quarta-feira, agosto 14, 2019

História encerrada
(?)


O que lerão mais abaixo vem no o seguimento de Manuel, o grande executivo, caíu numa armadilha 
que se seguia a Confissões. Meias confissões. Algumas omissões.
que já vinha no seguimento de Logo quando o cerco estava a apertar-se...
que veio a seguir a Manel contrata Clara que, por sua vez, 
vinha no seguimento de  Como definir o que não pode ser dito?
que já se seguia a A oradora-surpresa 
que foi, afinal, o início disto tudo


Não tardará terei que parar. Há fins de histórias que não podem ser revelados. E há histórias que não têm fim porque há nelas coisas que são eternas. Mas, enquanto não me interrompo (ou não sou interrompida), vou tentar avançar um pouco mais. No entanto, pouco mais há a contar.

Ou, pelo contrário, será que está tudo por contar?

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E foi assim que fiquei a saber que, de vez em quando, cada vez menos espaçadamente, o Manel era intimidado: quando menos esperava, como que aparecendo do nada, alguém lhe mostrava o vídeo em que lá estava ele naquela fatídica bem regada e louca noite de sexo com a correspondente de um órgão noticioso estrangeiro. Começou a ter ataques de pânico, mal dormia. Questionava-se sobre se estaria na altura de contar à mulher. Tremia de medo da reacção dela. Dela e dos filhos. E de toda a gente. Como poderia ter ele caído numa daquelas? Mil vezes lamentava o que tinha acontecido. Mil vezes se objurgava. Mas foi protelando a confissão, iludidamente na esperança de que tudo aquilo não passasse de um pesadelo. Mas não era apenas um pesadelo, era, na realidade, também um cerco.

Até que um dia, numa reunião com os representantes jurídicos de um sindicato bancário relacionado com uma operação de refinanciamento, no fim, um dos advogados pediu se poderia dar-lhe uma palavrinha. Nem lhe passou pela cabeça o que iria acontecer. Quando estavam os dois sozinhos, o advogado, por acaso de um outro país, disse-lhe (em inglês, que era a língua que adoptavam nestas reuniões): ‘Sabe o que se passa, não preciso de fazer uma introdução nem de lhe mostrar. Sabe que a prova está por todo o lado. Não se assuste. Saberemos ser discretos. A sua protecção é a nossa segurança. E não queremos nada de mais, queremos apenas que nos mantenha informado. Até à data em que tivemos acesso a todos os seus mails e documentos, sabemos tudo. Como já tem o seu computador protegido e reforçaram a segurança na vossa rede interna, já não queremos ir por aí. Daria mais trabalho e, como pode imaginar, não gostamos de correr riscos. Agora queremos manter-nos actualizados por outra via. E é simples: coloca os documentos ou informações relevantes numa pen e deixa-a onde lhe dissermos. Uma vez por semana. Mesmo se não houver nada de especial, deixa na mesma. Como sabe, teremos maneira de confirmar.’
O Manel contou-me que se sentiu a fraquejar. Apavorado. Quando alguém se sente seriamente ameaçado e sem escapatória, fica geralmente sem forças. É o que acontece, tantas vezes, em casos de assalto, ataque, violação. A vítima perde a força até para gritar, até para reagir. Paralisa. Assim estava ele. 
Nem sabia que lhe tinham apanhado o conteúdo do computador. Ficou a saber naquela altura. Sabia, sim, que tinha havido uma série de tentativas de intrusões na rede informática da empresa e que algumas equipas de experts tinham sido chamadas para reforçar os controlos. Mas não sabia que justamente o seu computador tinha sido pirateado. Nem sabia como é que alguém tinha descoberto isso (e, disse-me a Clara: 'Podes ficar descansada que. pelo menos por mim, não ficou a saber'). Tal como não tinha querido acreditar que a cilada em que tinha caído não era acto isolado de uma mulher perigosa. Tinha estado no centro de uma bem urdida operação e, até ver pela primeira vez o vídeo, nem sequer tinha desconfiado de nada.
O advogado, certamente habituado a manobras similares, não deve ter estranhado o estado de total apatia e torpor em que Manel mergulhou, tendo apenas dito o local em que ele deveria deixar a pen no dia seguinte ao fim da tarde e qual a respectiva chave de encriptação.

