junho 23, 2025

Varrer, regar, ver esquilos, fazer conteúdos digitais

 

Quem se dá ao trabalho de ver os meus inconcebíveis vídeos no Instagram, para além de constatar um indiscutível amadorismo e uma total ausência de propósito, já deve estar farto do chinfrim que faço ao andar, pisando caruma, folhas secas de azinheira ou de eucalipto, bolotas ressequidas e tudo o mais que por aqui se junta. 

É certo que eu poderia -- e, se calhar, deveria -- aprender a editar os vídeos, retirar-lhes o ruído ambiente, cortar e colar bocados disparatados, etc. Mas, sinceramente, não ando com paciência para gastar tempo com isso. E, ao escrever isto, receio que achem falta de respeito da minha parte apresentar produtos de tão insólita falta de qualidade alegando falta de paciência para aprender e para editar. Porém acreditem: não é falta de respeito, é mesmo uma quase incapacitante falta de paciência. Pode ser que me passe... Um dia que leve mais a sério isto de fazer 'conteúdos digitais' (como agora sói dizer-se) talvez me leve a mim mesma mais a sério (e agora devia aqui inserir um emoji a piscar o olho e a deitar a língua de fora para que percebam que estou a pensar que está bem, está). 

Em contrapartida, tenho passado os dias a varrer em volta da casa. Só que a casa, ainda assim, tem um perímetro que vai lá, vai, e os calores dos últimos tempos têm feito o chão encher-se de folhagem seca. Por isso, é um trabalho insano, uma never ending story, uma cena à moda do sísifo. Até não há muito, com as chuvas, era musgo por todo o lado e até nascia erva das pedras. Agora está tudo seco e é o que se vê.

Lá por baixo, na extensão grande do terreno, não há como varrer ou impedir que os meus passos façam barulho ao pisar isso, mas, em volta da casa, até por razões estéticas ou de segurança, obviamente tem que ser tudo limpo.

Em tempos, tínhamos contratado um senhor da aldeia para tratar das limpezas e das regas. Vinha duas tardes (completas) por semana. Queixava-se, dizia que não chegava, dizia que era trabalho a tempo inteiro. Mas também não queríamos que isto fosse o palácio de versalhes, não era nossa ideia ter um jardim imaculado em volta da casa. Sobretudo, o que queríamos era que, ao fim de semana, não tivéssemos que nos preocupar com isso. Mas o senhor, para nos demonstrar que duas tardes (inteiras) por semana não chegavam, pespegava-se cá ao sábado. Nós a querermos estar descansados e à vontade e ele a cirandar por aqui, a chamar-nos para nos mostrar isto, a chamar-nos para nos perguntar sobre aquilo, uma seca de que não havia memória. Mesmo quando lhe dizíamos que íamos cá ter pessoas, ele não despegava. Aliás, parece que fazia questão em estar, em ver e ser visto. Ficávamos passados. Com muita dificuldade e cuidado para não o melindrarmos, acabámos por dispensá-lo.

Mas isto não se dá conta. Precisa mesmo de manutenção. O ano passado o meu marido contratou outro senhor da aldeia. Veio recomendado pelo vizinho do início da rua. Avisou-nos que ele bebia um copito a mais mas que era trabalhador e sério.

Chegávamos cá e estava tudo na mesma, com excepção de beatas por todo o lado. E não era das puritanas que rezam, eram mesmo das que podem pegar fogo. Queixava-se que era um trabalho ingrato, que vinha limpar e varrer e apanhar ervas todos os dias e que chegava ao fim de semana e o que tinha sido cuidado na segunda-feira já estava outra vez a precisar de ser limpo. O vizinho confirmava que o via andar por cá a trabalhar, que não era tanga. No fim, pagávamos horas que nunca mais acabavam e não se via nada de jeito, só beatas. Dizia que tinha cuidado, que as apagava bem. Mas eu não podia ver beatas por todo o lado, é coisa que me me complicava com o sistema nervoso. No conceito dele, os cigarros são para se deitar para o chão e parecia não perceber que não o deveria fazer. Acabámos por agradecer e, uma vez tudo pago, nunca mais lhe dissemos para vir.

Resultado, somos nós que tratamos do assunto. O meu marido reclama, diz que é trabalho a mais.

A mim não me custa. Gosto imenso de varrer. Aposto que para a minha cabeça é como se estivesse a meditar: não penso em mais nada. Ando completamente focada a varrer e fazer montes. O pior é que, depois, encher os sacos ou os carrinhos custa um bocado. Uso uma pá grande mas, às tantas, o meu marido pega ele naquilo e anda ele a recolher os montes, a transportá-los para a terra. E queixa-se. Diz que, antes de eu acordar, já ele andou a cortar mato ou a fazer outras tarefas e que, depois, eu não sei parar e varro este mundo e o outro e que não está para isso. Mas esta nossa dinâmica, de reclamarmos um com o outro, já tem barbas, ou seja, já não ligamos muito aos protestos um do outro.

Outra coisa que fica para mim é a rega. Gosto imenso de regar. Quem me acompanha aqui há muito tempo, recordar-se-á que já contei que, de início, investimos fortunas (salvo seja) em sistemas de rega mas que, quando cá chegávamos ao fim de semana, estava tudo roído. Os coelhos (ou outra bicharada) roíam tudo. O meu marido substituía e eles comiam. Desistimos. O meu marido decretou que o que sobrevivesse sem rega seria bem vindo, o que carecesse de cuidados, podia desaparecer à vontade. E assim foi.

Mas o que está mesmo em volta da casa, do lado da frente, tem que ser regado. Agora do lado de trás e dos lados (se bem que a casa, pela sua arquitectura, na prática não tem frente, nem lados, nem trás) nunca é regado.

E, no entanto, está tudo gigante. Só as laranjeiras, e estão à frente, é que estão raquíticas e vão acabar por morrer. Não deveriam ter sido plantadas, não se dão aqui, é impossível. Quando comprámos o terreno já cá estavam, e já eram infelizes. Trinta anos depois ainda sobrevivem... mas coitadas.

E hoje já andei a apanhar orégãos, amanhã já vou montar o estaminé do costume: lençol em cima da mesa da casa de jantar e eles espalhados em cima, a secar. 

Adoro. São perfumados, frescos. Bouquets graciosos, delicados e com a graça adicional de serem comestíveis.

O campo, para mim é uma mistura de mil sensações boas: os sons, os cheiros, a luz, a paz, o vagar, o contacto directo com a terra, com o trabalho simples. Maravilha maior. Não há cá férias em resorts, em turismos de habitação cinco estrelas, o que for: aqui é que a minha alma rural se sente bem.

E, ao fim do dia, enquanto estava ao telefone com a minha filha, ia ela a caminho de casa depois de umas belas férias abroad, e eu por ali andava de um lado para o outro, uma surpresa daquelas que me deixam a sorrir, com vontade de agradecer, com vontade de trepar às árvores a ver se me aceitam como uma deles: um esquilo a andar por cima de um banco, a trepar a um muro e depois a subir pelo tronco da azinheira sob a qual eu estava. Que bênção, que alegria. Eu com receio que eles tivessem desaparecido e, afinal, ainda por aqui andam. Este é mais escurinho do que os que eu tinha visto antes. Este era mesmo castanhinho escuro. Lindo, fofo, um rabo enorme, ao alto.

Estava a falar ao telefone, não consegui fotografá-lo. Mas acreditem, ainda por aqui andam. Provavelmente, enquanto ando a varrer, estão eles lá em cima a tentar compreender que animal é este que, cá em baixo, se entretém a fazer montes de folhinhas e bolotas (e pinhas que eles deitam para o chão depois de as roer). Esse animal sou eu que, tal como eles, vim de outras paragens para usufruir do privilégio de respirar este ar tão puro, para viver nesta paz tão mágica.

_______________________________________

Desejo-vos uma boa semana

Be happy

domingo, junho 22, 2025

O MP, a PJ e os perigos para a democracia
-- A palavra ao meu marido --

 

A semana passada a PJ fez uma operação com o objetivo de desmantelar um grupo neonazi que atuava em Portugal. Curiosamente, só o fez depois de vermos reportagens jornalísticas sobre o grupo e de elementos do grupo terem agredido pacatos cidadãos que apenas faziam aquilo que conscientemente entendiam fazer sem qualquer prejuízo para a sociedade. 

