terça-feira, maio 20, 2025

Reflexões na ressaca

 

Isto não está fácil, confesso. Não me apetece escrever. No domingo à noite deitei-me tarde, atordoada. Os resultados das eleições viraram-me do avesso. Eram seis da manhã e ainda não dormia. Já o dia clareava e eu sem sono. Depois acordei às oito e picos e parecia-me que já não tinha sono. Forcei-me a dormir mais um pouco. Mas pouco mais. Íamos ao ginásio e depois ainda tínhamos várias coisas a fazer. Ou seja, mal dormi.

Por isso, de tarde, lá para as cinco, deitei-me ao sol, na espreguiçadeira, e adormeci. Não muito pois as nuvens passavam a vida a cobrir o sol e ficava frio. 

Há pouco, estávamos a ouvir o Paixão Martins, adormeci de novo. Micro-adormecimentos mas o suficiente para não ter conseguido acompanhar com seguimento.

Ainda não recuperei do entorpecimento, do estupor catatónico em que, interiorente, fiquei.

Do que me chega, há pessoas bem na vida, instaladas, umas que ainda guardam ressentimentos do 25 de Abril e que votam no Chega pois acham que o Ventura vai ajustar contas com esse passado. Outras, quadros em boas empresas, querem simplesmente rebentar com 'isto tudo'. Se calhar, pessoas mal sucedidas na sua vida pessoal (mas isto já sou eu a dizer). Quando pergunto a quem conhece essas pessoas o que é que, na verdade, elas acham que o Ventura pode fazer por elas. A resposta é que isso não é questão que se ponha. Não pensam tão longe, limitam-se a querer rebentar com as coisas. O que vem a seguir é tema que não lhes ocupa o pensamento. Outro caso, nos antípodas, um conhecido que não estudou muito, que começou a trabalhar, trabalho pouco qualificado, faz uns 'ganchos' ao fim de semana para compor o ordenado. Vota no Chega porque diz que os 'outros' não fazem nada por ele, acredita que o Ventura é capaz de fazer. Pergunto: mas fazer o quê, em concreto? A resposta é a mesma: o pensamento não vai até esse ponto.

No outro dia, vi na televisão uma dessas que vive certamente numa realidade pobre, suburbana, mas que deve sentir que vive numa realidade alternativa ao viver permanentemente nas redes sociais. Percebe-se que, certamente, tem como ídolos algumas conhecidas influencers. Usava várias vezes a expressão: 'quero tudo a que tenho direito'. Ao ver as influencers andarem pelos hotéis, pelos ginásios, institutos de beleza e restaurantes, sonha, certamente, atingir esse patamar. Pela conversa, acredito que vote Chega. Deve ser daquelas que acha que o Ventura diz tudo o que tem a dizer, não tem medo de nada, tentam calá-lo mas ele não se fica. Ou seja, veem-no como um líder que merece ser seguido. Claro que se lhe perguntarem o que é que o Ventura pode fazer por ela, não saberá dizer. Isso já é uma segunda derivada e o raciocínio não vai tão longe. Se lhe perguntarem também em que é que os 'poderosos e corruptos' de que o Ventura tanto fala a prejudicam, claro que também não saberá o que dizer. 

O Ventura navega nestas águas turvas da ignorância, do ressabiamento, da ilusão. Em bom rigor, de concreto ele não prometo nada. Aliás, de concreto, ele não diz nada. Limita-se a apresentar-se como um líder, o que está aqui para salvar os descontentes, o enviado de Deus, o que vai vingar os que se sentem prejudicados. As pessoas acreditam nele sem precisarem de provas, tal como acreditam em Deus sem precisarem de provas ou tal como, antes, acreditavam no PCP sem cuidarem de saber em que país é que aquele modelo comunista funcionava. As pessoas que votam no Chega, em larga maioria, fazem-no por uma questão de crendice, de fezada.

Numa reportagem de há pouco tempo, um pastor evangélico, no Seixal, um que aluga quartos num armazém sem condições, dizia que recomendava o voto no Chega. Os iguais reconhecem-se.

