sexta-feira, maio 30, 2025

A matemática só serve para fazer contas ou pode ser um precioso auxiliar ao serviço da política...?

 

Ao ler que um grupo de trabalho europeu vai fazer um estudo em Barcelona para perceber o impacto do turismo de massas na crise da habitação, fiquei contente. É preciso estudar os assuntos antes de se desatar a alvitrar soluções aleatórias, coxas, precárias. A crise habitacional é transversal e profunda pois onde haja turistas alojados em casas que antes era de habitação e/ou onde haja muita imigração, faltam casas para morar e, logo, disparam os preços. Ou seja, uma franja considerável dos habitantes não arranja casa para viver.

Já não é a primeira vez que aqui falo do assunto pelo que peço que me desculpem pela repetição. 

Uma das vertentes da matemática é a de resolução de problemas em que há milhares de condicionantes, milhares de variáveis e em que se pretende atingir um objectivo.

Por exemplo, imagine que, por uma vez, alguém com poder de decisão decide ser rigoroso e quer saber, município a município, quantas casas para arrendamento habitacional deve haver (escalonando a resposta por tipologias de casa e por intervalos de renda) e quantas casas para arrendamento turístico são admissíveis. O objectivo, diria eu, seria misto: por um lado que não haja pessoas sem casas para viver (admitindo que a renda não deve ultrapassar x% do rendimento líquido do agregado), por outro que haja uma oferta turística razoável (ie, não excessiva) e, vendo na perspectiva dos proprietários da casa, que obtenham um rendimento justo e adequado, em linha com o que é obtido nos mercados em que o tema da habitação não é um problema. 

Dito assim, pode parecer abstracto, impossível de quantificar.

Mas, digo-vos eu, para quem saiba, é canja de galinha. Não é a primeira vez que aqui digo que há decisões que deveriam ser tomadas com base em modelos matemáticos precisos, inequívocos. 

Tomar decisões a olho, atirar bocas mortáguas para o ar ou dar palpites com base em achismos, isso a mim arrepia-me.

Precipitações como diabolizar os Airbnb são outro disparate. O turismo é óptimo para o país e, como se vê, os hotéis estão cheios pelo que, se se reduzirem os alojamentos locais, não haverá resposta suficiente por parte dos hotéis, ou seja, será dinheiro que não entra no País. Portanto, o que há é que equacionar e tomar decisões por forma a atender a todas as necessidades.

Acresce à realidade do desvio de casas do arrendamento habitacional para o turístico, a presença no País de mais de um milhão de imigrantes que precisa de casa.

Ou seja, há forçosamente um défice de casas. Ora, saber quantas, onde e de cada tipo é indispensável.

Para começar, o que há a fazer é um levantamento, por local, do número de famílias que carece de casa arrendada para viver, quantificando quantas pessoas por agregado e de que rendimento líquido dispõem.

Igualmente deve ser feito um levantamento de fogos potencialmente disponíveis que sejam do Estado (Administração Central, Local, Forças Armadas, etc).

Claro que, para além destes dois levantamentos, os mais complexos, há muito mais informação necessária -- mas nada de transcendente.

Há ainda aspectos paralelos a equacionar: não se pode pedir a um proprietário que, tendo a possibilidade de gerir um arrendamento local no qual aufere um rendimento mais interessante, abdique dele para fazer um arrendamento habitacional que está sujeito a muitos custos e a pesados impostos. 

Já aqui falei muitas vezes da pesada carga fiscal que reduz liquidez às pessoas que pagam impostos. Se os salários (ou pensões de reforma) já de si são baixos, se lhe raparmos uma grande fatia, pouco sobra. Se há uma grande camada da população que não paga IRS por auferir baixos rendimentos, a verdade é que há uma 'invisível' camada que não paga porque foge ao fisco. E foge de todas as maneiras que pode: os senhorios não passam recibo fiscal, e, todos os que podem, sejam senhorios, médicos, etc, criam empresas através das quais recebem 'ordenados' e às quais imputam toda a espécie de custos de forma a não pagarem IRC ou a pagarem pouco, ao mesmo tempo que pouco -- ou nada -- pagam de IRS.


Ora, no caso dos inquilinos, se as famílias (e aqui não me refiro apenas às pobres, muito pobres, mas às da classe média) dispuserem de mais rendimento líquido, já não ficarão com a corda na garganta ao pagarem rendas mais altas.

Ou seja, o tema da crise habitacional é um tema com alguma complexidade e que toca vários pontos a optimizar. Mas, sendo complexo, não é transcendental. Qualquer pessoa que perceba do assunto e que disponha de informação, equaciona o problema e resolve-o (e o que não faltam são ferramentas informáticas para isso), providenciando, aos decisores, informação concreta. 

Pensar que é um tema complexo e carpir em cima dele ou tomar decisões avulsas ou a olho (por exemplo, atirar para o ar a boca de que fazem falta 26.000 casas e logo a seguir vir alguém dizer que não é isso mas o dobro e logo depois vir uma dizer para pôr um tecto às rendas e vir outro dizer para usar quartéis e... por aí fora, cada um a atirar palpites para o ar e todos sem qualquer base sólida) é apenas deixar que o problema se agudize e se arraste.

Ainda não percebi que gente é que nos governa que não percebe que a matemática não se resume à aritmética banal. Saber quantos médicos, quantos enfermeiros, quantos centros de saúde e com que recursos, quantas creches, quantas escolas, quantas casas, etc, são necessárias para resolver os problemas da população é coisa que requer cálculos, que requer cabeça, que requer informação fundamentada, que requer uma correcta afectação de recursos financeiros. Os matemáticos não servem só para serem professores, servem para muito mais. Servem, por exemplo, para ajudar criaturas inteligentes a tomarem boas decisões. Claro que a decisão última deve ser sempre política mas, caraças, que se baseie em cálculos correctos, sujeitos a critérios bem explicados e bem intencionados.

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Imagens obtidas via Sora (IA)

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Dias felizes

quinta-feira, maio 29, 2025

Um frango esquecido e um biquini sem cuecas

 



Posso ter dado a ideia de que esta minha actual vidinha é um absoluto mar de rosas. Se dei, foi involuntário. É que, como em tudo na vida real (e reforço a 'vida real' porque na vida virtual tudo é possível, até a vida ser um imaculado mar de perfeições), não há bela sem senão.

E o senão é simples: quando ambos trabalhávamos, almoçávamos sempre em restaurantes. O jantar era muitas vezes leve, com alguma frequência comprado. Agora a coisa fia mais fino. 

Se calhar, se vivêssemos no centro da cidade, facilmente descíamos até à rua e, mesmo a pé, íamos até à próxima tasca ou poderíamos escolher um dia um restaurante, outro dia um de outro tipo. Morando afastados da urbe e, de vez em quando, imersos no campo mais campo que se possa imaginar, a oferta não está ao virar da esquina. Temos que nos meter no carro e ir. Depois há que estacionar. E depois, chegados ao restaurante, há que ter paciência para esperar. Ora, estamos comodistas. Não temos pachorra para o trânsito, para andar às voltas para descobrir lugar para o carro, para ficar à espera de ser atendidos. Muito menos temos pachorra para comida banal ou pior do que a que faço em casa.

Conclusão: salvo uma ou outra excepção, dia após dia temos que andar a puxar pela cabeça para saber o que se faz para o almoço, o que se faz para o jantar. Como queremos fazer uma alimentação saudável, tudo o que são frituras, refogados puxados, coisas gordas ou com molhos calóricos, estão fora dos cardápios diários. Ora, às vezes falta-me a imaginação.

Esta quarta-feira, para o almoço tinha feito um arroz de chambão com legumes. Para o jantar não sabia o que fazer. Queremos sempre coisas leves ao jantar mas estava sem pica nenhuma, incapaz de ter ideias. Como tinha que ir ao supermercado, pensei que podia comprar lá um frango assado, depois fazia um arroz e uma salada e estava feito. O meu marido achou bem.

Lá fomos. 

O meu marido ficou cá fora para aproveitar para dar a volta higiénica com o cão-fofo. 