Tenho sempre alguma dificuldade em entender a razão de as polícias não investigarem o que realmente é perigoso para a sociedade e para a democracia e andarem a reboque da comunicação social nestes assuntos. 

Soube-se, entretanto, que o grupo neonazi tinha militantes que pertenciam à polícia, à GNR e às Forças Armadas e que planeava acabar com o governo socialista por meio de uma ação violenta no parlamento. 

Enquanto se desenvolviam estas ações organizativas, criminosas e verdadeiramente perigosas para a democracia, o MP estava preocupado com os jantares do Galamba e com mais uma série de putativas parvoíces. É de " louvar" a perspicácia dos  magistrados que, por manifesta falta de qualidade ou por, porventura, terem agendas escondidas, em vez de investigarem assuntos verdadeiramente importantes, se ocupavam de menoridades inconsequentes. 

Não consta que durante quatro anos tenham feito oitenta e tal mil escutas telefónicas ao polícia que chefiava o grupo. Esqueceram-se ou não era prioritário? 

Também é curioso que a polícia e as forças armadas não consigam garantir que o respetivo pessoal cumpre os mínimos democráticos. 

Já agora não quero deixar de referir que a votação no Chega deu, em minha opinião, um forte contributo para estes grupos saírem do covil e aparecerem em público a defender ideologias intoleráveis, contra os mais elementares direitos dos cidadãos. Também se deve agradecer ao José Pedro Aguiar Branco o trabalhinho que fez como presidente da AR ao permitir que o Chega denegrisse o Parlamento durante toda a legislatura. Assim, se criam percepções que tornam as instituições alvos fáceis para quem quer destruir a democracia e se potencia o voto nas forças anti sistema. 

"Parabéns" José Pedro. Ou será que ainda é possível emendar a mão? Aguarda-se para ver o seu comportamento nesta legislatura.

Caminhamos numa direção muito perigosa e corremos o risco de em pouco tempo desbaratarmos o que levou muitos anos a conquistar. Os EUA, com o Trump, são um exemplo acabado deste retrocesso. Se não tivermos pessoas preocupadas e pressionantes e políticos à altura, isto não vai acabar bem. 

Infelizmente, do que se tem visto parece que a malta que agora governa está mais preocupada em seguir a agenda do Chega do que seguir um caminho escorreito. Tempos desafiantes.

sábado, junho 21, 2025

Um dos mais lindos metros do mundo

 

Isto é uma manifestação

Não sei há quantos anos não ando de metro em Lisboa. Décadas, seguramente. Habituámo-nos a andar de carro. Bem sei que é uma parvoíce. Mas, quando sugiro ao meu marido que, em vez de andarmos preocupados com o trânsito ou com o estacionamento, podíamos usar transportes públicos, pergunta-me onde é que deixávamos o carro. Não há transporte directo para o centro, pelo menos que saibamos. Por isso, ou fazíamos transbordo ou íamos de carro até um lugar mais ou menos periférico. Mas desabituámo-nos, isso parece-nos mais complicado do que irmos de carro desde que fechamos a porta de casa até quase à porta do lugar onde vamos. Há hábitos difíceis de quebrar.

Isto é uma (subtil) performance

Quando eu andava de metro, e gostava de andar por ser prático e rápido, esteticamente nada tinha que se lhe dissesse. Mas mudou e, do que tenho ouvido dizer, mudou para melhor, para muito melhor. Tenho ouvido falar de algumas estações que me dizem ser espectaculares, quer do ponto de vista arquitectónico quer do ponto de vista artístico. Do ponto de vista técnico, nomeadamente do ponto de vista de engenharia civil, tendo em conta as particularidades da cidade, nem falo pois não tenho competências para avaliar -- mas imagino que cada estação seja um desafio, especialmente as da baixa, debaixo de água, no meio de estacaria e de ruínas.

Estas são as três graças

Mas hoje, depois de um dia longe de trânsitos, poluições e outras confusões, um dia dedicado a varrer (não dou conta da caruma, das folhas secas das azinheiras, das bolotas), a caminhar entre árvores, a fotografar flores e florzinhas, pés de orégãos, searas imaginárias, luzinhas mágicas a envolver pomponzinhos fofos, eis que pouso aqui, no bem bom, e recebo, de presente do youtube, um vídeo que mostra a beleza do metropolitano de Lisboa.

Diz ele que é dos mais belos do mundo. E eu fico contente por saber isso. Adoro Lisboa, adoro Portugal, adoro as coisas lindas do meu País.

Para quem esteja como eu -- a milhas de o conhecer -- aqui fica. Lindo, de facto, moderno, elegante, arejado e convidativo. Um dia destes vai ter que ser.

This Is the Most Beautiful Metro (that no-one talks about)

When transport fans, enthusiasts, tourists, guidebooks and listicle websites talk about the most beautiful underground systems in the world, the same small handful of cities tend to be mentioned. You've just immediately thought of at least two of them.

But no-on ever seems to bring up the Metro in Lisbon, which is, in my opinion, definitely worth including on the list. Using footage from my recent trip to the city, let me show you what I mean...


Dias felizes

sexta-feira, junho 20, 2025

Podem desmentir-me se quiserem

 

Isto é uma catedral

Gosto agora muito de me sentar no jardim ou no campo, em especial à tardinha, a olhar para o ar, para o céu, para as árvores. 

No jardim há agora um perfume novo, creio que a mistura de várias flores. É um perfume floral, isso sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, doce e íntimo. Os pássaros também gostam. Descem e vêm passear perto de mim, entretendo-se a debicar o que encontram na terra. 

Se estou sob as árvores gosto de as admirar, vendo-as de baixo. Não existiam e foram-se tornando a maravilha que são. E gosto de ver as flores através da luz. Ou a luz através das flores. Parece o mesmo mas não é. 

As nuvens também me cativam. São efémeras como uma aragem. Não têm a noção do tempo nem do espaço, são livres como uma partícula elementar, como uma palavra solta ao vento, como espíritos vogando por aí.

Isto é um deus, e creio que daqueles que não são particularmente santos
(honi soit qui mal y pense).

Muitas vezes tenho um livro comigo mas, se o livro não tem nada que me impressione (e impressionar no sentido em que a luz impressiona a película, nela gravando imagens, sombras, movimentos), fecho-o e deixo-me estar.

Isto é um milagre. Inexplicável. Fruto da inspiração de uma inexistente divindade

Tenho saudades de fotografar com as minhas máquinas fotográficas. Foram-se estragando e, depois, para quê continuar?, já tinha milhares de fotografias. Faz sentido continuar a acumular fotografias? Não vou voltar a vê-las. O que gosto é do momento em que capto a imagem. A partir daí já não me interessam. Agora uso o telemóvel. E vou apagando pois estou sempre a precisar de mais espaço.

Isto é uma obra de arte. Fortuita. Com a vantagem de não ser um Miró 

________________________________________________________________

Já contei muitas vezes que, quando fazemos as nossas caminhadas nestes dias de calor, mal transpomos e entrada do nosso jardim, sentimos a frescura que nele se acolhe. A temperatura está uns graus abaixo da temperatura fora dele. São as árvores, as trepadeiras, as flores, é o carinho que retêm.

In heaven a mesma coisa. Vou andar lá em baixo e, no meio das árvores, é outra a geografia. 

Em qualquer dos casos, o tempo suspende-se. 

Hoje estava sentada no meio das flores, o cão deitado, os passarinhos a cantar. Pensei que poderia ficar assim saecula saeculorum. Talvez bastasse não me mexer. O mundo à minha volta a girar e eu ali, parte do tempo, imóvel como o tempo, uma partícula imaterial suspensa na infinitude do espaço.

____________________________________________________

E para que não protestem com o teor da conversa, para quem prefere temas mais concretos, aqui está um vídeo que poderia muito bem servir de inspiração a quem tem a responsabilidade de melhorar os espaços públicos.