Porque é que nestes subúrbios há tantas igrejas maná, evangélicas, do sétimo dia e coisas assim? O que é que aqueles pastores fazem pelas pessoas? Nada. Ficam-lhes com o dinheiro e prometem coisas, umas divinas, outras estratosféricas. E as pessoas acreditam, gostam.

Não sei como se combate isto. As pessoas com ética, com sentido de responsabilidade, honestas, não recorrem à mentira, às promessas vãs, não se prestam ao papel de fazerem vídeos estúpidos, manipulados ou falsos, apelando à vingança ou  difundindo mensagens xenófobas ou racistas, nem usam a ignorância das pessoas para explorarem as suas emoções, os seus medos, os seus anseios. Ou seja, as pessoas decentes não são capazes de usar as mesmas 'armas' que os populistas. No fundo, o terreno está livre para que os do Chega, os das igrejas alternativas ou outros movimentos do género, possam ocupá-lo e aproveitar a crendice, a ingenuidade ou os ressabiamentos de quem ali se sente entre iguais.

Como se explica a uns e a outros, ao milhão e trezentos mil que votaram no Chega, que o que está a ser feito no País é isto e aquilo, que há contas e orçamentos, que, no caso dos que ganham menos, não pagam impostos e podem usufruir de tudo (hospitais, escolas, policiamento nas ruas, etc) sem pagarem nada. ou que há um défice demográfico no País e os imigrantes são necessários, úteis e deveriam ser recebidos de braços abertos? 

Como falar com pessoas que não querem ouvir coisas 'complicadas', cujo tempo de atenção se esgota com uma frase de cinco palavras, que não querem saber da ética dos líderes que adoram? Que apenas querem imaginar um eldorado em que elas serão tratadas como princesas com tudo a que têm direito e eles serão machos, viris, ricos, com grandes carrões?

Aqui, em França, na Alemanha, em Itália, nos Estados Unidos... agora ou há cem anos... como se combate o populismo? 

Acresce a isso, a circunstância presente, ubíqua, desregulada: como se combate o efeito nefasto das redes sociais?

Não sei.

Ou será que nem vale a pena matar a cabeça a tentar matar a charada? Será que é esquecer esta franja que sempre votará irracionalmente? Ou não? Será que deve é haver um pacto entre a comunicação social para não dar cobertura aos populistas? Ou quem está no Governo deve, simplesmente, focar-se em resolver problemas concretos e divulgar eficazmente a sua resolução? Ou não é bem isso e o melhor mesmo é ser-se capaz de criar uma utopia -- mas uma utopia realizável -- e deixar que as pessoas que precisam de acreditar em miragens tenham algo com que sonhar... e depois concretizar esses sonhos?

Em paralelo, enquanto se pega pelos corvos (ou de cernelha) o populismo, tentando impedir que cheguem mesmo ao topo, há que construir uma alternativa. Vi na TVI uma caracterização do eleitorado do Livre e da Iniciativa Liberal: um alinhamento entre escalões etários (gente mais jovem do que nos outros partidos) e formação académica (largamente com formação superior). Reforçou a minha convicção de que o futuro passa por aqui. Tivesse eu menos uns quantos anos e era bem capaz de fazer de tudo para explorar as convergências entre eles e tentar arranjar uma plataforma que fosse o motor de um movimento progressista, dinâmico, arejado, que atraísse mais gente, que gerasse iniciativas agregadoras, que avançasse com propostas de melhoria nos diversos sectores da sociedade, que mobilizasse mais gente para participar na construção de novas propostas de acção.

Enfim. Ando para aqui às voltas, preocupada com o mundo cada vez mais estúpido, disfuncional e distópico em que vivemos.

Vou ver se durmo melhor esta noite. E vou ver se, durante o dia, me entretenho mais a olhar e a fotografar as florzinhas que estão por todo o lado. Estão viçosas, lindas, os campos estão cobertos, felizes da vida como se a os temas da política lhes passassem totalmente ao lado.

12 comentários:

  1. E aí vem a revisão constitucional. Lá se vai a anedota do preâmbulo a dizer que Portugal está a caminho da construção de uma sociedade socialista e lá se vão também a escola e a saúde públicas, bons negócios a não perder. Mais uma reforminha nas pensões, para as aparar, pois os velhos estão a comer o país.