Lá dentro, fui pondo no carrinho o que precisava: cebolas, cenouras, tomates, alface, pão, kéfir, iogurte grego natural, requeijão, chocolate preto. Trouxe também atum e salmão congelados. E mistura chinesa congelada. Resolvi também trazer, para experimentar os gelados de pistácio revestidos a chocolate pois o pessoal mostrou abertura para experimentar e, ao fim de semana, no verão, contam sempre que haja gelados no congelador. Depois, vi lá uma tshirt branca de um tecido que me pareceu interessante e a um preço baixo. Pareceu-me que estaria talvez grande demais mas, sendo branca, mais vale larguinha que justa. Trouxe. E vi um biquíni que me daria jeito pois, para aqui apanhar sol, só tenho um. E o preço também me pareceu bom. Trouxe.

Ao chegar à caixa, uma fila dos diabos, um tempo do caraças à espera. 

Quando cheguei ao carro... upssss... tinha-me esquecido do frango assado... E, com aquelas filas, impossível lá voltar.

O meu marido ficou desconcertado: 'E agora? Praticamente era esse o motivo da vinda ao supermercado... Pões-te a ver tretas e esqueces-te do fundamental.'. Respondi: 'Trouxe bife de atum... Posso fazer... ou salmão...'

Pela cara, vi que não estava muito para aí virado. Felizmente, tive uma ideia: como ele ia aproveitar a 'viagem' para ir a uma estação de serviço, pensei que talvez lá vendessem frango assado. 

E tive sorte. Mas só havia uma metade. Receei que fosse um despojo. Perguntei: 'É recente?' O rapaz olhou para mim muito admirado. Ocorreu-me que estava na dúvida se eu me estava a referir a ele próprio. Esclareci: 'Pergunto se o frango é recente...'. Mesmo assim não devo ter esclarecido bem, ou, então, não estava seguro do que responder. Disse-me com o que me pareceu fraca convicção: 'É...'

Chegados a casa, ao arrumar as compras, com um certo desconforto constatei que a embalagem do biquini afinal correspondia apenas ao soutien. Pelos vistos, vendem as peças separadas. Senti-me frustrada. É que, quando lá regressar, já não devo encontrar a parte de baixo à venda.

Mas, vejamos as coisas pelo lado positivo: com a mistura chinesa fiz um belo arrozinho e o frango afinal ainda estava quentinho e era bem saboroso.

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E, com esta conversa fiada, pela qual me penitencio, poupo-me a falar sobre os resultados dos votos dos emigrantes e sobre a confirmação de que o Chega é o 2º partido do meu País. Espero que façam a caridade de me compreender.

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Imagens obtidas via Sora (IA)

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Dias felizes

quarta-feira, maio 28, 2025

Tudo conspira, e muito, contra a inocência

 

Imagino a invejinha que quem ainda trabalha sente quando me lê a relatar o meu dolce fare niente. Espero é que seja daquela invejinha boa, inocente, não daquela que vem sob a forma de olho gordo. 

Lembro-me bem daquela ex-colega de quem toda a gente dizia que apenas se realizava através do trabalho e que um dia, uns meses depois de ter saído da empresa, apareceu lá a visitar-nos. Vinha remoçada, muito bem vestida e penteada. Quando lhe perguntámos como estava a adaptar-se à condição de 'desocupada', riu de gosto e disse: 'Penso muitas vezes que se as pessoas soubessem como não trabalhar é tão bom, ninguém queria trabalhar...'

E é mesmo. Não percebo como é que há tanta gente que faz de tudo para se manter a trabalhar até estar quase a cair da tripeça. Mas, enfim, cada um é como cada qual.

E o que eu ia dizer é que estava numa espreguiçadeira, à semi-sombra, completamente em paz comigo e com o mundo, a ler e a ouvir os passarinhos, e pensando que devia ter ali um lápis para ir assinalando algumas frases com piada. Nisto, reparei que o cãobeludo estava freneticamente a espreitar para uns vasos que estão num nível abaixo e que estão separados daquela zona por uma pequena rede. Entre a rede e os vasos costuma juntar-se farta caruma. E era para ali que ele olhava, saltava, agitado como se tivesse descoberto coisa. Tremo quando isso acontece pois antecipo que o passo seguinte seja o cometimento de um crime.

Chamei o meu marido. 

Nessa altura já ele (ele, o cão) tinha ido para essa zona rebaixada e já andava agitadamente em volta dos vasos. O meu marido pegou numa cadeira dobrada e colocou, na parte de baixo, junto aos vasos, tentando impedir que ele lá chegasse.

Em sobressalto, fui buscar a mangueira e abri a água para tentar evitar que o predador se atirasse ao que quer que fosse que ali estava. Então, do monte de caruma que ali estava, monte que mais parece um ninho, saiu um pássaro espavorido, a correr. Parecia um pássaro ainda criança, que ainda não sabia voar, mas de um porte grande, digamos que do tamanho de uma palma de mão aberta. Desatei a chamar o meu marido para impedir que houvesse um desastre e, ao mesmo tempo, a dar mangueiradas de água para afastar o cãomaluco. 

O aflito passarito foi a correr, ladeira abaixo, indo encostar-se a um canto do portão da garagem. 

O meu marido foi então com uma pá para tentar que ele se pusesse lá em cima para o pôr a salvo. Mas foi o bom e o bonito pois, apesar de estar a levar mangueiradas de água, o cão queria, à viva força, ir atirar-se ao frágil serzinho. E o meu marido gritava com ele para ele se ir embora. Só que, com tal reboliço, o passarito abalou a correr ladeira acima, atravessou o jardim e foi refugiar-se junto à sebe. Só que o cão foi mais rápido que o meu marido e que eu com a mangueira. Em menos de um segundo saltou, implacável. 

Quando o meu marido lá chegou, já o passarinho estava deitado de lado, sem se mexer. O meu marido deu um grito ao cão e eu apontei-lhe a mangueira. Mas, aí, ele deve ter percebido que tinha feito um mal irreparável pois afastou-se e ficou como se paralisado, sentado, a olhar para o pobre defunto. 

O meu marido foi resgatar a vítima. O cão-marado afastou-se, pesaroso.

Fiquei atordoada com tudo aquilo. E francamente arreliada por não termos conseguido evitar tão infeliz desfecho. 

Mas a vida na natureza tem destas coisas. 

Depois fui apanhar nêsperas e, como sempre, foram quase tantas as que comi, in loco, como as que coloquei na taça. É congénito: não desfazendo... mas estou mais para Rubens do que para Giacometti.

E agora estou aqui sossegadamente a ganhar coragem para ir à procura de algumas frases de que gostei.

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E, depois de ter feito uma rápida pesca à linha, aqui estão algumas frases transcritas do gostoso 'Uma última pergunta - Entrevistas com Mário Cesariny'

- Tudo conspira, e muito, contra a inocência, contra a linguagem verdadeira.

- O que eu sinto é que a partir dos 50, por exemplo, uma pessoa sabe demais, não era preciso saber tanto. E muito do que se aprende é triste.

Como define a poesia?  - A técnica mais proibida da mágica mais procurada 

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Imagens geradas pelo Sora (IA)

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Dias felizes

terça-feira, maio 27, 2025

Uma dor humanamente insuportável

 

Não sei nem quero saber nem sei se alguém sabe: a dor de perder um filho é igual à dor de perder nove filhos? Se calhar, a dor de perder um filho é tão ilimitada que não se distingue da dor de perder nove filhos. Se calhar há sempre um desespero, uma aflição, uma sensação de impotência, de injustiça, uma dor que esmaga e que é tudo tão infinito que não faz diferença ser um ou serem todos ou quase todos. Não sei. Não quero saber.

Não sei o que sente a Dr Alaa al-Najjar que diariamente saía de casa para ir cuidar de crianças e que, na sexta-feira, na sequência de mais um bombardeamento israelita, perdeu nove dos dez filhos, sendo os corpos ou o que sobrou de sete deles que chegaram ao hospital. Dois corpinhos ainda estão sob os escombros e o menino que se salvou e o marido estão mal, hospitalizados. 

Não sei como se sobrevive a uma perda destas. Não sei. Não sei como é que uma mãe a quem acontece uma desgraça destas consegue sobreviver.

E não sei como consegue Netanyahu dormir depois disto. Disto e de tudo o resto que tem feito. Não sei como tem ânimo para viver o homem responsável por tanta destruição, tanto sofrimento, tanta morte, tanta maldade.

Nem consigo dizer mais nada.