THE MINI FOREST - Rewilding using the Miyawaki Method

Terrell Wong is about to plant 100 trees in her small Toronto backyard, a dense mini forest based on the Miyawaki Method. What at first seems like a simple act soon evolves into a complex story about dirt, lawns, fungus, wildlife, native species, and finally the human brain. An anti-lawn anthem from director David Hartman, The Mini Forest explores this innovative form of afforestation and the importance of restoring the native woodlands that once covered so much of Canada and the World.


Uma boa sexta-feira

quinta-feira, junho 19, 2025

Bons momentos, boas memórias, jardins, boa gestão da água (para combater a desertificação), etc.

 

Gosto de livros, de filmes e de vídeos sobre jardins e jardineiros. Sobretudo, gosto de jardins. 

Tenho vivido bons momentos ao longo de toda a minha vida. 

Não guardo traumas (ou, pelo menos, não dou por eles). Sempre relativizei o que me desagradava. Na escola devo ter passado por situações menos boas pois toda a gente se lembra de ter passado e eu não devo ser diferente dos outros. Mas, de facto, não me lembro. Situações boas de que me lembre são aos montes. Provavelmente desde miúda que reajo como sempre me ter lembrado de ter reagido: não ligar a mínima ao que me desagrada.

Por exemplo, lembro-me de que, quando cheguei ao 1º ano do que se chamava Ciclo Preparatório, hoje 5º ano, não conhecia ninguém na minha turma. Na altura, as turmas eram inteiramente femininas. Várias das minhas colegas tinham andado juntas na escola primária e, portanto, já eram amigas. Eu aterrei num mundo desconhecido. Isso para mim foi apenas uma alegria, um mundo novo a descobrir. Era tudo desconhecido: o espaço, o ambiente, as professoras, as colegas, as regras. Com dez anos acabados de fazer ia, de autocarro ou a pé, sozinha para a escola e da escola para casa. Os meus pais trabalhavam e, por isso, eu estava por minha conta. Achava isso natural. Talvez estranhando não verem a minha mãe, perguntavam-me por ela e eu dizia que ela estava na escola, a dar aulas, era professora. Lembro-me de um dia uma colega me ter dito, com ar abespinhado, que eu julgava que era melhor que as outras e, quando eu me mostrei admirada e perguntei porque dizia ela isso, me ter respondido que eu dizia que a minha mãe era professora. Lembro-me bem do meu espanto e de ter dito: 'Mas ela é professora!'. E lembro-me de ter pensado: 'É mesmo burra, se calhar queria que eu dissesse que a minha mãe estava em casa, só para ser igual às outras'. Não me aborreci. Relativizei, achei apenas que ela era burra. E ao longo de todos os anos em que com ela convivi mantive a mesma opinião: só diz burrices.

Por isso, se alguém me chateou (e, repito, só me lembro dessa vez), borrifei.

A minha mãe por vezes arreliava-se por eu ser assim. Disse-me várias vezes que me achava excessivamente racional. Na realidade, eu sempre fui muito o oposto dela. Embora para o exterior ela mostrasse alguma resistência à opinião alheia, a verdade é que se incomodava muito com isso. E guardava mágoas e ressentimentos. Eu zero. Não queria saber disso para nada. Ela às vezes dizia-me: 'disseram isso de ti e não queres saber..?'. E eu respondia que não, não queria saber. Zero, zero. Por isso, quando ela às vezes mostrava opiniões negativas sobre alguém, eu nunca sabia porquê. Se alguma vez tinha sabido, já tinha esquecido. Ela ficava passada comigo. Achava-me excessivamente desprendida. 

Mas dos momentos bons não me esqueço. E não os desvalorizo.

Podem ser situações aparentemente insignificantes mas, para mim, muito relevantes. Por exemplo, e já falei disso muitas vezes, dos momentos bons, relembro os que vivi, ainda que fugazmente, nos viveiros em que ia comprar pequenas árvores para tornar o nosso terreno pedregoso naquilo que é hoje. Já não me lembro como se chama a terra, se é Chamusca, se é Azambuja, sempre confundi os nomes. Saía de casa muito cedo, metia-me a caminho para lá estar muito cedo (não me recordo bem mas tenho ideia que aquilo abria às oito). Depois escolhia as arvorezinhas, levava o carro cheio e regressava a Lisboa, para ir trabalhar. 

As jardineiras, simpaticíssimas, de galochas, andavam pelo meio de todo aquele mundo, um mundo perfumado, húmido, generoso, a terra negra, fértil -- e elas conheciam todas as espécies pelo nome correcto, sabiam como cresciam, como se faziam, escolhíamo-las em conjunto, eu pedia a opinião delas, elas juntavam-se para andar comigo. Acredito que achassem curioso que ali chegasse aquela mulher vinda de Lisboa, vestida daquela maneira, de saltos altos, toda produzida, e por ali andasse conversando com elas, escutando-as com tanta atenção. Cheguei a dizer-lhes que as invejava, que não me importava de trabalhar ali. A forma como faziam transplantes de vasinhos para vasos maiores, a forma como tratavam as plantinhas como bebés, como animaizinhos que precisassem de cuidados, enternecia-me.

No liceu detestei botânica. Hoje penso que a forma como se ensina destrói a curiosidade e o gosto dos miúdos. Muito se deveria repensar sobre a forma de ensino.

Mas também é certo que o meu gosto por árvores, por flores, por trepadeiras, é um gosto mais espiritual que académico ou funcional. Por exemplo, não me sinto atraída por saber as regras de uma poda correcta ou por fazer uma horta. Mas gosto de andar junto às plantas, contemplá-las, venerá-las. É um gosto poético, um gosto imaterial, quase abstracto, difícil de explicar. 

________________________________

Não obstante, gosto de ver vídeos como este que aqui partilho em que se abordam temas bem pragmáticos, muito terrenos. Muito pertinentes. Este é um dos tipos de sabedoria que me cativa.

Portugal is Turning into a Desert – Can This Farming Method Save It?

Portugal is slowly turning into a desert. But is the real issue a lack of water—or poor water management? Lars and Denise are using a powerful technique to restore the land and prevent desertification. This technique can be applied anywhere in the world—not just in Portugal or dry regions. By using this method, you’ll gain a deeper understanding of farming and how to work with nature instead of against it.

In this short documentary, Lars—who has spent years working with nature—explains the basics of his approach, inspired by syntropic farming. Want to learn more? Together with Lars and Denise, I (Sara) have created step-by-step videos to teach this method.

00:00 - 00:37 Intro

00:37 - 02:17 Results

02:17 - 05:56 How to regenerate the land? Permaculture vs. syntropic farming

05:56 - 08:06 How long does it take to regenerate? No dig vs. dig

08:06 - 12:20 Water management

12:20 - 13:03 Step-by-step tutorials

_______________________________________________________________

Dias felizes

quarta-feira, junho 18, 2025

Uma aventura no IKEA


No fim de semana, estávamos aqui à mesa, diz um dos meninos: 'O que eu gostava era de ir ao Ikea comer almôndegas.'. Ficámos estupefactos. Ao Ikea?! Almôndegas do Ikea?!?!?!

Toda a gente o contestou. Quem é que quer ir ao Ikea? E quem é que, ainda por cima, quer ir comer almôndegas? Dahhhh....

Mas o menino dizia que gostava mesmo de ir. Perguntei à minha filha porque é que não satisfazia o filho, se era coisa que ele queria assim tanto. Respondeu que pagava para não ir ao Ikea. E muito menos iria lá comer almôndegas.

E a conversa ficou por ali.

No dia seguinte, intrigada, perguntei à minha filha de onde conhecia ele as almôndegas do Ikea. Disse que, dantes, a sogra costumava ter em casa almôndegas congeladas e, quando apareciam os netos para almoçar, descongelava-as. Se calhar não era sempre, se calhar aconteceu algumas vezes. Mas as suficientes para o menino sentir saudades.

Acresce que está de férias e, tirando os treinos de futebol, pouco tem que fazer. Um dos primos do menino também está de férias.

Então, ocorreu-me o seguinte: 'E se fossemos buscar um e outro e fossemos com os dois  ao Ikea comer almôndegas?'