    O PS? Esse vai seguir o caminho do PASOK, do SPD, do PSF. Não desaparece, fica nos 10 por cento.

    E o país fica melhor? Claro que não. O nosso mal não é de recursos, de geografia, de mais estado ou menos estado, disto ou daquilo, vem da antropologia cultural e essa é quase imutável. 500 anos a viver de pretos e impérios coloniais, incapazes de qualquer contributo científico ou artístico decente, avessos à indústria e à educação, o que é que se pode esperar?

    Isto foi um buraco, é um buraco e buraco continuará a ser. Não gosta? Dê à sola.

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    1. ---500 anos a viver de pretos e impérios coloniais, incapazes de qualquer contributo científico ou artístico decente, avessos à indústria e à educação, o que é que se pode esperar?---
      É verdade, mas a culpa não é do povo, mas sim, das cúpulas, que preferiram manter o povo tipo zombie, não fosse aparecer alguém que, sendo instruído e culto lhes tirasse o poder. Isso foi bem retratado no filme o PIANO.

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    2. Bem dito. Tal como no tempo da troika e o láparo seu capataz dizia,--- ficar desempregado é uma oportunidade de mudar.--- Os mais jovens poderão viajar, os velhos terão de optar entre comer ou medicar-se, como alguns já fazem, mas em breve serão muitos mais.

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  2. Bom dia. Há uns anos, num consultório médico, ao ler uma revista qualquer, deparei com um anuncio de uma empresa de empreendedorismo ou algo do género. A frase final que fixei desse anuncio foi, APROVEITE-SE DO CAOS. É o que pelo menos algumas dessas pessoas que mencionou, sobretudo as bem instaladas na vida, esperam fazer. Por analogia, todos ou a maioria desses, fazem lembrar chacais, á espera de roubar aos leões, os pedaços dispersos no caos provocado pelas hienas em que votaram. Os restantes, os tais ressabiados com contas para ajustar com o 25 de Abril, não passam de infelizes, cuja motivação para se masturbarem, é a miséria alheia. No fim, morrem como os outros, mas se calhar o seu pensamento final é, O MEU ONANISMO FOI MELHOR QUE O TEU. M.Linho.

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  3. Olá UJM, a igreja católica faz muita falta. Há muitas pessoas que precisam de fé para viver e sempre era melhor a fé em Cristo que a fé em homens de barro. Mas como tenho a convicção que foi termos fé que permitiu aos humanos evoluir mais que os outros animais, perdoo à espécie estes desvarios. Passado uns tempos tudo se resolve porque o que os especialistas dizem é que a razão de termos evoluído melhor é a nossa capacidade de adaptação. Um bom dia para si e para os seus.

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    1. ---a razão de termos evoluído melhor é a nossa capacidade de adaptação---
      É verdade, mas ainda não evoluímos o suficiente, para perceber que a religião, seja ela qual for, é apenas e só outro meio de controle de massas, usado por quem não tem pejo em hipocritamente usá-la para os fins que entende, como se viu no Ventura. Aparecer ajoelhado em frente a um altar, ou simular uma macacoa, para gente como ele, é apenas um meio para atingir os fins.

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    2. Tem toda a razão. Já agora também davam jeito umas fogueiras no Terreiro do Paço

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  4. Como se viu e ouviu no discurso do trafulha, o ódio está instalado, se não for com fogueiras será de outra maneira qualquer. Pode ser que alguns adeptos desse tipo de postura tenham o azar de estar do lado errado das fogueiras.

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  5. Ccastanhomaio 20, 2025

    A UJM levanta questões pertinentes na reflexão que faz apesar do estado anestésico da derrota que nos dilacera o cor ação, a alma e sei lá o ,que mais com esta derrota que nos consome.

    Todos nós depois da hecatombe tentamos procurar motivos para o sucedido, e , com mais ou menos inspiração, cada um, elege os seus que levaram á tragédia.