In one of the most heart wrenching moments since the start of the genocidal war on Gaza, Palestinian paediatrician Dr Alaa al Najjar received the bodies of her nine children at the hospital where she works. An Israeli occupation air strike hit her family home in the Qizan al Najjar area of Khan Younis while she was on duty at Nasser Medical Complex.

The children arrived at the hospital burned and in pieces. Her husband, Dr Hamdi al Najjar, and one of their children survived the initial blast but are in critical condition. Colleagues described how Dr al Najjar collapsed in agony as she realised the victims were her own children.

(...)

em: Palestinian doctor receives bodies of her nine children after Israeli occupation strike on Khan Younis home


segunda-feira, maio 26, 2025

Em dia de final da Taça, bolonhesa encarnada para os sportinguistas.
Isto depois de, na véspera, sandwiches de feijoada para os benfiquistas
[Receitas incluídas]

 


No sábado fiz feijoada para o almoço. Deve haver mil maneiras de a fazer mas eu faço uma versão soft. Assim: num tacho, refogo ao de leve uma mega cebola. Depois junto um repolho (será que o nome correcto é couve-lombarda?), uns dentes de sal, salsa e coentros, uma folha de louro, um pouco de água, um little bit de sal e deixo cozer. Quero que a couve fique bem cozinhada para ser bem digerida. Quando está macia, junto carne de porco e vaca picadas. Deixo cozinhar um pouco. Juntei uma rodela de chouriço de carne apenas para dar alguma graça. Juntei depois um frasco de feijão encarnado cozido, com o caldo, e deixei que cozinhasse tudo junto durante uns minutos. Ficou bem saborosa. Pelo menos, nós gostámos.

Depois, quando estava quase tudo pronto, lembrei-me que parece que costuma haver arroz a acompanhar. Fiz simples, juntando apenas um pouco de salsa e coentros e uma folha de louro. 

O pessoal tinha dito que não viriam no sábado mas, ao princípio da tarde, a ala benfiquista disse que passaria por cá daí a pouco. 

Quando os mais novos disseram que estavam com fome, à falta de um lanche previamente estruturado, servi bolinhas de Rio Maior com feijoada. Antes aqueci levemente o pão; depois coloquei umas colheradas de feijoada, que ainda estava morna, em cada bolinha. Gostaram. E eu fiquei contente por terem gostado.


Este domingo, a ala benfiquista foi assistir ao jogo no Jamor. Mas a ala sportinguista, tirando o menino mais crescido que ficou a ver o jogo com amigos, veio cá ver o futebol com o sportinguista-mor.

Fiz bolonhesa que é coisa que sempre agrada. Embora banal, como também há mil maneiras de a fazer, conto como eu faço a minha.

Numa frigideira grande, ponho azeite, muitos dentes de alho, folhas de louro, um ramo de alecrim, e quando os alhos estão alourados, junto a carne picada (do mesmo lote do lote que usei para a feijoada, isto é, carne de porco e carne de vaca que, no talho, peço para picarem e misturar) e um pouco de sal. Deixo estar sempre no máximo e vou mexendo e virando a carne para fritar, isto é, para não cozer. Depois desligo.

Antes disso, num tacho coloco azeite, duas cebolas grandes aos bocados. Depois de refogar um pouco, juntei quatro tomates chucha bem maduros, cinco cenouras grandes aos bocados, um bom ramo de salsa e um pouco de sal. Tapo e deixo cozinhar até a cenoura estar cozida. 
Depois, com a varinha mágica, trituro até ficar um molho de tomate bem macio. Não fica nada ácido pois a o doce da cenoura corta a acidez. Fica, isso sim, um shot de vitamínico.

Num tacho grande, coloco água a ferver com sal e massa fresca, agora não me lembro o nome, é daquelas fitas largas com ovo. Pouca gordura, pouco sal. Coze durante uns cinco a sete minutos. Desligo. Escorro a água. Uma parte da água, pouca, junto ao tacho do tomate. Uma parte, ainda menos, junto à carne. A água de cozer a massa engrossa os molhos, dá-lhes uma boa textura. O resto da água foi fora. Mas ainda ficou uma parte do tacho. Temperei com azeite e salpiquei com orégãos.

Volto, então, ao tacho do molho de tomate. Com a varinha mágica, trituro até ficar um molho de tomate bem macio. Não fica nada ácido pois a o doce da cenoura corta a acidez. Fica, isso sim, um shot de vitamínico.

Servimo-nos em separado: a massa, depois a carne e, por cima ou ao lado, conchas de molho de tomate. Há queijo ralado para polvilhar.


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À tarde, cá em casa, claro que os sportinguistas começaram por sofrer para, por fim, deliraram. No Jamor, claro que os benfiquistas se entusiasmaram e depois sofreram. 

Como é bom de ver, nos poucos minutos que aqui estive, como sempre não consegui concentrar-me e estava para ser penalti e eu nem isso percebi. Gosto de ver as emoções de quem vibra e consigo colocar-me no lugar deles. Mas mais do que isso só consigo mesmo quando são jogos da Selecção em campeonatos importantes, como no Europeu ou no Mundial.

O meu marido, com tudo isto, nem assimilou o que comeu. Depois de ter almoçado e jantado bem, há bocado, ao ver um anúncio às bolachas Oreo, disse que estava cheio de fome e que até bolachas oreo marchavam se as tivesse, que parece que lhe apetecia qualquer coisa doce. Ele que nunca come bolachas e que poucos doces come... Antes de ir para a cama, ouvi-o na cozinha. Deve ter ido comer qualquer coisa, não faço ideia de quê. Não há bolachas nem bolos. 

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Os painéis de azulejos não têm a ver com o texto. Têm apenas a ver com o meu gosto por azulejos.

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira

domingo, maio 25, 2025

Modo de pausa

 


Depois de ter esperneado com o resultado das eleições, ter espremido os neurónios tentando pôr em equação o ensarilhamento em que estamos metidos, depois de ter lido mil opiniões e ouvido cinquenta mil sapientes veredictos, o que tenho a dizer é o mesmo que sempre fiz em situações de berbicacho: bola para a frente porque para a frente é que é caminho.

Enquanto muitos dos meus colegas adoravam enfronhar-se em cansativos meas culpas ou em intermináveis sessões de lições aprendidas, eu sempre fui mais de me reunir rapidamente com quem tinha alguma coisa de inteligente a dizer (opiniões de burros ou de papagaios dispenso), tirar meia dúzia de conclusões, com essas conclusões e mais o que há pela frente traçar um caminho e... bora lá antes que se faça tarde.

Portanto, por mim já chega de andar a tentar a pisar e a repisar sobre o mesmo assunto.

É certo que continuo a achar que o Montenegro é um chico-esperto e que, nos 11 meses em que governou, não fez nada de jeito -- e o que pareceu melhorzinho foi a continuação do que vinha do anterior governo ou a distribuição de ma$$a, pois tinha folga (herdada) e sabia que as eleições estavam ao virar da esquina. Mas, enquanto a Spinunviva ou outras argoladas do género não o derrubarem, só espero é que faça aquilo para que foi eleito.

Quanto ao PS, sempre disse que achava que o Pedro Nuno Santos não era a pessoa certa para suceder a António Costa. O PS pela mão de Pedro Nuno Santos quase me levou a não votar no PS. Pedro Nuno Santos foi um erro de casting, como os resultados eleitorais mais do que demonstraram. 

Na altura, pareceu-me que José Luís Carneiro seria a pessoa certa. Mas, na altura, o Chega ainda gatinhava. Agora, os do Chega já andam em duas patas e já convenceram milhão e tal de pessoas que são os melhores para governar o País. Orwell cheirou-os a léguas (a eles e a todos os outros que têm feito o mesmo percurso). Não sei se, para a presente circunstância, José Luís Carneiro tem o carisma, o punch e a visão para levantar o PS e, ao mesmo tempo, para atirar o Chega ao tapete. Não estou a querer dizer que acho que não. Estou apenas a dizer o que disse, que não sei. Não o conheço suficientemente bem. Mas espero que sim. Espero bem que sim.