O meu marido foi categórico: não, não e não. Nem Ikea nem almôndegas. Segundo ele, um disparate sem sentido. Nem pensar em ir enfiar-se no Ikea, nem pensar ir para o restaurante do Ikea, nem pensar em almôndegas. Não e não e não. Assunto encerrado.

Fui ver o menu do restaurante e vi que há outras iguarias. Li-lhe.

E falei-lhe no prazer que daríamos ao menino que estava com saudades das almôndegas. E o primo, certamente, ficaria feliz por ir também.

Auscultei os respectivos pais. Por eles, sim. 

Mas o mano do primeiro também quis ir. E a menina, que eu pensava que estava com aulas, afinal esta terça-feira não as tinha, pelo que também estava livre e também quis ir. 

(O mais novo se calhar nem chegou a saber desta aventura... Está ainda na escola.)

Pôs-se, pois, o tema logístico. O carro só dá para cinco... 

Então fomos buscar dois, depois eu e a menina ficámos no Ikea e o meu marido e o outro menino foram buscar os primos.

Foi, pois, dia de festa. A alegria de estarem juntos num programa tão fora da caixa...

Todos contentes, com carrinhos, lá fomos buscar a comida. Comeram wraps de salmão para entrada, os rapazes comeram almôndegas, dose maxi, 12 almôndegas cada, com puré de batata, bolo, água (o mais crescido bebeu coca-cola, já se sente um rapaz crescido...). Quis que levassem salada mas disseram que não, que a alface do wrap era suficiente... Dois dos meninos levaram uma peça de fruta, os outros não quiseram. Ficaram a deitar por fora, todos contentes com o pitéu... Eu comi lombo de salmão, o meu marido e a menina comeram pernil estufado. 

Depois, surpreendentemente, na saída, entusiasmaram-se com os peluches. 

Já crescidos... mas parece que lhes deu a nostalgia dos peluches. Ela trouxe um alien, o mais crescido um pinguim que diz que é para oferecer à namorada pois estão quase a fazer 6 meses de namoro, outro trouxe um macaco e disse que era para o irmão e o menino que teve a ideia inicial das almôndegas trouxe uma bola de futebol mas ficou com pena de não ter trazido também um macaco (ficou prometido para a próxima). 

Os pais, quando viram as fotografias que lhes tirei a andarem com os peluches nem queriam acreditar. Mas eles estavam radiante. Um dos meninos disse que aquilo deveria passar a ser uma tradição, nas férias irmos todos almoçar ao Ikea (não sei se sempre almôndegas ou se a tradição admitirá variantes).

Depois um dos meninos pediu para ficar em casa dos primos, os três sozinhos em casa. Obtidas as devidas autorizações, assim foi, lá ficou. A menina ficou um pouco tristonha mas tem exames, tem que estudar, e logicamente não tinha levado os livros, tinha mesmo que ir para casa. 

Para o lanche, ainda lhes comprámos lá, ao lado do snack, umas panquecas congeladas e bolachas. Os anfitriões não queriam, que há muita comida em casa, que não, que não. Mas depois, na perspectiva das panquecas e daquelas belas bolachas, aceitaram. Disseram que poriam as panquecas no microondas e as comeriam com mel.

Soube depois que, enquanto o mais crescido estava a estudar para o exame, o menino que está de férias foi com o primo, os dois sozinhos, ao supermercado comprar nutela com o seu próprio dinheiro.

Claro que o pior foi o trânsito que depois apanhámos, uma seca das valentes. Fomos pôr a menina a casa que, imagino eu, não deveria estar com grande vontade de ir estudar... Os exames deveriam acontecer no outono ou no inverno ou no início da primavera. Agora exames no verão é um sacrifício para os jovens...

E ainda fomos comprar tinta para pintar o resto do muro e mais ácido muriático e mais uma série de coisas. Um calor dos diabos. 

Mas foi um dia muito bom. Gostei muito. E o meu marido também estava contente. Não é preciso muito para as pessoas se sentirem felizes.

____________________________________

Uma boa quarta-feira

Be happy

terça-feira, junho 17, 2025

3 postais

 

Postal 1

Quando, à tarde, fazemos caminhadas alargadas, por vezes cruzamo-nos com jovens que vêm de algumas obras e vão apanhar um autocarro lá mais ao fundo. Todos negros, pele absolutamente negra, 

Fico sempre agradada com o seu perfume. Cheiram a banho fresco, a cuidados com o corpo e com o rosto. 

Fico a pensar que devem dormir em bairros clandestinos, se calhar sem casa de banho, em casas frágeis e temporárias, ou em quartos, se calhar vários colchões no chão. Nas obras devem ter possibilidade de tomar banho e de se arranjar. Vêm bonitos, bem arranjados.

Devemos muito a estas pessoas que fazem as nossas casas e arranjam as nossas estradas e jardins e que vivem tão precariamente. Pessoas como nós.


Postal 2

Íamos a caminhar à beira da praia, sempre linda e ainda mais ao entardecer. 

À nossa frente ia um jovem alto e robusto, encorpado, aspecto de jogador de rugby. Vinte e muitos, trintas e poucos anos, pernas grossas, peludas, todo ele robusto e musculado, mas sem ser daquele género de ginásio, mais o género desportista de desporto de equipa. Cabelo curto um pouco despenteado, barba. Vestido casualmente, risonho, bem disposto. 

Ao lado dele, um outro jovem em tudo o oposto. Mal chegava ao ombro do calmeirão, perninhas fininhas, todo ele magrinho, um cabelo fino, algo esvoaçante, óculos brancos, graduados. Para acompanhar a passada firme e larga do grandão, o magrinho parecia uma frágil libelinha quase saltitando em volta. Ao ir atrás deles, pareceu-me reparar que, de vez em quando, as mãos quase se tocavam. Conversavam, riam, de vez em quando abrandavam ligeiramente, parecia-me que o grande lenhador percebia que o outro estava com dificuldade em acompanhar a sua passada ampla. 

Perguntei ao meu marido: 'Não é um casal, pois não?'. O meu marido ia focado no nosso cão e noutros pois há sempre quem deixe os seus sem trela e há que evitar encontros destes, pois facilmente tendem para o confronto. Olhou de relance e foi categórico: 'Não!'. 

Mas, nessa altura, pararam ambos, o mais baixo agarrou a cara do grandalhão, pôs-se em bicos de pés e deu-lhe um beijo na boca. O outro correspondeu. Deve ter sido o primeiro beijo pois desataram a rir como se tivessem dado um grande passo, depois abraçaram-se. Depois, prosseguiram de mão dada, o magrito quase esvoaçava de alegria. O grandão sorria também mas de forma contida, quase como quem não quer a coisa. 

Tomara que não seja apenas um namoro de verão, que seja um amor para a vida.


Postal 3

Passou por nós um homem gordo a andar de bicicleta. Ia de calções e tshirt mas, pela forma como ia sentado e pela sua forma avantajada, ia com o rabo meio de fora. Ao lado dele, correndo, preso por uma trela, um cão. 

Quando me cruzei com ele pensei que estava com ar de ir com os copos. 

Passado um bocado, já mais adiante, um estrondo, um grito. Olhámos. O homem estava no chão, a bicicleta caída, e o cão, solto, muito admirado a olhar para ele. O homem deu outro grito pelo cão, mas o cão estava imóvel., notoriamente assustado com a queda do dono. 

Parámos para vermos se era precisa ajuda. O homem, a custo, tentava levantar-se. Mais uma vez fiquei com a sensação que não estava especialmente sóbrio. O cão aproximou-se, arrastando a trela. Finalmente, o homem conseguiu montar-se outra vez na bicicleta, o rabo ainda mais de fora. E lá prosseguiu, meio aos esses. O cão ao lado, a levar o dono à trela.

______________________________________

Dias felizes

Be happy

segunda-feira, junho 16, 2025

Dia bom depois de noite de pesadelo

 


O pessoal e o pessoalzinho esteve todo cá em casa (com excepção para o menino mais crescido que está a preparar-se para um exame dentro de dias) e, portanto, dia bom e animado e feliz. 

O cão esteve um bocado reactivo e portou-se mal, mas isso são outros quinhentos. Vamos ter que fazer alguns ajustes na convivência em dias de alegria colectiva e repasto na mesa do exterior pois hoje esticou-se e não foi pouco. Cão mais do caraças, este. Bolas. 

