Música, por favor
Osvaldinho da Cuíca - Minha vizinha
Na rua onde moram os meus pais, moram ainda muitos dos vizinhos da minha infância.
A maior parte são, pelos restantes, referidos pelos nomes. Apenas uma via o seu nome antecedido pelo seu inegável estatuto: vizinha. Era a Vizinha Beatriz. Quando eu era pequena, ela vivia com um segundo marido, um homem apagado a quem apenas me lembro de ver sorrir, não de falar, e com um filho que era uns bons anos mais velho que eu. Ao filho nunca me lembro de ver comportamentos típicos de rapaz, irrequietudes de qualquer espécie. Era, também, uma simpática sombra silenciosa. Depois empregou-se, a seguir casou-se como uma jovem mulher franzina e sorridente. Mais tarde o padrasto morreu e, tempos depois, foi a vez da mãe, a Vizinha Beatriz. Filho único, herdou a moradia e é lá que ainda vive, simpático, prestável, calado, ele e a sua mulher igual a ele.
É a antítese do que era a Vizinha Beatriz. Enquanto lá vivi e quando lá voltava de visita aos meus pais, sempre a conheci igual. Miudinha, ensimesmada. Sabia tudo o que se passava na rua. Pelo que se percebia quando falava e nisso revelava não ser muito inteligente, quando não estava no jardim, estava por dentro das janelas a ver o que se passava na rua. Quando o ângulo não o permitia, quando lhe parecia ser pitéu especial, ela não resistia e, de regador na mão ou vassoura, vinha para o jardim ver ou ouvir melhor o que se passava e, tão vidrada fixava, que até se esquecia de disfarçar, parada e atenta de regador ou vassoura no ar.
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Não é a Vizinha Beatriz, em velha, mas quase podia ser. Trata-se, de facto, de uma Fotografia de Rua
da autoria de uma mulher cujo legado muito admiro: Vivian Maier, (1926-2009)
fotógrafa amadora americana |
Ao cumprimentar a vizinhança, frequentemente arranjava maneira de meter conversa e então era um tal desfiar de críticas, censuras primeiro veladas, depois acirradas. Tudo o que os outros diziam ou faziam estava mal, via falta de educação ou quebra de etiqueta ou falta de interesse em toda a gente. Tudo o que qualquer um fizesse era merecedor de reparos azedos, sempre uma expressão de acinte, colocando-se, a ela própria, sempre num plano superior.
E, no entanto, pobre coitada, sempre amarga, sempre consumida, nunca dali saía, debruçada sobre si própria e sobre o que via apenas a partir da sua casa.
Todos falavam dela com uma certa comiseração, coitada, tão metediça, sempre azeda, armada em superior, mas superior em quê, coitada? mas, por consideração, nunca deixaram que ela se sentisse inferiorizada.
Lá se foi, convencida que era melhor que todos os outros.Foi-se mas deixou uma herdeira.
Em frente da casa da minha mãe há uma moradia onde mora desde sempre uma senhora muito simpática, sem idade, ar jovem, igual há décadas, cabelo louro platinado pelas costas, calças justas, túnicas coloridas, carro desportivo. Não teve filhos, enviuvou cedo, voltou a arranjar companheiro que, pela sua actividade, de vez em quando se ausenta. Tem, há muitos anos, também uma pequena caniche de pelo preto ondulado que passa grande parte do tempo à janela. Acho que não é caniche, se calhar é uma terrier. Eu chamo-lhe caniche porque é pequena, nervosa, peluda, sempre muito arranjadinha.
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Não é a herdeira da Vizinha Beatriz mas quase podia ser se tivesse o pêlo preto e levemente ondulado |
A caniche chama-se Lili e ladra sempre que alguém passa na rua, especialmente se não é presença assídua. Quando a minha boxer de pêlo dourado, grande e meiga, ia connosco visitar os meus pais a Lili passava-se. Ladrava num histerismo agudo. A minha ignorava-a. A outra num desmando descontrolado e a minha como se nem desse por isso. A dona assomava à janela, cumprimentava-nos, sorria como que desculpando-se dos vinagres daquela meia leca irritadiça e zangava-se com ela ‘cala-te Lili, mas para que é isso?’ mas a Lili não conseguia conter-se, era mais forte que ela.
Há agora um cão grande claro, um labrador, alegre, doce, que, quando nos vê, sai do jardim dos donos para nos vir cumprimentar efusivamente, dando ao rabo. Aventura-se pela rua, chega-se a nós, fazemos-lhe festas e ele derrete-se, falamos com ele e os seus olhos cor de mel todos se riem. Enquanto isso, aquela pequena vizinha, sombria e azeda, lá está à janela, a ladrar freneticamente, numa irritação incompreensível. Quando abre a porta, a minha mãe queixa-se, 'aquela Lili não tem remédio, sempre zangada com o mundo'.
Mas é assim, numa rua pequena, seja ela real, seja virtual, parece ter sempre que haver uma vizinha.
Felizmente, onde vivo, é coisa por cuja existência nunca dei. Ontem, ainda em casa, no cativeiro, todo o santo dia ouvi um barulho estranho vindo da rua. Ia à janela e não via nada que o justificasse. Até que, intrigada, me debrucei mesmo e vi uns andares abaixo uma rampa metálica por onde subia mobília a partir de um carro de mudanças encostado ao prédio. Não faço ideia para que andar, deve ser gente nova, não dei por que estivesse algum andar à venda. E se alguém entra, é porque alguém saíu. Pois não faço ideia de quem tenha sido, não conheço a maior parte das pessoas. Aqui, haver alguém a olhar para o que os outros dizem ou fazem é coisa que não existe. Felizmente.
No local onde trabalho é a mesma coisa. Nunca vou no elevador com as mesmas pessoas, cumprimentamo-nos sem fazer ideia de quem seja. Cruzo-me com gente que parece saída da capa de uma revista, ou executivos de primeiríssima água, ou gente excêntrica, ou gente que parece estar dentro de uma telenovela, portugueses, estrangeiros. Tudo natural. Conheço, claro, as pessoas que habitam o espaço mais circunscrito onde me encontro mas é tudo gente que tem mais que fazer do que olhar para os outros.
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E, se ainda fumasse, coisa que, em boa hora, deixei há uma meia dúzia de anos, seria assim, numa varanda
como esta, que eu estaria
- e estou certa que ninguém se daria ao trabalho de criticar
(A fotografia, como é bom de ver, é de Helmut Newton) |
Moral da história? Não há, não gosto de moralidades.
Mas, está bem, uma conclusãozinha: se bem que eu seja imune a manifestações desse género, para quem o não seja e tenha a pouca sorte de cair num meio pequeno, reconheço que é uma coisa maçadora uma pessoa estar sempre a ser observada e criticada por uma qualquer vizinha, chame-se ela Beatriz, Lili ou outra coisa qualquer.
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Saíu longo o texto, outra vez. Desculpem-me, começo a escrever e distraio-me.
Mas, enfim, se depois desta vizinhança toda ainda estiverem para isso, muito gostaria de vos ter lá no meu
Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje as minhas palavras olham-se ao espelho questionando-se sobre o tempo que passa depois de ler um poema de Frederico Lourenço. A música que, se me permitem a sugestão, deverão pôr a tocar antes, é um Choro de Heitor Villa-Lobos.
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E, claro, desejo-vos a todos uma bela quarta feira. Haja alegria e saúde!