Face a este panorama, se eu fosse o Marcelo o que faria, antes de mais, em paralelo com as conversas oficiais com os partidos e off the record, seria chamar os directores de informação dos diferentes meios de comunicação social para os desafiar a fazerem um pacto (de regime) para que parem de andar atrás do Ventura. O Chega é o Ventura. E o Ventura é um demagogo, sem ética, sem vergonha. Mas é também um excelente comunicador. Criativo e bom comunicador. Consegue lançar ossos para a praça pública a toda a hora, mobilizando a agenda dos media. Só que os canais de televisão -- ou de rádio ou os jornais -- não são cães para irem atrás de qualquer osso, pois não? Se a Comunicação Social deixar de dar palco ao Ventura, o Chega esvazia-se. Provavelmente deveria ser a ERC a ter um papel pedagógico junto da Comunicação Social. Mas a ideia que tenho é que a ERC não risca, não serve para nada. Portanto, penso que deve ser o Marcelo (que tem muitas culpas no cartório em toda a instabilidade que atravessamos) a atravessar-se.

Identicamente, alguém deveria andar em cima das redes sociais dos partidos, em especial do Ventura e do Chega. Contas falsas devem ser denunciadas. Incitamentos ao ódio ou insultos devem ser denunciados. Há mecanismos legais para lidar com tudo. Não deve haver complacência.

Tirando isso, penso que, com toda a humildade, deve tentar validar-se se as percepções de tanta gente estão erradas ou se, pelo contrário, são legítimas. 

Dou alguns exemplos:

Como são atribuídos os subsídios? Como é que isso é auditado para verificar se não há abusos? Há gente que não faz nenhum e que vive, ao após ano, à pála de subsídios?

Há mesmo milhares e milhares de imigrantes que não trabalham e que recebem subsídios? 

Há mecanismos para acolher e integrar os imigrantes, em especial os que não falam português? 

E, pelo que se tem visto em algumas reportagens, os abusos que se têm detectado no SNS são altamente lesivos das contas públicas e, também pelo que tem visto, os processos administrativos, para além de permitirem toda a espécie de abusos, são manuais, precários e não há auditorias. Será que isto acontece generalizadamente? 

Tenho lido que em Portugal há mais médicos por habitante do que na maioria dos outros países. E, no entanto, há muitos milhares de pessoas sem médicos de família, é preciso esperar muitos meses por uma consulta banal (e sobre as de especialidade acho que ainda é pior). Parece que há sempre falta de dinheiro. E, no entanto, na volta o que há é dinheiro a mais, esbanjamento, aproveitamento, muita ausência de gestão, muito regabofe. Tenho defendido que a gestão de hospitais deve ser entregue a gestores profissionais. Não a médicos, não a gentinha dos partidos. Hospitais que gerem orçamentos de milhões têm que ser entregues a gestores competentes e profissionais. Numa altura em que a Saúde está tão mal, com Urgências fechadas, com tantos atrasos, se entregassem a gestão a profissionais não apenas se poupariam muitos milhões como os serviços melhorariam rapidamente. Se as pessoas começarem a ver 'saneamento' de gastos abusivos e melhoria no atendimento com certeza o paleio populista será esvaziado.

Quanto à habitação, também é preciso arranjar soluções urgentes: aproveitem edifícios públicos, adaptem-nos, alojem o máximo de pessoas. Rapidamente. Com assertividade. Com pouco paleio. E favoreça-se e apoie-se o ressurgimento de cooperativas de habitação. Apareçam com soluções concretas, rápidas, bem articuladas, bem acompanhadas, bem divulgadas. Esvazie-se o populismo.

Já disse e repito-me: é tempo de juntar esforços contra o populismo. E, enquanto a legislatura for avançando, o PS terá tempo para se reorganizar. Ou haverá tempo para aparecer um novo partido (caso o PS não consiga livrar-se do anquilosamento aparelhista, não consiga regenerar-se assimilando com inteligência o ar do tempo).

Mas, dito isto, agora vou continuar na mesma onda em que tenho estado nestes últimos dias: a ler, a curtir, regando, cozinhando, caminhando, estando em família, na boa. Agora nem tenho escrito. Tem-me apetecido descansar, estar em modo de pausa.

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Desejo-vos um belo dia de domingo

sábado, maio 24, 2025

Sebastião Salgado libertou-se das frágeis amarras da vida mas o o seu imenso e belo legado será eterno

 

As fotografias que fez desnecessitavam de cor. A luz moldava-se em gradações de preto e de branco. A humanidade do que ele retratava não precisava de mais pois o seu olhar que a lente intermediava transportava a vida inteira.

Todas as geografias, todas as raças, todas as paisagens ganhavam majestade quando vistas por ele. A dignidade de todos e de tudo tornava-se transcendente.

Foi ao fim do mundo, ao fundo dos poços, ao cimo das árvores, misturou-se com animais, com gente, captou a alma, o movimento, a perplexidade, o esforço, a dureza das condições de sobrevivência, o sorriso mais puro. 

Não sei se há outro fotógrafo assim.

Mas o seu legado não se cinge à fotografia. A transformação que ele e a sua mulher operaram em montes e vales antes inférteis e agora verdejantes, plenos de vida, em que a água corre, é igualmente memorável. 

Não há pessoas eternas por geniais que sejam. Somos todos pouco mais que ínfimas partículas neste universo  desconhecido. Mas algumas para sempre cintilarão como abençoados pontos de luz.

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Casal planta 2,7 milhões de árvores em uma área degradada e a transforma em uma incrível floresta

Em 1994, Sebastião Salgado, um dos mais conhecidos e premiados fotógrafos do mundo, resolveu dar um tempo do trabalho após um traumático episódio pelo qual retratava tragédias humanitárias em Ruanda, na África.

Ao retornar à fazenda da família em Aimorés/MG, percebeu que sua casa havia se transformado em um lugar desprovido de qualquer vida selvagem e só havia 0,5% de área coberta por árvores.

Naquele momento sua esposa, Lélia Wanick Salgado, o acompanhava em uma visita à propriedade, onde Sebastião passou boa parte da sua infância. A arquiteta olhou para aquela paisagem devastada e nasceu ali um projeto que traria verde e vida de volta àquelas terras.

Sebastião Salgado também enxergou essa nova paisagem e o projeto saiu do papel em 1998, quando o casal fundou o Instituto Terra. 

Desde então foram mais de 2.100 hectares de mata reflorestada pelo Instituto Terra, sendo 608,69 na Fazenda Bulcão, que se tornou uma Reserva Particular do Patrimonio Ambiental.

Somente na Fazenda Bulcão, o casal plantou mais de 2,7 milhões de árvores em uma área completamente degradada e a transformou em uma incrível floresta de Mata Atlantica.

Após mais de duas décadas de intensa dedicação, a floresta já abriga mais de 150 espécies de pássaros, quase 300 espécies de plantas, 33 espécies de mamíferos e 15 espécies de répteis e anfíbios.

O projeto também recuperou o fluxo hídrico da área, restaurou nascentes importantes para o balanceamento natural do espaço, além de ter melhorado a qualidade de vida de quem habita a região, através da revitalização do ar e de áreas de convívio ao ar livre.


sexta-feira, maio 23, 2025

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

 

Dia de intervalo, de pausa, de descanso, de folga. Hoje não quero dissertar, pensar, reflectir, equacionar. Zero, por favor. 

Durante o dia quase não conversámos sobre o que se passou pois não gostamos de falar sobre percepções que não temos como fundamentar. Pelo contrário,  somos racionais, tendemos a ser analíticos, frequentemente assentamos os nossos raciocínios em números. Ora, no caso vertente, tudo o que aconteceu desafia a lógica, a razão, a objectividade. 

Ouvi, há pouco, no Eixo do Mal, o Luís Pedro Nunes dizer que em Rabo de Peixe, terra em que mais gente usufrui de subsídios de subsistência, ganhou o Chega, partido que faz campanha contra os subsídios. Ou seja, os subsidiados votaram em quer acabar-lhes com os subsídios.

E li que em pequenas aldeias em que grande parte da população emigrou, que estão meio desertificadas e sem mão de obra local e que sobrevivem graças aos imigrantes, votaram contra o Chega porque não gostam de imigrantes. Se calhar, preferiam viver em terras desertas, solitárias, sem trabalho, só com velhos à espera da morte. 

E o meu marido viu uma reportagem, numa vila piscatória, em que um homem dizia que, se não fossem os imigrantes, não arranjava gente para poder sair com os barcos e, ao mesmo tempo, que tinha votado no Chega porque estava farto dos imigrantes. Ouve-se isto e só podemos concluir que, para pessoas assim, a lógica é uma batata.