Parece um fofo, um santinho, não é?
E muitas vezes até é.
A minha filha diz que parece que se ri.
Pois, pois... O pior é quando se estica

Adiante.

Levantei-me cansada e agitada pois, não sei porquê, voltei a ter pesadelos. Acordei assarapantada com a situação e custou-me a acalmar-me. E o pior é que umas horas antes tinha sucedido a mesma coisa. Da primeira vez, levantei-me, bebi água e voltei a adormecer... para voltar aos pesadelos.

O do meio da noite já nem me lembro o que era mas o que me fez acordar de manhã foi uma coisa muito estúpida. Tinha ido às compras, tinha que ir para casa pois tinha o jantar para fazer e vinham todos cá, e, em vez de ir de carro, fui num carrinho minúsculo, quase parecia um corta-relvas com um banco e um volante. Mas, às tantas, do nada, apareceu uma portagem com uma cancela. E aquilo não reconheceu a minha viatura e não deitava bilhete, nem aceitava o cartão nem levantava a cancela. E todos os carros atrás de mim apitavam. E eu não conseguia sair dali pois também não havia funcionários. E o carrinho deixou de funcionar, já não arrancava. Então, levantei-me e fui a empurrar aquela carripanazeca até a uns escritórios lá mais à frente. Estavam duas funcionárias na conversa e não me ligavam nenhuma. Quando insisti para que me atendessem, disseram que o sistema não estava preparado para veículos como o meu e que, por isso, não podia passar. E estavam com ar desdenhoso por eu estar com aquele carrinho. Eu explicava que era por razões ecológicas, que, só para mim, era disparate andar num carro grande. Mas elas faziam um ar de gozo, como se eu estivesse a receber o tratamento devido. E eu perguntava como é que, então, eu ia para casa. Não queriam saber, não era da responsabilidade delas. Depois disseram que iam fechar o escritório, que eu tinha que sair. E assim fizeram. Fiquei na rua, debaixo de uma chuva a cântaros. Queria ligar para o meu marido mas, com tanta chuva, não conseguia, o telemóvel não funcionava. Quando finalmente consegui, não sabia o nome daquela rua nem havia ninguém a quem perguntar. O meu marido dizia para eu olhar em volta para identificar qualquer coisa. Mas eu olhava e só via prédios todos iguais, nada que me dissesse minimamente onde estava. E o tempo a passar, eu com o carrinho carregado de comida para confeccionar, a família toda a ir lá jantar a casa e eu sem saber como sair dali.

E foi isto. Completamente absurdo. Mas uma aflição.

Não sei porque é que isto me acontece. Não fui para a cama com o estômago cheio que é o que parece que costuma provocar sonos agitados. O meu marido diz que foi a série dinamarquesa que me impressionou. Não creio. Isto é o tipo de sonho que tenho recorrentemente: ou não sei onde estacionei o carro e ando às voltas, carregada de sacos, com compras pesadíssimas, e sem ter ideia onde procurá-lo e os miúdos estão cansados, não querem andar mais, ou, nesta demanda, passo por estradas à beira de precipícios ou com buracos enormes e perigosos e, como sempre, vou com os miúdos e tenho medo que caiam ou que se percam de mim, ando sempre a contá-los para ver se estão todos. Sarilhos assim.

Cenas reais em que não sabia onde tinha deixado o carro pois não o encontrava onde julgava estar, aconteceram-me duas vezes. E não é agradável. Uma pessoa fica meio zonza, sem saber se há-de pensar que roubaram o carro ou se há-de pensar que teve uma branca estranhíssima

Ou estar a conduzir e perdida de todo sem saber onde estava, isso também já me aconteceu pelo menos umas três ou quatro vezes e também não foi nada, nadinha, agradável, especialmente em duas vezes de noite, em lugares que eu desconhecia de todo, pelo que nem conseguia dizer onde estava (numa das vezes, numa era pré gps, e noutra vez, numa era pré-waze, em que o gps do carro desconhecia aqueles lugares e não atinava (nem falava) pelo que me pôs a fazer percursos completamente erráticos. Uma pessoa tem a sensação que pode ter caído num buraco negro sem noção de como de lá há-de conseguir sair.

Mas uma coisa é a realidade e outra são os sonhos. Contudo, a verdade é que estes meus pesadelos me deixam ansiosa. Acordo debaixo dum estado de nervos como se a situação fosse real, e, a noite passada, da segunda vez, porque já eram horas de me levantar, nem tive ocasião para dormir sossegadamente em cima daquele disparate, pois isso talvez me tivesse acalmado. 

Ao levantar-me, sentindo aquele aperto de ansiedade, até me fez lembrar o que me acontecia durante aqueles anos em que o meu pai estava a definhar progressivamente e nós sempre com o credo na boca à espera que aquele equilíbrio instável se desequilibrasse de vez, ou, mais recentemente, naqueles tempos terrivelmente angustiantes que precederam a morte da minha mãe, quando me levantava a sentir-me enervada, parece que sempre com medo de receber alguma má notícia. Na volta ainda são reminiscências desses tempos. A nossa cabeça tem mecanismos autónomos, não basta a gente dizer-lhe que 'está tudo bem, não há razão para stresses', que ela não nos obedece.

Quando isto acontece, no dia seguinte, quando vou para a cama até vou com medo de ter mais uma noitada repleta destas aflições nocturnas. 

Enfim. Já é tarde, tenho que ir. Pode ser que esta noite seja tranquila, não é?

____________________________________________________

Desejo-vos uma boa semana

domingo, junho 15, 2025

Reservado

 

Neste meu período sabático em que me ocupo desocupando-me e em que aprendo a fazer livremente o que me apetece sem me sentir mal por não produzir nada, voltei a ver Netflix. Já não via há séculos pois o tempo não me chegava para nada, muito menos o tinha para ver filmes ou séries a meio do dia ou à noite.

O meu marido, em contrapartida, não tem parança. Lava muros e pavimentos à pressão, pinta muros, pintou uma mesa, corta a relva, apara sebes. Quem o viu e quem o vê. Gosta do que faz. Claro que acho que faz tudo à pressa, parece que trabalha por empreitada e que tem que despachar uma para ir agarrar outra. Mas parece que não consegue ser de outra maneira pelo que não vale a pena eu dizer o que quer que seja.

No outro dia, ouvíamos um chinfrim dos diabos vindo de um jardim vizinho. Eram os jardineiros. Disse ao meu marido: uma das boas decisões que tomámos foi livrarmo-nos deles. Ia responder mas atalhei: já sei que sobra para ti mas é um sossego e o jardim está muito melhor. As nossas máquinas são a bateria, quase silenciosas. Eles usam máquinas a gasolina que fazem uma barulheira que não se aguenta. Quando vinham cá, o melhor era pirarmo-nos. Ainda me lembro de quando estava em teletrabalho, a ter reuniões pegadas umas às outras, sem poder livrar-me, enquanto, no exterior, os jardineiros aparavam relva, cortavam sebes, sopravam folha, um festival de barulheira, e, no interior, o cão ladrava alto e bom som, atirava-se aos vidros, numa fúria descontrolada. Não havia sítio na casa onde eu pudesse estar em paz enquanto eles andassem a jardinar a toda a volta da casa.

Mas, estava eu dizendo, voltei a ver Netflix. No outro dia tinha visto as 4 Estações, uma série engraçada, depois vi La Dolce Villa, um filme fofo, e, ao acabar, resolvi dar uma espreitadela. Chamou-me a atenção a série Reservado (Secrets we keep) por ser dinamarquesa. Gosto bastante de séries e filmes escandinavos. São outra coisa. Não desfazendo -- até porque há coisas boas em todo o lado -- mas, mais que americanices, espanholadas, francesices, italianadas, etc, é com as cenas escandinavas que mais me identifico. 