Confirmei: ‘E isto foi o Manel que te contou isto, certo?’

'Foi', e Clara pareceu hesitar, mas apenas por uma fracção de segundo. Depois falou com firmeza. ‘A duras custas mas foi. Acabei por conseguir que confiasse em mim. Percebe-se que é uma pessoa fechada, muito reservada, e, com tudo o que lhe estava a acontecer, sentindo-se cercado, acossado, ainda mais desconfiado ficou. Compreensível. Foi com muito esforço e muitas, muitas horas de conversa -- e de silêncios meus, para que ele não pensasse que eu queria saber alguma coisa -- que, aos poucos, foi desabafando. De início, por meias palavras, mudando de assunto, desvalorizando o que dizia, como se fossem hipóteses académicas. Só nos últimos dias, porque verdadeiramente atormentado, com vontade de confessar à mulher o que tinha acontecido e decidido a pedir a demissão, é que me contou tudo. Tudo. Tudo, tal como te estou eu agora a contar a ti.’

'E entregou quantas pens?’, perguntei.

Clara reagiu com firmeza,´Nenhuma.'

Não facilitei, 'Foi ele que te disse ou és tu que achas?'

Clara tentou disfarçar um leve tom de irritação: 'Não percebes. Ele estava decidido a enfrentar as consequências. Percebeu muito bem que a desistência do Fundo teve a ver com o que lhe estava a acontecer. Já tinham a informação toda que queriam, para quê continuarem com o disfarce da due diligence? Nunca estiveram interessados. Estavam interessados era na tecnologia, no mercado, nas operações. Quando se apanharam com tudo deixaram-se de conversas. Quantas vezes já vimos disto? E o Manel percebeu que agora estavam era contar com ele e resolveu portar-se como um homem. Foi no dia em que teve o enfarte.’

Não sou de muitas complacências: ‘Como um homem? Deixa-me rir. Estás muito benevolente, ó Clara. Então furou todas as regras de segurança, deixou que entrassem no computador dele e se servissem à vontadinha, depois, como se não bastasse, deixou-se envolver numa cilada que nem um patarata das berças… e vens dizer que resolveu portar-se como um homem…? Estás a brincar. Como um homem de calças na mão, queres tu dizer.’

Clara encostou-se à parede e, por um brevíssimo instante, fechou os olhos, como se querendo ver-se livre desta história. Mas logo voltou a si, abreviando a conclusão: ‘Deixa. esquece. Acabou. A coisa já escalou. Por isso, por agora vai parar. E o que os outros sacaram, já está sacado, nada a fazer a não ser diplomaticamente -- e, do que sei, está em curso. Mas isso já nos transcende. E ele agora tem é que se pôr bom e tomara que consiga recuperar. Aquilo não foi coisa pouca, como sabes. Coitado. Já vistes como um homem normal de repente vê a vida desgraçada?’ E respirou fundo. Cansada.

Olhei para ela sem dizer nada mas, apesar de não o demonstrar, também eu estava com alguma pena dele. Uma pessoa que se veja presa numa situação destas sente sempre medo, sente que a sua liberdade de movimentos está cerceada, é angustiante, há uma permanente sensação de que uma ameaça está a rondar por perto, de que a vida que se tinha antes acabou e de que a que se está a desenhar estará sempre presa por um fio. E se a isso se juntar o arrependimento, então a coisa fica verdadeiramente difícil de suportar. E se, em cima, para cúmulo dos cúmulos, acontecer um sério acidente de saúde, então a coisa fica, de facto, complicada. A sensação de queda num abismo. Pobre Manel.

No entanto, fosse como fosse -- e independentemente da pena que sentia dele -- estava era, sobretudo, incomodada por saber que ela não estava a dizer toda a verdade.

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Não sei se escolhi bem a Isabelle Huppert e o Clive Owen para serem a Clara e o Manel. Olho para eles e fico na dúvida.

Também chego a este ponto sem explicar porque gosto de aqui ter o Malandain Ballet Biarritz. 

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E não sei ainda se esta história vai ter continuação. Talvez tenha. Talvez não tenha.

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