sexta-feira, maio 23, 2025

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

 

Dia de intervalo, de pausa, de descanso, de folga. Hoje não quero dissertar, pensar, reflectir, equacionar. Zero, por favor. 

Durante o dia quase não conversámos sobre o que se passou pois não gostamos de falar sobre percepções que não temos como fundamentar. Pelo contrário,  somos racionais, tendemos a ser analíticos, frequentemente assentamos os nossos raciocínios em números. Ora, no caso vertente, tudo o que aconteceu desafia a lógica, a razão, a objectividade. 

Ouvi, há pouco, no Eixo do Mal, o Luís Pedro Nunes dizer que em Rabo de Peixe, terra em que mais gente usufrui de subsídios de subsistência, ganhou o Chega, partido que faz campanha contra os subsídios. Ou seja, os subsidiados votaram em quer acabar-lhes com os subsídios.

E li que em pequenas aldeias em que grande parte da população emigrou, que estão meio desertificadas e sem mão de obra local e que sobrevivem graças aos imigrantes, votaram contra o Chega porque não gostam de imigrantes. Se calhar, preferiam viver em terras desertas, solitárias, sem trabalho, só com velhos à espera da morte. 

E o meu marido viu uma reportagem, numa vila piscatória, em que um homem dizia que, se não fossem os imigrantes, não arranjava gente para poder sair com os barcos e, ao mesmo tempo, que tinha votado no Chega porque estava farto dos imigrantes. Ouve-se isto e só podemos concluir que, para pessoas assim, a lógica é uma batata.

Portanto, num tal quadro de irracionalidade, mais vale pendurar os neurónios ao sol, a ver se arejam, se se vitaminam, e, ao mesmo tempo, dar tréguas ao que sobra da minha inteligência.

No entanto, deixem que junte ainda uma informação. No outro dia, a minha filha dizia que muita gente só tem contacto com a 'informação' -- e vamos pôr aspas e mais aspas a embrulhar a 'informação --, através das redes sociais. E, enquanto falávamos, disse: 'Deixa cá ver como é a presença deles no Instagram'. E lá está: branco é, a galinha o pôs. É que os números falam por si. André Ventura está em todas, gera conteúdo, dá tração ao algoritmo, e, como resultado, tem 581.000 seguidores. Os outros estão a milhas. Por exemplo, Luís Montenegro tem apenas 59.900 seguidores. Pedro Nuno Santos ainda menos, 40.500 seguidores. 

Uma investigação, creio que da CNN, que contratou uma empresa israelita especialista nestas coisas, divulgou que no X, ex-Twitter, cerca de 50 % das contas que promovem o Chega e minam com comentários negativos o PS e o PSD são falsas. Mas, entre falsidades e verdades, o que se pode concluir é que se as televisões andam permanentemente com o Ventura ao colo, nas redes sociais são as vozes dos apoiantes do Chega, sejam eles verdadeiros ou falsos, que se fazem ouvir. E quem não aparece esquece. 

Mas, retomando a minha trégua, antes que os meus fusíveis se queimem todos a tentar encontrar uma solução para isto, hoje resolvi que era holiday. Tenho esperança que, depois da borrasca, venha a bonança e é com essa esperança (uma esperança abstracta e congénita) que vou ter que me alimentar.

E, nesse comprimento de onda, viro-me para as leituras. Como sempre, navego em águas marginais. 

Só o que é diferente satisfaz a minha necessidade de alimento intelectual ou estético. O meu prazer na leitura é encontrar o que me deixe a pensar, o que me divirta ou me enterneça, o que me faça pensar: 'olha, está bem visto', o que me interrompa porque está tão bem escrito que me apeteça fazer uma vénia.

Agora são estes:

Uma última pergunta - Entrevistas com Mário Cesariny (organização, introdução e notas de Laura Mateus Fonseca com um belo prefácio de Bernardo Pinto de Almeida)

A longa estrada de areias - Pier Paolo Pasolini

Hojoki - reflexões da minha cabana - Kamo No Chomei

Tenho constatado, no Instagram (where else?), que há muitos clubes de leituras. Vejo que as pessoas se juntam para comentar o que leem. Mas o que vejo é que comentam livros banais. E, de certa forma, compreendo-as. É que estes livros que estou a ler, por exemplo, seriam diminuídos se um conjunto de pessoas se pusesse a dizer banalidades sobre eles. Mesmo que não fossem banalidades... É que são livros para a gente ler com vagar, apreciar, quando muito ler uns trechos para outra pessoa ouvir também. Mas é para a gente sentir prazer com eles. Só isso. Não é para explicar, descodificar, perceber. Não, não.   

Enfim. Que sei eu? Se calhar sou eu que sou atípica, bissexta, escalena, um número primo, uma letra de um abecedário ainda por desenhar. 

Termino transcrevendo uns versos de Pastelaria, do Cesariny

(...)

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

(...)

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mas vou ainda catrapiscar melhor para depois repiscar um pouco mais (talvez até abusivamente, não é...?), deixando agora apenas o que me dá jeito:

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

Que afinal o que importa é não ter medo

Que afinal o que importa é rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta

________________________________________________ 

 E hoje o que me apetece ouvir (e ver) é isto:

Bruce Springsteen - Dancing In the Dark


_________________________________

Boa sexta-feira

11 comentários:

  1. Como escrevo em anónimo posso ser mais detalhado. Sou natural de uma aldeia alentejana, daquelas em que há 50 anos mais de 80% votaram no PCP, que ali manteve mão de ferro uns bons largos anos. Hoje o PS é o maior partido, o PSD o segundo e o Chega é o terceiro. Vá lá vá lá...