E gostei muito. Não descansei enquanto não vi tudo. É um bocado inquietante, por vezes bastante, mas tudo dentro do limite do totalmente verosímil, tudo a fazer-nos pensar, tudo a obrigar-nos a olhar para as coisas sob uma perspectiva que não era a inicial. E tocante. Vamos acompanhando as lealdades que, por vezes, obrigam a deslealdade para com a verdade, a confiança e a facilidade com que se quebra, a protecção dos que se amam que, por vezes, implica a desprotecção de outros, geralmente dos mais frágeis, a cumplicidade que tenta proteger a intimidade mas que, por vezes, implica esconder um crime. Mas também ficamos na dúvida: quem praticou o crime é, na verdade, o responsável pelo crime ou é, ele próprio, uma vítima?

Mas tudo se passa sem barulho, sem ruído a poluir os diálogos ou os pensamentos, sem perseguições, sem pressa. Temos tempo para observar as expressões dos personagens, para pensar, para reagir.

Ou seja, a quem subscreva a Netflix, recomendo.

RESERVADO (Reservatet) 
| Trailer Legendado PT | Minissérie | Marie Bach Hansen | Excel Busano

Ao procurar respostas para o desaparecimento da au pair de uma vizinha, Cecilie desvenda segredos que abalam o mundo aparentemente perfeito do seu subúrbio abastado.

Elenco: Marie Bach Hansen, Excel Busano, Danica Curcic, Sara Fanta Traore, Simon Sears, Lars Ranthe, Lukas Zuperka, Frode Emil Bilde Rønsholt, Donna Levkovski, Henrik Prip



Desejo-vos um belo dia de domingo

sábado, junho 14, 2025

Conversa de vizinha


As televisões mostram ataques aéreos de Israel, do Irão. Os comentadores saltaram para os balcões para opinarem sobre a gravidade, sobre os objectivos, sobre os impactos. Mas a mim estas crises entre estes intervenientes deixam-me praticamente indiferente. Sei que é estranho mas é o que é. Não sei se é por ter memória de outros ataques, se é porque tudo isto me cansa porque me parece demasiado estúpido. Não sei. A mim parece-me que o único objectivo que interessa na estratégia dos países é o de atingir melhores índices de desenvolvimento, de justiça, de felicidade. Tudo o que seja invadir outros países ou atirar mísseis para cima de outros países parece-me uma aberração, uma coisa inexplicável.

Custa a compreender como ao longo de anos perduram guerras e guerrilhas, espionagens, provocações, ameaças, entre alguns países. Parecem aqueles vizinhos que disputam uma extrema, que se envolvem em discussões, por vezes mortais sobre a posição de um marco ou de uma vedação. Uma irracionalidade absurda, injustificável. Parece-me insultá-los, chamar-lhes burros, trogloditas. Não me apetece preocupar-me com gente assim.

Parece-me que apenas a paz, a cooperação, a livre circulação, a investigação científica orientada para a qualidade de vida e para a preservação do planeta fazem sentido.

Por isso, não vou falar no assunto.

Vou antes falar de algumas pessoas que, aos poucos, por estas bandas, temos vindo a conhecer.  

Quando eu vivia num prédio mal conhecia quem lá vivia. Também é verdade que trabalhava todo o dia. Mas cada um estava no seu apartamento. Lá calhava coincidirmos no elevador mas eram cumprimentos quase de circunstância que duravam até que o elevador parasse para que algum de nós saísse.

Aqui é diferente. As casas estão separadas por jardins e as pessoas também pouco se veem. Uns trabalham todo o dia, outros só veem a estas casas de vez em quando. Ainda assim, há pessoas com quem nos cruzamos quase diariamente e que cumprimentamos já com alguma familiaridade.

O senhor que cuida amorosamente do seu jardim é daqueles com quem mais simpatizo. Todo o seu jardim é um mimo, todo primorosamente arranjado. Não há uma folha caída, não há uma flor ou uma folha seca. E há caminhos de pedrinhas, há vasos harmoniosamente dispostos. Todas as manhãs vai comprar qualquer coisa ao minimercado, presumo que pão ou fruta ou legumes, e vai à papelaria comprar o jornal. Nunca vi a mulher mas o meu marido diz que já a viu algumas vezes, inclusivamente que no outro dia nos cruzámos com eles no supermercado. Devo passar por malcriada porque parece que não reconheço as pessoas quando as vejo fora do local onde as vejo habitualmente. E, como sou míope, para não me pôr a olhar fixamente para as pessoas para ver se conheço ou não, desabituei-me de olhar com atenção. Por isso, não vejo o que o meu marido vê.

Hoje também passou por nós uma ciclista que nos cumprimentou com uma familiaridade que só poderia ser de quem já nos conhecia. A voz não nos foi estranha. Era lusco-fusco e ela ia de capacete. pareceu-nos que entrou para uma certa casa. Se for, ficamos admirados. Naquela casa morava um casal um bocado hippie, ele mais que ela. Aliás, ele é um bocado estranho. Não cumprimenta, passa sempre na dele. Mas ela era uma simpatia. Víamo-lo muito a passear um grande cão. Falava-nos muito bem, muito simpática. Depois desapareceu. Há bem mais de um ano que não a víamos. Pensávamos que se tinha fartado de aturar aquele antipático. Pois hoje pareceu-nos que era ela. 

Também estamos sem saber o que aconteceu a um senhor de idade. Todos os dias, ele e a mulher iam de braço dado até ao café. Tenho ideia que muitas vezes almoçavam por lá e por lá ficavam durante a tarde na conversa com outras pessoas, a senhora a ler o jornal. A senhora cumprimentava-nos com muita simpatia. O marido, quando via a mulher a cumprimentar-nos, também nos cumprimentava. Tínhamos a impressão que o senhor estaria a ficar com alguma demência pois parecia cada vez mais ausente e com mais dificuldade de autonomia no andar. Nunca mais os vimos. No outro dia, vimos a senhora no jardim, só ela. Estava a regar os vasos. Como estava lá mais para o fundo, não deu para perguntar pelo marido. Mas também receamos que a resposta fosse triste.

Depois há uma casa aqui perto de nós. Cumprimentamo-nos muito amistosamente. O meu marido é que os conhece bem. Eu, se os vir fora do contexto, não os reconhecerei de certeza. Há o homem, a mulher, pelo menos uma filha e um filho. Mas a mulher é igual à filha e há o que pensamos ser a namorada do filho e o que pensamos ser o namorado da filha. E há o que pensamos serem amigos do filho e da filha. Ou seja, há sempre um entra e sai de jovens. Mas também pode ser a dona da casa e eu confundi-la com a filha. O único que é mais ou menos inequívoco é o homem.

Sobre os vizinhos de uma das casas ao lado da nossa nem sei que diga. Falo deles no livro 'Um ordenado paraíso'. 

Não conseguimos perceber a dinâmica desta casa nem conseguimos compreender estes personagens. Já aqui viveram diversas pessoas e, de cada vez, é um mistério absoluto. Grande parte do que descrevo no livro é verídico. Há uma mulher, em particular, que quase parece filha do homem, que por vezes parece a empregada dele, outras vezes parece a patroa, e não conseguimos perceber se é brasileira, se é portuguesa, pois tanto fala um brasileiro cerrado como um português de gema. Tudo o que se passa nessa casa vai para além do nosso entendimento. Acredito que um dia ainda hei de escrever outro livro sobre esta casa -- logo que consiga desvendar o verdadeiro mistério. Porque há mistério, lá disso não tenho dúvida. 

Bem. É tarde. Estão os israelitas e os iranianos às turras e estou nisto, a fofocar sobre os vizinhos. Não se faz.

________________________________

Um bom sábado

sexta-feira, junho 13, 2025

Momentos tristes

 

Hoje voltámos à clínica veterinária pois assim tinha ficado combinado há uma semana. 

Mal entra na sala de espera, vindo à trela pela mão do meu marido, o doguezinho-mais-fofo dirige-se para junto de mim, para se sentar entre as minhas pernas. Sempre assim foi. Quando tem medo, procura o meu conforto. Fica ali, meio escondido, sentindo-se protegido por mim. 

Mal me sentei, pareceu-me ouvir um choro. Só de pensar no que estará a acontecer, fico de rastos. Perguntei ao meu marido: 'Não estás a ouvir chorar?'. 

Ele confirmou: 'Porra, temos sempre esta sorte'. Contrariei: 'Sempre? Que disparate. Aqui, acho que é a segunda vez. Na outra clínica, outra vez.'. Ele estava incomodado: 'E achas pouco?'. 