    Penso que o crescimento do Chega, entre outras razões, se deve não só ao descontentamento das pessoas com governos nem sempre atentos ás suas necessidades primárias,mas sobretudo, a um woquismo da esquerda com grandes responsabilidades para o PS que se deixou subjugar com essa tendência no partido, não denunciando abertamente questões étnicas e de imigração deixando entrar a raposa no galinheiro de nome Ventura que, em modo voluntarista, no mais puro oportunismo político , aproveitou esse filé mignon dado de bandeja por toda a esquerda com a grande responsabilidade para o PS!, que de modo irracional não percebeu o cansaço das populações que mais desgaste têm quer nas etnias, quer no caudal de imigrantes a cada esquina das ruas na grande maioria deles a única coisa que querem é trabalhar e viver em paz, ainda que reconheça aqui ou ali, conflito social mas nada diferente, de conflitos entre portugueses.

    Evidentemente ,que há razões tão ou mais substantivas, para o crescimento da direita para além das mencionadas, parece óbvio que sim.

    A entrega maioritária dos Alentejanos e Algarvios!, de todo o seu território ao Chega, para que este faça a sua gestão política dos seus destinos de cidadão , é para mim, alentejano dos sete costados e homem de esquerda desde que me conheci, uma das maiores afrontas que levei nas trombas dada pela minha gente que, admitindo a revolta de que esperavam mais dos governos, dando essa de barato, mas nada, nada, vezes nada Alentejanos e Algarvios que sofreram na pelo, na carne, e no espírito, as mazelas de um regime opressor fascista, que pagaram muitos deles com prisão , e agora, entrega na escuridão, a um partido que foi a votos escondendo um programa eleitoral, e a lista de homens da mala , entre outras coisas, dizia eu, lhe entrega de mão beijada candidamente, a carne fresca para alimentar o monstro.
    Desculpem, mas isto, fod....os cornos.

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  6. pobres e mal agradecidos.
    já dizia Pepe Mujica:
    o inimigo do pobre não é o rico mas sim o pobre que se pensa rico. e há-os em barda, overdose mesmo, neste piqueno Paìs.

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  7. marsupilamimaio 20, 2025

    O problema é europeu (nos EUA, a explicação é outra). O problema da Europa é a falta de investimento e de planeamento (palavrão em economês de Chicago) em actividades produtivas que vem de trás, mas que acelerou desde 2007. Entre outras coisas, temos cada vez menos petróleo (e afins) à disposição, menos KWh disponíveis, por conseguinte menos actividade transformadora e industrial, etc . Estamos a definhar. Mas se titubeamos não é apenas por constrangimentos energéticos e de matérias-primas.



    Está na altura de deixar de prestar atenção ao papaguear pseudo-científico dos economistas, em sua maioria forma(ta)dos nos EUA, país que tem recursos naturais em barda e todo o interesse em que abdiquemos da nossa maior valia (europeia, entenda-se) que é a capacidade de planear e de projectar no longo prazo. E de ser mais eficientes do ponto de vista tecnológico. A nossa indústria automóvel e outra bateu a americana nos anos 60 e 70. (Grandes projectos: Inventámos o TGV, criámos a Airbus, criámos a fileira nuclear, tínhamos os melhores sistemas de saúde do mundo. O que fizémos nos últimos vinte anos? Por que razão nos tornámos incapazes de criar projectos industriais que eram a nossa força até há 20-30 anos, porquê? Em nome da livre concorrência, para não distorcer o mercado!… Amén! Francamente, é possível ser-se mais otário? )



    Ou somos mais espertos e encontramos estratégias económicas (políticas, científicas) mais adequadas aos nossos problemas específicos, aos nossos constrangimentos, que são severos mas não são invalidantes, ou perderemos por goleada.

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  8. Fica claro, da leitura de todas as opiniões, que não há uma razão para o que aconteceu: há várias. Se dividirmos o eleitorado Chega em fatias, cada fatia terá a sua motivação. E depois há os canais influenciadores (a televisão, as redes sociais, as igrejas que por aí proliferam, etc).
    Pode também ser que tenhamos entrado no ponto em que a evolução da espécie começa a andar em marcha-atrás, a emburrecer à força toda.
    Seja o que for... não é tranquilizador...

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