Portanto, num tal quadro de irracionalidade, mais vale pendurar os neurónios ao sol, a ver se arejam, se se vitaminam, e, ao mesmo tempo, dar tréguas ao que sobra da minha inteligência.

No entanto, deixem que junte ainda uma informação. No outro dia, a minha filha dizia que muita gente só tem contacto com a 'informação' -- e vamos pôr aspas e mais aspas a embrulhar a 'informação --, através das redes sociais. E, enquanto falávamos, disse: 'Deixa cá ver como é a presença deles no Instagram'. E lá está: branco é, a galinha o pôs. É que os números falam por si. André Ventura está em todas, gera conteúdo, dá tração ao algoritmo, e, como resultado, tem 581.000 seguidores. Os outros estão a milhas. Por exemplo, Luís Montenegro tem apenas 59.900 seguidores. Pedro Nuno Santos ainda menos, 40.500 seguidores. 

Uma investigação, creio que da CNN, que contratou uma empresa israelita especialista nestas coisas, divulgou que no X, ex-Twitter, cerca de 50 % das contas que promovem o Chega e minam com comentários negativos o PS e o PSD são falsas. Mas, entre falsidades e verdades, o que se pode concluir é que se as televisões andam permanentemente com o Ventura ao colo, nas redes sociais são as vozes dos apoiantes do Chega, sejam eles verdadeiros ou falsos, que se fazem ouvir. E quem não aparece esquece. 

Mas, retomando a minha trégua, antes que os meus fusíveis se queimem todos a tentar encontrar uma solução para isto, hoje resolvi que era holiday. Tenho esperança que, depois da borrasca, venha a bonança e é com essa esperança (uma esperança abstracta e congénita) que vou ter que me alimentar.

E, nesse comprimento de onda, viro-me para as leituras. Como sempre, navego em águas marginais. 

Só o que é diferente satisfaz a minha necessidade de alimento intelectual ou estético. O meu prazer na leitura é encontrar o que me deixe a pensar, o que me divirta ou me enterneça, o que me faça pensar: 'olha, está bem visto', o que me interrompa porque está tão bem escrito que me apeteça fazer uma vénia.

Agora são estes:

Uma última pergunta - Entrevistas com Mário Cesariny (organização, introdução e notas de Laura Mateus Fonseca com um belo prefácio de Bernardo Pinto de Almeida)

A longa estrada de areias - Pier Paolo Pasolini

Hojoki - reflexões da minha cabana - Kamo No Chomei

Tenho constatado, no Instagram (where else?), que há muitos clubes de leituras. Vejo que as pessoas se juntam para comentar o que leem. Mas o que vejo é que comentam livros banais. E, de certa forma, compreendo-as. É que estes livros que estou a ler, por exemplo, seriam diminuídos se um conjunto de pessoas se pusesse a dizer banalidades sobre eles. Mesmo que não fossem banalidades... É que são livros para a gente ler com vagar, apreciar, quando muito ler uns trechos para outra pessoa ouvir também. Mas é para a gente sentir prazer com eles. Só isso. Não é para explicar, descodificar, perceber. Não, não.   

Enfim. Que sei eu? Se calhar sou eu que sou atípica, bissexta, escalena, um número primo, uma letra de um abecedário ainda por desenhar. 

Termino transcrevendo uns versos de Pastelaria, do Cesariny

(...)

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

(...)

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mas vou ainda catrapiscar melhor para depois repiscar um pouco mais (talvez até abusivamente, não é...?), deixando agora apenas o que me dá jeito:

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

Que afinal o que importa é não ter medo

Que afinal o que importa é rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta

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 E hoje o que me apetece ouvir (e ver) é isto:

Bruce Springsteen - Dancing In the Dark


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Boa sexta-feira

quinta-feira, maio 22, 2025

Um reborn de nome André

 

Desde que, há três meses, comecei a frequentar o Instagram todo um mundo desconhecido se abriu frente aos meus olhos inocentes. Vejo e ouço coisas que me deixam perplexa. Antes das redes sociais apenas quem tinha algo de relevante a dizer era chamado a opinar em público. Era a quem detinha o poder editorial que incumbia a responsabilidade de identificar os melhores e levá-los ao púlpito maior, televisão, rádios, jornais ou revistas. Com as redes sociais, qualquer um -- qualquer zé-ninguém, qualquer maria-vai-com-as-outras, qualquer burro encartado, qualquer tarado, psicopata, narcisista, marginal, ignorante & ordinário, qualquer gentinha sem noção -- tem o púlpito à sua disposição e canal aberto para o mundo. E qualquer um, tendo a sorte de ter audiência, consegue viralizar, monetizar a sua 'mensagem', catequisar. Influenciar. É o tempo dos influencers. Dos políticos influencers. E qualquer um pode ser influencer. 

Tenho a sorte de o algoritmo ter percebido mais ou menos os meus gostos e, por isso, há o lado bom de me ser dado a conhecer o que muitos escritores, editores, pintores, escultores, galeristas, jornalistas, pessoas de bom gosto têm a dizer ou a mostrar. Mas, certamente porque me detenho a ver, também me aparecem cabeleireiros, maquilhadores, cozinheiros, nutricionistas. Muitos brasileiros.

E, no meio, por vezes, não sei a que propósito, coisas estranhas que não percebo se são paródia ou mera parvoíce e que não me fazem parar. Mas tão frequentemente me têm aparecido que agora prestei atenção. Sendo eu novata nas redes sociais (ie, no Instagram) se calhar estou a achar estranho o que, para quem anda há anos pelo facebook, instagram ou tik tok, já deve ser banal. Mas, ainda assim vou falar de um fenómeno que desconhecia e que está a deixar-me perplexa.

E estou a falar em concreto de uma coisa que dá pelo nome de reborn. Bebé reborn. Eu via mulheres com uns bebés meio estranhos ao colo. Depois, prestando atenção, percebi que eram bonecos. Mas as mulheres andam com eles ao colo como se fossem bebés de verdade, levam-nos a passear, fazem festas de anos. Inclusivamente vi uma a chorar, revoltada, porque tinha ido com o reborn ao médico e o médico tinha-se recusado a atendê-lo. E depois vi que já havia várias pessoas a fazer vídeos a discutir se sim ou não e até uma advogada a aconselhar os médicos a quem apareçam 'mães' de reborns, dizendo como devem agir.

E eu, perante tudo isto, fico como se levasse uma pancada na cabeça. Como é que é possível?!

Fui ao chatgpt confirmar o fenómeno, ver se esta maluquice existe mesmo.

Transcrevo o que escreveu:

Um bebé reborn é uma boneca feita com extremo realismo para se assemelhar a um recém-nascido ou a um bebê de poucos meses de vida. Esses bonecos são criados a partir de kits de vinil ou silicone, que são moldados, pintados e montados manualmente por artistas — conhecidos como "reborners" — que dedicam várias horas (às vezes dias) a cada peça. Os detalhes vão desde a coloração da pele com veias visíveis, até o enraizamento fio a fio dos cabelos e a aplicação de peso interno para que o boneco tenha o peso e o toque de um bebê real.

A origem desse movimento remonta à década de 1990 nos Estados Unidos, com raízes na comunidade de colecionadores de bonecas. Desde então, a prática se expandiu significativamente, ganhando popularidade em diversos países da Europa e da América Latina, especialmente no Brasil, onde há feiras, cursos e lojas especializadas nesse tipo de arte. Além do público colecionador, os bebés reborn atraem também pessoas que os utilizam por razões emocionais ou terapêuticas — como mães que perderam filhos, pessoas com depressão, ou idosos com Alzheimer, para quem a interação com esses bonecos pode trazer conforto. 

O alcance dessa tendência vai além do simples colecionismo. A popularidade dos vídeos nas redes sociais — especialmente no YouTube, TikTok e Instagram — ampliou o interesse pelo universo reborn. Muitos criadores de conteúdo compartilham rotinas de "cuidados" com seus bonecos como se fossem bebês reais, atraindo tanto críticas quanto admiração. A indústria se profissionalizou: há artistas renomados internacionalmente, bonecos que podem custar milhares de dólares e até certificações de autenticidade.

