Há poucos médicos, poucos enfermeiros e poucos técnicos de electromedicina no país. Quem pode pagar mais rouba-os a quem tem mais limitações.
A partir daqui, começam os problemas.
Para resolver o assunto, há que atacar a raiz do problema. Alargar o número de vagas nos estabelecimentos de ensino é uma solução de médio/longo prazo. A curto prazo, há que 'importá-los'. Imigrantes nestas especialidades deveriam ser fortemente incentivados a vir e ficar por cá.
Li a sugestão do M. J. Marmelo de que quem estuda em estabelecimentos de ensino público seja obrigado a prestar serviço no SNS durante um número mínimo de anos. Parecer-me-ia uma boa solução. Não resolveria tudo mas todas as ajudas são boas.
Já aqui falei numa outra questão. A escassez de recursos humanos nas equipas obriga a que os que estão presentes tenham que fazer horas extraordinárias. Segundo a legislação em vigor e segundo os regulamentos em vigor nos diferentes acordos de trabalho não apenas há limite ao número de horas suplementares efectuadas como, consoante o número de horas, em especial à noite e/ou ao fim de semana, se adquire direito a gozar descansos compensatórios. Só que, se as pessoas gozam esses dias a que têm direito, outros terão que fazer trabalho suplementar para colmatar as faltas. É uma bola de neve. É um círculo vicioso.
Mesmo que não existissem pessoas a menos, há férias, há baixas. Só se evitam horas extraordinárias com equipas folgadas e férias muito bem distribuídas.
Ora as equipas estão deficitárias e, com a pandemia, não houve como ter pessoal clínico em férias criteriosamente calendarizadas. Foi um toque a reunir. Todos eram poucos. Acumularam-se horas a mais, dias de férias e compensação por gozar a mais. Se agora os gozam, fecham urgências, ficam os serviços deficitários. Se não os gozam, entram em burnout.
O desastre teria, pois, que acontecer.
A única hipótese seria contratar gente para compor equipas enquanto os outros folgam. Só que não há gente disponível para isso. E, quando os há, ou são inexperientes ou ganham fortunas.
Com o SNS em exaustão (primeiro pela Covid e, depois da Covid, a apareceram todos os achaques resultantes de acompanhamento e diagnósticos tardios), muitos profissionais não aguentaram, fugiram para os privados.
Poder-se-ia pensar que há nisto também algum maquiavelismo por parte dos privados: roubam ao público para o público ir ao tapete e eles, privados, terem maior clientela. Contudo, não o creio. Quem já tem seguros de saúde ou protocolos como a ADSE já vai maioritariamente ao privado. Os privados não têm falta de clientes. Os que vão ao SNS são maioritariamente os que não têm como ir aos privados.
Mas cada vez as pessoas vivem mais anos e têm mais doenças. Além disso, ainda acontece que, quando a situação é grave, as pessoas preferem os hospitais públicos.
Aconteceu-me estar numa clínica privada e ser-me diagnosticado um enfarte agudo de miocárdio. Activaram o protocolo do INEM e perguntaram para onde queria ir. Não hesitei, quis um hospital público. Assisti por dentro à confusão das urgências, à situação limite que se vive num SO, vi as imensas limitações. Na realidade não tive um enfarte mas verificou-se uma condição que fez com que tivesse que passar a ser seguida em Cardiologia. E voltei ao privado. Mas voltei porque posso.
E, portanto, o SNS é o sistema a quem tudo se exige e que se encontra espalmado entre a falta de recursos humanos, por um lado, e falta de dinheiro, por outro.
No entanto, se houvesse gente suficiente e a possibilidade de exercer a gestão sem ser em situação de carência e crise, se calhar não seria preciso mais dinheiro.
Assim, é muito difícil. Tem solução. Tudo tem. Já o referi acima: há que injectar gente nas equipas, via imigração. Uma vez as equipas completas e com gente de reserva, pô-los a gozar as férias e as compensações em atraso. Depois organizar, repensar, reinventar. Há que pensar a longo prazo: abrir vagas nas escolas. E há que ter sangue frio e não ceder a pressões.
Portugal é ainda um país corporativista. Há coisas que são culturais, que atravessam gerações. Há que ouvir os médicos e os enfermeiros mas não ceder, por ceder, às suas múltiplas exigências, tantas vezes classistas, tantas vezes desprovidas de racionalidade. Têm razão em muitas coisas mas, pelo efectivo poder de pressão que detêm, muitas vezes exercem o que parece ser quase chantagem e não o que se exigiria, espírito de colaboração..
Ouvi há pouco na televisão que o SNS foi criado numa altura em que os problemas de saúde eram, sobretudo, agudos e com causa única e que hoje a situação é o contrário: a prevalência é de doenças crónicas e origens variadas, obrigando a tratamentos prolongados através de equipas cruzadas. Como eu, pessoas que têm que continuar a ser seguidas, se calhar para o resto da vida, há aos montes. E os hospitais e os centros de saúde não foram concebidos ou dimensionados para isso Ou seja, estamos perante uma séria questão estrutural que requer estudos e uma implementação demorada e complexa.
Face a isto, o que dizer de Marta Temido?
Do que lhe vi, só tenho a dizer muito bem. É uma pessoa resistente, ponderada, com uma imensa capacidade de trabalho. O que ela aguentou, a forma inteligente e firme como o aguentou, faz dela uma heroína. Penso que só temos a agradecer-lhe. Devemos-lhe a forma objectiva e racional, tantas vezes de improviso (porque ainda não havia ciência comprovada), como enfrentámos a pandemia, devemos-lhe a forma coesa como a sociedade soube adoptar os cuidados que se iam sabendo eficazes. Devemo-lo a ela bem como a Graça Freitas ou a Lacerda Sales que a coadjuvaram de forma leal e coerente.
Agora estamos a pagar o tremendo esforço do período da pandemia, as consequências do corporativismo das classes clínicas, as consequências do fortalecimento dos sectores dos seguros de saúde e da saúde privada e as consequências da mudança de paradigma dos cuidados de saúde necessários -- mas, ingratos como somos, não faltará quem se esqueça disso e se apresse a crucificá-la.
Eu não me esqueço. Vi-a à beira da exaustão, vi-a à beira das lágrimas, via-a a envelhecer, a pele a ir ficando mais manchada e mais macilenta. E sempre corajosa, sempre presente. Do que ela abdicou a nível familiar nem consigo imaginar. Nunca a ouvimos queixar-se. E, por tudo isto e por tudo o que acho que lhe devemos, aqui fica o meu reconhecimento pela sua extraordinária dedicação e competência como Ministra da Saúde. Muito obrigada, Marta Temido.
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* Peço desculpa se o título deste post parece formal ou pomposo pois sei que o que escrevi é incompleto, superficial, coisa de leiga. Simplesmente, não me ocorreu outro.
Pensei em Na despedida de Marta Temido ou Ficamos de melhor saúde depois da saída de Marta Temido? ou, ainda, Sai Marta, alegram-se as comadres. Mas, não sei porquê, apeteceu-me o comedimento.
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Desejo-vos uma boa quarta-feira
Saúde. Justiça. Generosidade. Paz.