    Foram várias as dezenas de votos no Chega. Quem teria sido? Só vejo vidas simples e pobres à minha volta. Uma amiga diz-me que não abrem a boca, um familiar diz-me que até teriam feito uma festa no ano passado e que era "só malucos e drogados".

    Diria que a pobreza atiça a raiva; como há 50 anos, só que agora noutro sentido.
    A falta de perspectivas económicas e profissionais. O que há de gente nova tem qualificações básicas. Trabalham no informal.
    A falta de instrução. Seria curioso fazer uma análise estatística do aproveitamento escolar. E também não há operários especializados, ou quase. Pergunte por um estucador, ou por alguém que saiba de técnicas de construção antiga. Tente contratar alguém para fazer uma abóboda...
    E sim, o ódio ao cigano. Dou-lhe um exemplo: um dia passa uma carroça de ciganos com uns cavalos tão magros que se lhes via a forma das costelas. Comento na loja: que tristeza. Resposta: sabe lá, estão cheios de dinheiro. O rendimento mínimo é matéria de grande inveja.
    Agora vem também a imigração. Mais na capital do concelho porque ali há pouco. O que há é um bar de putas brasileiras muito apreciado e sempre com clientela.

    Resumindo: diria que é gente sem esperança.

    Quanto a André Ventura. Ele usa o populismo, é um tribuno da plebe, mas lendo o que escreveu e o que tem dito, a génese do pensamento é clara: integralismo lusitano. O populismo é instrumental.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Meu caro por favor atente a este conselho, não perca tempo com esta considerações, a proprietária deste blog é mais dada a borboletas e florinhas

      Eliminar
  2. Ouvi esta canção pela primeira vez pouco depois de Bolsonaro ter ganho as eleições.
    https://youtu.be/KDXX7m3iBzc

    Parecia o fim do mundo, mas não. Nunca é o fim do mundo. São "apenas" dias tenebrosos pela frente. A linguagem racista, xenófoba e anti-diversidade vai instalar-se de novo na sociedade como se fosse algo natural, como se o errado fosse reconhecer a dignidade de todos os seres humanos. O Parlamento vai ter grandes dificuldades para conseguir trabalhar. O tecido social vai rasgar-se mais. As pessoas vão ficar mais cínicas e desconfiadas.

    E depois, pufff, um belo dia tudo volta atrás, e recomeçamos a trabalhar para construir um país decente.

    Vamos atravessar estas trevas de mãos dadas, e vamos estar especialmente atentos para proteger os bodes expiatórios que um gang de pessoas sem carácter quer espezinhar no altar do ódio.

    .
    Se o mundo ficar pesado
    Eu vou pedir emprestado
    A palavra POESIA
    .
    Se o mundo emburrecer
    Eu vou rezar pra chover
    Palavra SABEDORIA
    .
    Se o mundo andar pra trás
    Vou escrever num cartaz
    A palavra REBELDIA
    .
    Se a gente desanimar
    Eu vou colher no pomar
    A palavra TEIMOSIA
    .
    Se acontecer afinal
    De entrar em nosso quintal
    A palavra tirania
    .
    Pegue o tambor e o ganza
    Vamos pra rua gritar
    A palavra UTOPIA


    Enviado por: Helena Araújo NO BLOG 2 DEDOS DE CONVERSA

    ResponderEliminar
  3. Não resisto em transcrever um excerto dum texto do Ricardo Araújo sobre os benefícios (ou malefícios) da imigração - grande bandeira eleitoral do pastor Ventura.
    "... culpa é dos imigrantes. São muitos e vêm de países exóticos. Embora tenham vindo porque há trabalhos que os portugueses não querem fazer, designadamente no turismo, que tem contribuído para os superavits. Mas, se é certo que a economia portuguesa precisa de imigrantes, devíamos ter optado por estrangeiros europeus, que são mais parecidos connosco. Até porque o que não falta por aí são espanhóis, franceses, italianos, alemães, ingleses, belgas, austríacos, dinamarqueses, suecos, noruegueses, finlandeses e holandeses ansiosos para virem trabalhar na nossa restauração a troco do salário mínimo...
    @okjorge

    ResponderEliminar
  4. Em resposta ao Leitor anti-ambientalista, anti-natureza, anti-beleza natural, anti-florzinhas e anti-borboletas pergunto-lhe: lá por detectar em si um certo mau feitio e uma certa tendência anti mundo natural, não concluo que V. é forçosamente destituído de inteligência. Mas, pergunto-me, estarei errada...?

    ResponderEliminar
  5. Acabem a semana com isto. Para pensar e para rir.

    https://www.paginaum.pt/2025/05/19/lisboa-nao-e-portugal

    https://www.youtube.com/shorts/rQv2Z6F4O6c

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não acrescenta nada, pois não? Nem a notícia nem o vídeo.

      Eliminar
  6. Não, a noticia é o que muita gente pensa e alguns dizem, o video é a prova de que a UE é mais um circo, mas os palhaços pobres são os povos. M. Linho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não consigo concluir isso. Vejo um deputado a denegrir a Kaja Kallas. Não sei se o que ele diz é verdade mas, de qualquer forma, não é por uma pessoa dizer mal de outra que concluo o que quer que seja. Sou sempre muito racional: para formar uma opinião preciso de provas e de ter a certeza que as provas são as correctas. Não vou pelo que qualquer um diz.

      Eliminar
  7. Ccastanhomaio 23, 2025

    Para fim de dia,

    https://youtu.be/IFNntd48II8?feature=shared

    ResponderEliminar
  8. Ccastanhomaio 23, 2025

    Para os monárquicos PS que amanhã elegem o Rei Dom José, aqui deixo a Serenade para um sono tranquilo..
    Monárquico, claro,

    https://youtu.be/0bjB-IWEYI0?feature=shared

    ResponderEliminar