Ainda que para alguns a prática pareça excêntrica ou até inquietante, para outros ela representa uma forma legítima de expressão artística, uma válvula emocional ou mesmo uma ferramenta terapêutica. Isso mostra que os bebés reborn são mais que uma moda passageira; eles fazem parte de um fenômeno social multifacetado que une arte, afeto e mercado.

Há influenciadoras que fazem parte de uma comunidade crescente que utiliza os bebês reborn não apenas como objetos de coleção, mas como parte de experiências emocionais e artísticas. Seja por motivos terapêuticos, expressão artística ou simples afeto, elas compartilham suas jornadas com autenticidade, atraindo tanto admiração quanto debates sobre os limites dessa prática.

Ou seja, o que vi foram pessoas não colecionadoras de bonecas realistas, nem idosos ou doentes com Alzheimer, mas mulheres que, por algum distúrbio ou sei lá porquê, agem como se fossem mães de verdade dos bonecos e criam páginas nas redes sociais para partilhar as suas experiências com aqueles 'filhos', mostram o quartinho dos bebés, os brinquedos deles, os cuidados que requerem, etc.

Em condições normais, eu diria que uma mulher que trata um boneco como se fosse um filho de verdade e se aliena a ponto de se esquecer que aquilo é um ser inanimado e não um ser vivo, é alguém que precisa de ser tratado. 

E, no entanto, não. Expõem-se, têm centenas de milhares de seguidores, formam uma comunidade, reivindicam, reclamam direitos.

E tudo como se fosse normal. E parece que ninguém acha isto doentio, sinistro, distópico.

Perante situações destas, eu penso: como se dialoga com pessoas assim, que acreditam no mundo paralelo em que se posicionam? Que conversa racional é possível ter com pessoas assim?

Sinceramente não sei. E isto inquieta-me.

Não quero fazer extrapolações abusivas mas quanta gente perturbada deste ou doutro tipo --, ou pessoas que acreditam que a terra não é redonda, ou que, sendo imigrantes, acreditam que quando um político se atira aos imigrantes não está a ameaçá-los a eles mas a outros e, portanto, o apoiam, ou pessoas que pouco têm mas que o maior medo que têm é que os que ainda têm menos venham roubar-lhes alguma coisa ou que se insurgem contra os desgraçados miseráveis que recebem uns trocos para sobreviver --, constitui o público alvo dos populistas? Quantas destas pessoas, tão distantes da realidade concreta, tão facilmente manipuláveis, votam nos populistas só porque sim, só porque os populistas dizem 'a verdade' ou prometem 'abanar isto tudo'?

E como podem os políticos decentes, que falam a verdade, com base em factos, em estatística, em dados históricos, reais, fundamentados, interagir com estas pessoas? Não sei. São línguas diferentes, comprimentos de onda diferentes. 

Claro que a análise que se pode fazer à população que vota em partidos populistas não é una. Uma análise a fazer tem que ser multifactorial. Uns votam porque são fascistas e estavam à espera de quem viesse resgatar o antes do 25 de Abril, outros são levados pelo que as igrejas evangélicas, maná, do 7º dia ou outras recomendam, outros são bolsonaristas e, aqui deslocados, seguem a cópia, outros acreditavam nos amanhãs que cantam do comunismo e agora viraram para uma realidade mais actual, outros não vão além do mundo dicotómico dos bons e dos maus e votam no que diz que vai atrás dos maus, outros são ex-combatentes, ainda com feridas a sangrar da guerra e votam em quem diz que é preciso não esquecer os ex-combatentes, outros votam em quem se ajoelha, tem crucifixos no bolso e fala pondo as mãos como se estivesse em prece, outros votam porque não gostam da cor dos imigrantes que agora aparecem lá na rua, outros votam porque acreditam que aquela pessoa que assim lhes fala ao coração é sincera e se preocupa de verdade. 

E isto é complicado porque se é fácil levar pessoas assim a seguir um líder carismático que parece falar para cada um (mesmo, de facto, nada dizendo de concreto), muito difícil é levá-los a perceber que fazem mal em escolher serem 'conduzidos' por um populista que nada mais faz do que alimentar-se da sua ignorância, do seu medo, do seu distanciamento da realidade.

Pessoas assim mais depressa aceitam dar o seu voto a um político reborn, fake, do que a um político sério, decente.

E isso é um perigo. Ou, sendo eu uma optimista, um desafio. 

_________________________

Para que tenham maior visibilidade, transcrevo alguns comentários que eu e o meu marido temos recebido e que muito agradecemos. Não transcrevo um dos comentários, excelente, pois vejo que é uma transcrição e não consegui identificar ao autor original para aqui atribuir os créditos. Mas transcrevo outros. Não todos, para isto não ficar ainda mais extenso do que já está.

O SÍNDROME DE ESTOCOLMO

(Amar o agressor)

As eleições legislativas de 2025 trouxeram uma clarividência sombria: uma parte significativa da população votou contra os seus próprios interesses, com uma convicção que está paredes meias com a cegueira. Dá pena!

Mal informados e mal formados ainda acreditam no coelhinho da páscoa ou no "4 pastorinho" ou numa qualquer igreja maná ou outras, totalmente alienados politicamente.

É o velho ditado a ganhar nova vida - o povo descalço continua a votar em quem lhe roubou os sapatos.

E desta vez ainda lhe bate palmas!

.....

JAMAIS CONFUNDAM O POVO, com os inimigos do povo. Nunca caiam na tentação de ODIAR O POVO. Amilcar Cabral

A política é o meio através do qual homens sem principio dirigem homens sem memória. Voltaire

Uma nação que tem medo de deixar seu povo julgar a verdade e a falsidade em um mercado aberto é uma nação que tem medo de seu povo. – John F. Kennedy

A maioria dos males que o homem infligiu ao homem veio do facto de as pessoas se sentirem bastante certas de algo que, na verdade, era falso. BERTRAND RUSSEL

O servo ideal de um governo totalitário não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas pessoas para quem a distinção entre facto e ficção e entre verdadeiro e falso não existem mais. – Hannah Arendt

Esta mascarada enorme-com que o mundo nos aldraba-dura enquanto o povo dorme-quando ele acordar acaba . Antonio Aleixo

quarta-feira, maio 21, 2025

Ainda as eleições
-- A palavra ao meu marido

 

O grande problema dos partidos tradicionais, nomeadamente, de esquerda é que não entenderam as mudanças do eleitorado. Para uma maioria significativa dos eleitores -- e o caso dos mais jovens é paradigmático --, a esquerda e a direita não significam nada e estão-se absolutamente nas tintas para os valores aceites pela comunidade nas últimas décadas. 

O que interessa é o que aparece nas redes sociais. Não interessa se a informação que lhes é apresentada corresponde à realidade ou é mentira. Apenas procuram notícias que correspondam às suas aspirações, que sejam muito sucintas, sensacionais e facilmente compreensíveis e sobretudo disponibilizadas pelos seus gurus nas redes sociais.  Notícias que digam mal do "inimigo" seja ele qual for,  geralmente aquele que dá mais jeito ao "guru" de estimação naquele momento: imigrantes, ciganos, políticos...

O que é preciso é que existam inimigos que permitam mobilizar a massa anónima para que os gurus possam atingir os seus fins. 

A esquerda não percebeu a mudança. Não conseguiu denunciar os embustes, utilizando a nova forma de comunicar, nem apresentar objetivos agregadores que correspondam às aspirações dos que têm mais dificuldades e que lhes permitam perspectivar a célebre mudança por que tanto anseiam, seja ela o que for no imaginário de cada um deles. 

Os dirigentes do PSD, a começar pelo Montenegro, que tem uma enorme tendência para se esquecer dos aspectos éticos e que, nalguns casos parece que estão em cima de uma linha muito ténue entre o que é ou não admissível em democracia adaptaram-se melhor e transmitiram uma mensagem mais fácil de perceber para os que não estão para se chatear com essa maçada de ter que perceber os factos e tirar conclusões. 

Mas, atenção, a subida do Chega também resulta de outros factores como aqui escrevi na noite das eleições. Como é possível que os vários canais noticiosos tenham estado horas e horas a falar do Ventura, nomeadamente, horas a filmarem as traseiras do carro da frente quando ele era transportado para o hospital. O Bernardo Ferrão veio justificar-se dizendo que era notícia. Que notícia? Estavam à espera que o Ventura se atirasse da ambulância em andamento para darem em direto? 