Claro que não. É horrível. Uma vez que fosse já seria demais.

O choro e os soluços ouviam-se cada vez mais.

Eu ia fazendo festas ao meu fofo que ali estava encolhido, metade debaixo da cadeira, metade entre as minhas pernas. Felizmente não percebe o que se passa.

Na sala de espera, um senhor com ar infelicíssimo. Na cadeira ao lado uma mala de transporte de animais, uma mala bem grande. Mas devia ser de um gato pois não vejo que se transportem cães em coisas assim. Mas não sei. 

Passado um bocado, uma das auxiliares saiu do gabinete da médica, amparando uma senhora que tremia de choro, inconsolável, as lágrimas correndo, soluçando. Depois foi buscar-lhe um copo de água. 

Quando a senhora já estava sentada ao lado dele, o senhor disse: 'Já sabias que ia acontecer...'. Ela encolheu os ombros ao de leve, como querendo dizer que não era por saber que ia acontecer que se tornava menos doloroso. 

Ele também estava com um ar consternado. Passado um bocado, quase a medo, pediu a confirmação: 'Mas.... já aconteceu?'. Ela fez que sim com a cabeça e o choro redobrou. 

Ele tentou acalmá-la: 'Então... Vá, bebe água...'. Ela, quase sem conseguir falar, passou-lhe o copo de água: 'Não consigo beber.'

Passado um bocado, com o copo na mão, o homem voltou ao mesmo assunto: 'Mas... já está tudo...?'. A senhora tapou o rosto com as mãos e acenou que sim. Soluçava desconsoladamente. 

Só me apetecia chorar. Ou ir consolá-la. Mas sei que, em situações assim, não há consolo possível.

A assistente veio perguntar se estava melhor. Ela não disse nada. 

O homem perguntou: 'Já posso pagar?'. A assistente disse que sim. O homem mexeu na carteira da mulher para tirar o cartão. A mulher perguntou se ele sabia o código. Ele respondeu: 'Claro'.

Depois de ter pago, voltou para junto dela e perguntou-lhe: 'Vamos?'.

Ela chorou mais, soluçou. Ele hesitou. Estava comovido. Depois vi que se enchia de coragem para segurar a pega da mala transportadora. A senhora pareceu que ia quebrar de vez. 

Foi à frente, a soluçar, sem querer ver. 

Ele saiu, atrás dela, em silêncio, com a mala vazia desoladamente na mão. 

Quando saíram, olhei para o meu marido. Estava a evitar olhar e não disse nada. Eu também não. 

Depois eu disse: 'Para os veterinários isto também não deve ser fácil...'. Ele disse: 'Já estão habituados. Faz parte do trabalho deles.'. Pensei que, de facto, não têm vínculo emocional com os animais. Mas, ainda assim, não deve ser nada fácil.

Quando nos chamaram, o nosso cãomaisfofo não queria ir. O meu marido teve que puxá-lo com toda a força. Foi a deslizar, recusando-se a andar.

Felizmente está bem melhor mas ainda vai usar o colar isabelino até ao fim de semana, até estar tudo bem cicatrizado, não fosse ele pôr-se a coçar-se ou a lamber aquela zona ainda fragilizada. Mas, lá em cima da marquesa, não rosnou, não tentou morder a veterinária, esteve relativamente tranquilo.

Quando saiu de lá, veio encostar-se a mim, a dar ao rabo e, já todo aliviado, a olhar para mim. Fiz-lhe festas e elogiei-o: 'Muito lindo, portou-se muito bem, a dona está muito contente, muito, muito. Menino lindo.'. O rabinho a dar a dar, todo ele orgulhoso pelo seu comportamento.

___________________________________

Entretanto, como depois de ter falado deste momento tão triste não me apetece falar de outras coisas, limito-me a partilhar um vídeo que me pare tocante.


_____________________________

Um feliz dia de Santo António

quinta-feira, junho 12, 2025

Neste nosso tempo em que os cidadãos regrediram à subtil designação de seguidores

 

Até não há muito -- talvez até antes de haver uma concorrência desmedida entre os canais de televisão, nomeadamente os de cabo que têm que manter as emissões em contínuo e deitam a mão a tudo o que é gato-sapato, ou até ao advento das redes sociais que vieram dar a voz a tudo e a todos por mais ignorantes e estúpidos que sejam -- só era dada oportunidade de se pronunciar em público a quem reunia um mínimo de características positivas que os fizessem distinguir do comum dos mortais. Tinha que se ser gente de cultura, com alguma coisa a acrescentar, para se poder chegar a um púlpito e falar para as massas.

Agora não. Veja-se Marcelo que, num dos seus momentos de deriva populista, chamou a discursar no 10 de Junho o João Miguel Tavares. Anedótico. E tal como a Assembleia da República é agora lugar em que um bando de grunhos tem assento, também as televisões se enxameiam com gente desqualificada. Vejam-se os Big Brothers desta vida, os programas de comentário do 'social' e muitos outros. E veja-se a cambada que invade os youtubes. 

Quando os meus netos cá estão, quando se póem a ver televisão, o que eles gostam de ver são youtubers ordinários a comentarem jogos ou parvoíces, a dizerem toda a espécie de disparates. Por mais que se tente impedi-los é por isso que eles se sentem atraídos. E imagino que os tiktoks desta vida estejam também pejados de porcarias idênticas. A mim, no instagram, não me aparece disso porque o algoritmo percebe que gosto de outras coisas e não me mostra grunhices mas, fosse eu de me interessar por maledicência, populices, racismos ou outras desconformidades e, certamente, seria alimentada com milhões de coisas dessas.

Não sei como se poderá parar estas enxurradas de desinformação, de superficialidade, de ordinarice, de aberração. Faz-me lembrar aquelas praias ultra-poluídas, como algumas dos países mais pobres de África, uma desgraça sem limite, as águas carregadas de lixo, as praias inundadas de detritos de toda a espécie e feitio, as pessoas, como animais, a esgravatar no meio da porcaria. Assim a comunicação nos dias de hoje. Lixo, lixo, lixo. E meio mundo a foçar no meio dessa imundície.

As instituições democráticas acabam por soçobrar perante a força da avalancha. Veja-se o que acontece com estes grupos ultra-nacionalistas, gente com aspecto troglodita, gente que nem sabe de que fala, sem conhecimentos de história, certamente gente com alguma perturbação mental, talvez traumas de infância, talvez gente mal-amada, gente que odeia os outros, gente que parece que tem prazer em fazer mal a pessoas indefesas, gente que odeia a decência, a democracia, a cultura, a inclusão, gente incapaz de gestos de bondade, de generosidade. E, no entanto, por aí andam e, estranhamente, conseguem que haja outros tantos que os apoiem. E ouvi que os serviços secretos sabem da existência destes grupos de gente má, de gente que incita e pratica a violência, e, pelos vistos, nada faz. Ouvi que há países em que estes grupos são proibidos. E acho bem. Mas não deve ser possível controlar verdadeiramente a sua existência pois este nosso mundo dispõe de alçapões e labirintos para toda a gente que gosta de se mover no mundo das trevas. A dark web, os chats e outros corredores sombrios permitem a movimentação desta gente maldosa que, em vez de se tratar, anda a espalhar o mal.

Ouço dizer que o populismo, o racismo, a xenofobia, o ultra-nacionalismo e coisas que tais se combatem com uma informação correcta, com educação, com pedagogia. Ajudará mas é lirismo pensar que isso é suficiente. Meio mundo não frequenta a aprendizagem rigorosa, não frequenta o conhecimento, não frequenta a comunicação social séria, não frequenta o mundo dos livros, não frequenta os espaços em que as pessoas falam sobre assuntos sérios e falam com vagar. 

Por isso, por muito que se queira educar os ignorantes, a pedagogia não chega até eles: uns porque trabalham e chegam tarde e cansados a casa, outros porque se desabituaram de ponderar, outros, os mais jovens, porque a realidade das redes sociais, dos whatsapps e dos youtubes é a única que conhecem.

E, no entanto, eis que, no meio disto, surge uma mulher que, vestida de branco, com voz pausada e serena, diz palavras sábias, límpidas, radiosas, inteligentes.