Diversos analistas confirmam que, no período eleitoral, os media  ampliaram e deram grande relevo aos assuntos favoráveis ao Chega: segurança, imigrantes, corrupção, promovendo assim esta gentinha. Tenham um pouco de clarividência e reflictam no papel que tiveram na ascensão meteórica do Chega nos últimos anos. Se forem jornalistas sérios não ficarão certamente orgulhosos do papel que desempenharam. 

Também o Marcelo devia reflectir na forma como atuou e contribuiu para que a possibilidade de que, quando sair de Presidente, o líder de oposição possa vir a ser o Ventura já não seja uma abjecta ficção. Foi, como disse o Júdice, o pior presidente dos últimos cinquenta anos. 

Os dirigentes do PSD, que para salvarem o Montenegro e os seus lugares, não se importaram de provocar eleições e trazer os temas preferidos do Chega para o debate, sejam eles relevantes ou não, também deram para o mesmo peditório. 

A contínua intromissão do MP na política, fazendo passar a ideia de que os políticos  são, por natureza, corruptos, chegando ao extremo de fazer cair um governo com maioria absoluta, cozinharam um caldo pastoso que o Chega  aproveitou para fazer passar as ideias que mais lhe convinham. 

É verdade, o mundo mudou e o Ventura é um líder carismático que faz muito bem o seu trabalho, mas teve ajudas de monta para chegar onde está e, implícita ou explicitamente, a comunicação social, o Marcelo, o MP e o Montenegro ajudaram um bom bocado. A esquerda, por inépcia, também contribuiu.

Hoje li a notícia de que o Chega quer proibir a atuação do Nininho Vaz Maia na Azambuja e, apesar de envolver o comunicado num palavreado pretensamente tradicionalista, a verdade é que os motivos são absurdos e não é difícil perceber que, por trás, há uma motivação racista. É a tentativa de voltar à censura que acabou há cinquenta anos e é perigosamente parecido com o que se passou na década de trinta do século passado nos regimes fascistas. Parece-me tão grave que, antes que esta prática se expanda e o revanchismo e a arrogância anti-democrática comecem a fazer caminho, o Presidente devia ter uma palavra pública de repúdio. 

terça-feira, maio 20, 2025

Reflexões na ressaca

 

Isto não está fácil, confesso. Não me apetece escrever. No domingo à noite deitei-me tarde, atordoada. Os resultados das eleições viraram-me do avesso. Eram seis da manhã e ainda não dormia. Já o dia clareava e eu sem sono. Depois acordei às oito e picos e parecia-me que já não tinha sono. Forcei-me a dormir mais um pouco. Mas pouco mais. Íamos ao ginásio e depois ainda tínhamos várias coisas a fazer. Ou seja, mal dormi.

Por isso, de tarde, lá para as cinco, deitei-me ao sol, na espreguiçadeira, e adormeci. Não muito pois as nuvens passavam a vida a cobrir o sol e ficava frio. 

Há pouco, estávamos a ouvir o Paixão Martins, adormeci de novo. Micro-adormecimentos mas o suficiente para não ter conseguido acompanhar com seguimento.

Ainda não recuperei do entorpecimento, do estupor catatónico em que, interiorente, fiquei.

Do que me chega, há pessoas bem na vida, instaladas, umas que ainda guardam ressentimentos do 25 de Abril e que votam no Chega pois acham que o Ventura vai ajustar contas com esse passado. Outras, quadros em boas empresas, querem simplesmente rebentar com 'isto tudo'. Se calhar, pessoas mal sucedidas na sua vida pessoal (mas isto já sou eu a dizer). Quando pergunto a quem conhece essas pessoas o que é que, na verdade, elas acham que o Ventura pode fazer por elas. A resposta é que isso não é questão que se ponha. Não pensam tão longe, limitam-se a querer rebentar com as coisas. O que vem a seguir é tema que não lhes ocupa o pensamento. Outro caso, nos antípodas, um conhecido que não estudou muito, que começou a trabalhar, trabalho pouco qualificado, faz uns 'ganchos' ao fim de semana para compor o ordenado. Vota no Chega porque diz que os 'outros' não fazem nada por ele, acredita que o Ventura é capaz de fazer. Pergunto: mas fazer o quê, em concreto? A resposta é a mesma: o pensamento não vai até esse ponto.

No outro dia, vi na televisão uma dessas que vive certamente numa realidade pobre, suburbana, mas que deve sentir que vive numa realidade alternativa ao viver permanentemente nas redes sociais. Percebe-se que, certamente, tem como ídolos algumas conhecidas influencers. Usava várias vezes a expressão: 'quero tudo a que tenho direito'. Ao ver as influencers andarem pelos hotéis, pelos ginásios, institutos de beleza e restaurantes, sonha, certamente, atingir esse patamar. Pela conversa, acredito que vote Chega. Deve ser daquelas que acha que o Ventura diz tudo o que tem a dizer, não tem medo de nada, tentam calá-lo mas ele não se fica. Ou seja, veem-no como um líder que merece ser seguido. Claro que se lhe perguntarem o que é que o Ventura pode fazer por ela, não saberá dizer. Isso já é uma segunda derivada e o raciocínio não vai tão longe. Se lhe perguntarem também em que é que os 'poderosos e corruptos' de que o Ventura tanto fala a prejudicam, claro que também não saberá o que dizer. 

O Ventura navega nestas águas turvas da ignorância, do ressabiamento, da ilusão. Em bom rigor, de concreto ele não prometo nada. Aliás, de concreto, ele não diz nada. Limita-se a apresentar-se como um líder, o que está aqui para salvar os descontentes, o enviado de Deus, o que vai vingar os que se sentem prejudicados. As pessoas acreditam nele sem precisarem de provas, tal como acreditam em Deus sem precisarem de provas ou tal como, antes, acreditavam no PCP sem cuidarem de saber em que país é que aquele modelo comunista funcionava. As pessoas que votam no Chega, em larga maioria, fazem-no por uma questão de crendice, de fezada.

Numa reportagem de há pouco tempo, um pastor evangélico, no Seixal, um que aluga quartos num armazém sem condições, dizia que recomendava o voto no Chega. Os iguais reconhecem-se.

Porque é que nestes subúrbios há tantas igrejas maná, evangélicas, do sétimo dia e coisas assim? O que é que aqueles pastores fazem pelas pessoas? Nada. Ficam-lhes com o dinheiro e prometem coisas, umas divinas, outras estratosféricas. E as pessoas acreditam, gostam.

Não sei como se combate isto. As pessoas com ética, com sentido de responsabilidade, honestas, não recorrem à mentira, às promessas vãs, não se prestam ao papel de fazerem vídeos estúpidos, manipulados ou falsos, apelando à vingança ou  difundindo mensagens xenófobas ou racistas, nem usam a ignorância das pessoas para explorarem as suas emoções, os seus medos, os seus anseios. Ou seja, as pessoas decentes não são capazes de usar as mesmas 'armas' que os populistas. No fundo, o terreno está livre para que os do Chega, os das igrejas alternativas ou outros movimentos do género, possam ocupá-lo e aproveitar a crendice, a ingenuidade ou os ressabiamentos de quem ali se sente entre iguais.

Como se explica a uns e a outros, ao milhão e trezentos mil que votaram no Chega, que o que está a ser feito no País é isto e aquilo, que há contas e orçamentos, que, no caso dos que ganham menos, não pagam impostos e podem usufruir de tudo (hospitais, escolas, policiamento nas ruas, etc) sem pagarem nada. ou que há um défice demográfico no País e os imigrantes são necessários, úteis e deveriam ser recebidos de braços abertos? 

Como falar com pessoas que não querem ouvir coisas 'complicadas', cujo tempo de atenção se esgota com uma frase de cinco palavras, que não querem saber da ética dos líderes que adoram? Que apenas querem imaginar um eldorado em que elas serão tratadas como princesas com tudo a que têm direito e eles serão machos, viris, ricos, com grandes carrões?

Aqui, em França, na Alemanha, em Itália, nos Estados Unidos... agora ou há cem anos... como se combate o populismo? 

Acresce a isso, a circunstância presente, ubíqua, desregulada: como se combate o efeito nefasto das redes sociais?

Não sei.

Ou será que nem vale a pena matar a cabeça a tentar matar a charada? Será que é esquecer esta franja que sempre votará irracionalmente? Ou não? Será que deve é haver um pacto entre a comunicação social para não dar cobertura aos populistas? Ou quem está no Governo deve, simplesmente, focar-se em resolver problemas concretos e divulgar eficazmente a sua resolução? Ou não é bem isso e o melhor mesmo é ser-se capaz de criar uma utopia -- mas uma utopia realizável -- e deixar que as pessoas que precisam de acreditar em miragens tenham algo com que sonhar... e depois concretizar esses sonhos?

Em paralelo, enquanto se pega pelos corvos (ou de cernelha) o populismo, tentando impedir que cheguem mesmo ao topo, há que construir uma alternativa. Vi na TVI uma caracterização do eleitorado do Livre e da Iniciativa Liberal: um alinhamento entre escalões etários (gente mais jovem do que nos outros partidos) e formação académica (largamente com formação superior). Reforçou a minha convicção de que o futuro passa por aqui. Tivesse eu menos uns quantos anos e era bem capaz de fazer de tudo para explorar as convergências entre eles e tentar arranjar uma plataforma que fosse o motor de um movimento progressista, dinâmico, arejado, que atraísse mais gente, que gerasse iniciativas agregadoras, que avançasse com propostas de melhoria nos diversos sectores da sociedade, que mobilizasse mais gente para participar na construção de novas propostas de acção.

Enfim. Ando para aqui às voltas, preocupada com o mundo cada vez mais estúpido, disfuncional e distópico em que vivemos.

Vou ver se durmo melhor esta noite. E vou ver se, durante o dia, me entretenho mais a olhar e a fotografar as florzinhas que estão por todo o lado. Estão viçosas, lindas, os campos estão cobertos, felizes da vida como se a os temas da política lhes passassem totalmente ao lado.

segunda-feira, maio 19, 2025

E agora...?
Agora é tempo para o pragmatismo

 

Depois de ouvir o discurso revanchista de Ventura, copiando o estilo ameaçador de Trump, depois de ver a esperada renúncia de Pedro Nuno Santos e ao ver o discurso de Montenegro que falou como se tivesse tido a maioria absoluta, fico com a sensação que o caldinho pode estar seriamente armado. Contudo o País tem que ser posto em primeiro lugar. Há prioridades que devem ser postas em cima da mesa e, uma vez identificadas, ir em frente e agir em conformidade.

1 - O País não pode correr o risco de estarmos sempre dependentes dos ajustes de contas, das ameaças, das provocações do Chega

2 - Ou seja, tudo deve ser feito para que o Ventura não tenha a última palavra. E essa preocupação tem que estar sempre presente.

3 - O País deve ser governado com inteligência, assertividade, com visão estratégica, tendo em conta os riscos internacionais e os riscos internos. Se o governo que vai nascer não conseguir bons resultados, nas próximas eleições o Ventura conseguirá melhores resultados e, se agora foi o PS que levou uma banhada, nas próximas eleições pode ser a AD a levá-la. E aí será o País, no seu todo, que estará nas mãos do Ventura (tal como os Estados Unidos estão nas mãos do Trump). E aí, adeus minhas encomendas.

4 - Há muitas reservas em relação ao 'centrão' e há certamente muita gente do PS que jamais vai querer dar uma 'mão' à AD. Percebo tudo isso. Mas as circunstâncias são o que são. Não vale a pena ir buscar exemplos do passado para provar os danos dos abraços de urso ou os malefícios do pântano dos centrões. Tudo isso pode ser verdade. Melhor, tudo isso foi verdade. Não tenho dúvidas. Mas, neste momento, o circo está a arder e é nesse cenário que devemos situar-nos. Chegámos aqui e é aqui que devemos situar-nos. 

5 - Ou seja, face aos riscos e face às circunstâncias, neste momento penso que o mais inteligente será barrar o caminho à influência crescente do Chega. Para isso, penso que o mais racional será o PS estabelecer um entendimento com a AD no sentido de criar condições para entregar à população resultados rápidos, palpáveis, demonstráveis. Têm que ser encontradas soluções rápidas (em gestão, chamamos quick wins, pequenos ganhos que fazem ganhar a adesão das pessoas) nas áreas problemáticas que geram mais descontentamento junto da população e sobre as quais o Chega cavalga. Ainda hoje o meu filho dizia que têm que se encontrar soluções rápidas nas áreas da Saúde, da Educação, da Habitação e da Segurança Social. Concordo. Encontrem-se soluções rápidas, sem dogmas. Se o mais rápido for, aqui e ali, fazer acordos com privados, que se façam. Não se diabolizem os privados. Como se vê pelo resultado das eleições, a maioria da população já não está nem aí. Seja-se pragmático: desde que os contratos sejam regulamentados, não há drama. Encontrem-se soluções: consultas e cirurgias rápidas, mais escolas, mais creches, residências para idosos e clínicas para doentes que precisam de reabilitação ou de cuidados paliativos, casas públicas, financiamento a cooperativas de habitação, etc. Seja-se criativo. Seja-se rápido.

6 - Pode dizer-se que, se o PS der a mão ao Governo AD, isso vai desvirtuar a sua linha ideológica. Talvez, sim. E dar a mão a Montenegro, um fulano que é um chico-esperto, chateia. Pois chateia. A mim chateia-me como nem imaginam. Detesto chico-espertices, habilidades no limiar da legitimidade, manhosices. Detesto. Mas o País tem que estar acima disso. E, de resto, seja como for, o PS tem mesmo que mudar. Por isso, não tem muito a perder em 'vergar-se' para ajudar a AD a governar bem - pelo contrário, o País reconhecerá o sacrifício, se for a bem do País. 

7 - Em paralelo, vejo espaço para um grande partido e era bom que esse partido fosse o PS, pois tem uma base matricial na formação da democracia em Portugal e tem grandes democratas no seu historial. Mas, se não for o PS, paciência. Já o disse, faz falta em Portugal um partido que aponte no sentido das democracias do norte da Europa, um partido civilizado, culto, moderno, desenvolvido, inspirador, mobilizador. Se o PSD não fosse um partido que tem enraizada uma matriz de videirinhos, de patos-bravos, de chico-espertos, poderia evoluir para um partido como o que antevejo. Mas a sua matriz não o deixará evoluir. O PSD tem a 'filosofia' dos esquemas, dos interesses, dos jobs for the boys metastizada em toda a sua rede de concelhias e distritais (e, se calhar, o PS também) pelo que duvido que consiga alguma vez desempoeirar-se. Por isso, antevejo que, mais dia menos dia, teremos um novo partido a adquirir pujança e a fazer uma frente eficaz ao populismo. Mas isso leva tempo. Enquanto essa alternativa não nasce e não se impõe, a prioridade -- e volto ao tema das prioridades - tem que ser travar o Chega. Por isso, para concluir, para mim, neste momento, pondo em primeiro lugar o bem do País, acho que tudo (tudo, tudo) deve ser feito para reduzir a base de apoio do Chega -- e, para tal, é preciso entregar bons resultados à população no que é determinante, ou seja, é preciso governar bem.

8 - Há um outro aspecto: qual o papel da Comunicação Social? Vai continuar a querer competir com as redes sociais? Vão continuar a andar com o Ventura ao colo? Vão continuar a alimentar a maledicência, o desgraçadismo, a levar misérias e crimes aos programas generalistas de dia, assim alimentando a ideia da insegurança de que o Chega se alimenta? Marcelo, que é um dos grandes culpados pela situação em que estamos, faria bem em chamar os responsáveis das televisões e apelar ao sentido de responsabilidade no sentido de preservar a democracia do nosso País.

9 - Há ainda o Ministério Público que tem actuado como um contrapoder, deveria também ser chamado à responsabilidade. Andar a queimar políticos, deixando-os a serem derretidos em lume brando ao longo de anos, é do pior para a democracia. O populismo alimenta-se da ideia da corrupção generalizada, o populismo diz que 'isto é uma bandalheira'. E o MP não pode ajudar a essa festa. Marcelo deveria também ter uma acção nesse sentido.

10 - Termino, repetindo-me: penso que é tempo de todos, todos, todos -- todos os que amamos a democracia -- nos unirmos para que o País e a democracia sobrevivam à chaga populista que está a alastrar perigosamente.