No dia 10 não ouvi o discurso de Lídia Jorge mas mão amiga fez-mo chegar. E, embora esteja a ser amplamente divulgado, faço questão de tê-lo também aqui. Uma maravilha. As escolas deveriam divulgar amplamente estas palavras. As televisões deveriam passá-las de vez em quando. De alguns excertos deveriam ser feitos cartazes para espalhar por todas as terras. 

Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua história, contemplando memórias de batalhas, ações de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico.

Mas, em Portugal, é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.

Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade e, muitas vezes, é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto.

Há a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adotada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo e que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a terra.

A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses que se encontram longe mantêm com a sua cultura de origem.

O país retribui-lhes, reconhecendo, desde há muito, que as comunidades portuguesas são o corpo essencial do nosso ser identitário.

Mas as celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar, porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado, foi cidade anfitriã em 1996.

Passados 29 anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera.

O que mudou e o que justifica que, de novo, tenha sido escolhida para ser palco das celebrações foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.

É sabido que Lagos, lugar de saída para a África e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres.

A escassos 40 quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação.

A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos 90 permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico designado por Terras do Infante.

Era a altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade vencedora e de apoiar estas celebrações de importância ou de interesse cultural.

Mas há outro motivo para que, este ano, a celebração deste dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a invocar o nascimento de Camões, ocorrido há 500 anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena refletir sobre o facto, pois, tal como não sabemos como decorreu a sua infância, nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu.

Para sermos justos sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um certo maestro célebre disse de Beethoven: Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu. Nunca mais morreu.

Provam-no a forma como, passados cinco séculos, tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior.

Novos autores têm surgido, atualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões.

O jovem ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa moderna que hoje usamos.

Demonstrou como a língua portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao grande cantor do Oceano, como lhe chamou Baltasar Estaço.

Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente, profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida, afinal, não são lendas, são verdades.

O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim, não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índio redigiu na margem de um exemplar d’Os Lusíadas, presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade: Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa sem tener uma sábana com que cobrisse, despues de haver navegado 5.500 léguas per mar.

Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sábana, já depois de morto.

Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e seu mistério, isso, talvez.

Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi.

Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que, se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa hipérbole é linda.

Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões, como se fossem filos modernos, feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.

Mas se o patrono destas celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico, como é em “Sôbolos rios que vão”, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos, escritos há quase 500 anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender que os tempos duros que atravessamos têm conformidade com os tempos em que o próprio viveu.

Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo e, sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das 1.102 oitavas que compõem Os Lusíadas, 22 delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então.

Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género, o paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado da criação do Império e, em sentido oposto, conter a condenação das práticas que, passados 50 anos, impediam a manutenção desse mesmo Império.

E nesse campo pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o dia de Portugal seja o dia de Camões, expressa corajosas verdades dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.

É bom lembrar que, entre os séculos XVI e XVII, três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante 16 anos e, no entanto, os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas.

Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos e, entre eles, os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias: sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, o poder temeroso e o poder laxista.

No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da história para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral, mencionava “o vil interesse e sede imiga/Do dinheiro, que a tudo nos obriga”, e evocava, entre os vários aspetos da degradação, o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado um mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer cultura. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento, queixava-se da falta de seriedade intelectual, que resultava depois, na prática, na degradação dos atos do dia a dia.

Escreve o poeta no final do canto oitavo: “Este deprava às vezes as ciências,/ Os juízos cegando e as consciências./ Este interpreta mais que sutilmente/ Os textos; este faz e desfaz leis;/ Este causa os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis”.

Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios que viveram.

Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do globo terrestre. Ou mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a terra ao pescoço como se fosse um berloque.

Os três autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência.

Escreveu Shakespeare no ato IV do Rei Lear: “É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos”.

Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de La Mancha, que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido.

Por seu lado, Camões, no corpo d’Os Lusíadas, não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas, em resultado dela, da loucura. O desastre de Alcácer-Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do Canto X. Era a história, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela literatura.

No entanto, o fim do ciclo, que neste caso aqui interessa, não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa.

Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global. Porque nós, agora, somos outros.

Deslocamo-nos à velocidade dos meteoros e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam para o espaço.

Mas alguma coisa desse outro fim de século, que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque.

E os cidadãos são apenas público, que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas.

É contra isso e por isso que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono. Por isso mesmo, também vale a pena regressar a Lagos.

Sobre estes areais, aconteceram momentos decisivos para o mundo.

No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com o achamento de ilhas e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela terra inteira e a lenda coloca-o a meditar em Sagres.

Numa referência um tanto imprecisa, mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu: “Ali vimos a veemência do visível/ o aparecer total exposto inteiro/ e aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/ era o verdadeiro”.

Esta ideia de que, na mente do Infante, se processou uma epifania, anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa mais ou menos informal que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou, assim, para a história e para a mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo.

Mas existe uma outra perspetiva, como é sabido, e hoje em dia o discurso público que prevalece é, sem dúvida, sobre o pecado dos Descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.

É verdade que a deslocação coletiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes e o encontro entre povos obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto, cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na atualidade.

É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel, tão antigo quanto a humanidade.

O que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade.

E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso.

Lagos, precisamente, oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico.

Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorso pelo facto de que se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, como polos de abastecimento nas costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.

Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como, num dia de agosto de calor tórrido de 1444, desembarcaram aqui 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia e como foram repartidos e por quem.

Alguém que, muito prezamos, encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o próprio Infante D. Henrique.

Lagos não se furta a expor essa verdade histórica.

Lagos também mostra o local onde depois levas sucessivas iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo quando morriam sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo de Lagos os restos mortais de 158 indivíduos de etnia Banta.

Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui, no dia de hoje.

Aliás, a UNESCO criou a Rota do Escravo e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura, para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sob os princípios do amor e sob a lei dos direitos humanos.

Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno o pedido solene: Homens não se matem uns aos outros.

É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de agosto de 1444 porque o cronista do infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como a chegada e a partilha dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da “Crónica dos Feitos de Guiné” para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse.

Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse.

O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença.

É uma luta nossa, contemporânea.

Em Lagos, hoje em dia, está presente de outro modo a mensagem do cartoon de Simon Kneebone, datado de 2014, que tem corrido mundo.

A cena é nossa contemporânea. Passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre, está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes.

O tripulante da grande embarcação pergunta: de onde vêm vocês? Da lancha, apinhada, alguém responde: vimos da terra.

Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.

Consta que em pleno século XVII, 10% da população portuguesa teria origem africana.

Essa população não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido arrastados até aqui. E nos miscigenámos.

O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma.

Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou. Filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.

A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos nos dias de hoje, um pouco por toda a parte.

Agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte.

A pergunta é esta: quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem-máquina, entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um humano?

Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.

Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha a poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugadas. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial.

Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o canto I d’Os Lusíadas, Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos: “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ Onde terá segura a curta vida/ Que não se arme, e se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da terra tão pequeno”.

Nestes versos, se reconhece o conceito renascentista, o da grande solidão do ser humano e a sua luta estóica contra, centrada na confiança em si mesmo.

Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo nu de Camões só teve um lençol, o oferecido, a separá-lo da terra. Igual à sorte do seu corpo, essa sorte não difere daquela que mereceram os corpos dos escravos aqui em Lagos.

Mas entretanto, no século XIX, o direito à proteção beneficiada pelo Estado começou a emergir. Criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois das duas guerras mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos e, durante algumas décadas, foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.

O conceito de representatividade respeitável da figura do Chefe de Estado, oriundo do povo grego, princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou depois o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida.

A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende.

Um Chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, pôde dizer: adoro-vos, adoro os pouco instruídos. E os pouco instruídos aplaudiram.

Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia de ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?

Hoje, dia de Portugal, de Camões e das comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?

Nós, portugueses, não somos ricos. Somos pobres e injustos. Mas, ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças e criámos uma comunidade de países de língua portuguesa. E fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que desejam a paz.

Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas, perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.

Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia, de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.

Muito obrigada.

 

[Discurso de Lídia Jorge. Lagos, 10.Junho.2025]