sexta-feira, agosto 26, 2022

Afinal, se calhar, um assunto ainda em aberto

 


Andava há muitos anos a pensar que tinha que encontrar um sítio. Parecia que não poderia começar sem antes ter um sítio para isso. Quando pensava, imaginava uma mesa grande. Uma flor num canto. A mesa num lugar onde eu pudesse estar isolada mas, ao mesmo tempo, não sozinha.

Era como se sem antes ter esse lugar e essa mesa nada pudesse acontecer.

Quando viemos ver esta casa, pensei que talvez esse lugar pudesse ser a antecâmara do que viria a ser o meu quarto. Agora está assim: entra-se e está esse espaço que tem uma janela que dá para o jardim. Na parede em frente da parede em que está essa janela há uma lareira e, por cima, da lareira há uma estante. A meio está a secretária. É uma secretária grande, de nogueira com tampo em pele verde embutida na madeira. Como era usada pelos meus filhos quando eram miúdos, tinha receio que riscassem ou cortassem a pele e, então, mandei fazer um tampo de vidro. Nem se dá por ele mas protege. De um lado da secretária está uma estante alta, escura, de portas de vidro. Tem agora livros de história. Naturalmente nunca abri um único. São do meu marido que, espantosamente, os acha muito interessantes. Do outro lado está a escrivaninha com alçado que nos acompanha desde sempre. É também de nogueira, folheada a raiz de nogueira. A parte de cima é fechada com portas de vidro. É nessas prateleiras que está a velhinha Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Dessa antecâmara passa-se para o quarto que tem uma saída de calor da lareira numa das paredes e um closet que é uma pequena obra de arte de marcenaria. Gosto muito deste meu quarto. Tem canteiros debaixo da janela que está ao lado da minha cama.

Pensava que ali, naquela antecâmara, que é como que um pequeno escritório, poderia estar sossegada, com luz, com conforto, com vista para o jardim. Preparada para receber a inspiração.

Mas, depois de estar arranjado, aquele espaço estava era com tudo a ver com o meu marido, não comigo. Não me vejo ali sentada, a escrever.

Portanto, o assunto, para mim, continuou em aberto.

Depois pensei que talvez pudesse ser na sala de cima. Excepto quando cá estão os miúdos, que ocupam aquele espaço para múltiplas brincadeiras, nomeadamente para brincarem às empresas ou para andarem às lutas, pouco a usamos. Há também uma secretária larga e, ainda, uma mesa. Tem também muita luz e de uma das janelas vê-se o nosso jardim e de outras vê-se o jardim da casa do lado. Poderia ser. 

Mas, não sei qual a razão, parece que não pegou. Não sei porquê nem vale a pena tentar saber. Há coisas que não se explicam.

Até que há dois dias peguei no computador e fui sentar-me na mesa de madeira que está no pátio novo, debaixo da buganvília e do jasmim amarelo. Em cima dessa mesa tenho um pequeno vaso com uma planta muito simples. 

Mal me viu ali, o ursinho felpudo veio deitar-se ao pé de mim, na terra que confina com o pátio e que também está debaixo do telheiro de ramagens verdes.

Depois fui buscar uma coisa que também é fundamental: uma bebida. Por acaso foi um chá frio de lima e gengibre. Mas podia ser qualquer outra, de preferência fresca.

E, assim instalada, abrigada, comecei a escrever. Não tinha pensado antes no que ia escrever. Simplesmente comecei. Uma ideia vaga, muito vaga sobre a personagem principal. 

Mal estava a ganhar embalagem, chegou o meu marido. Sentou-se à mesa e começou na conversa. Passado um bocado, estranhou a minha indiferença. Tive que lhe explicar que, finalmente, ao fim de cinquenta mil anos a tentar descobrir o spot que atrairia a inspiração, o tinha descoberto e mal estava a deixar que ela baixasse, tinha ele chegado para perturbar o momento. Riu-se e disse: 'Ah, então é por isso que estás aqui, camuflada'. Ou seja, para dizer a verdade, não ligou patavina. Disse que era melhor irmos dar uma volta com o cão antes que se fizesse tarte.

Portanto, interrompi e, nesse dia, já não retomei. Impossível. Ou estou imersa ou não vale a pena.

Ontem, ao fim da tarde, repeti o movimento: peguei no computador, num copo de chá frio e lá fui. Retomei. Alterei o último parágrafo pois, ao começar a escrever, a situação sofreu um twist. Fui por aí, por esse caminho que se tinha aberto. Ao pé de mim, o meu amigo cabeludo, sossegadinho, companheirão. Mas, como só começo ao fim da tarde, uma vez mais chegou o meu marido e bye bye silêncio, bye bye concentração, bye bye inspiração.

Hoje não tive tempo. Mas pior que isso, não sei por onde ir. Talvez, quando começar a escrever, o destino daquela pessoa se desenrole. A questão é que a história é mesmo sobre isso: sobre uma pessoa cuja vida se desconhece. E eu tenho que descobrir. Senão descobrir não tenho sobre o que escrever.

Uma outra preocupação. Agora está bom tempo, dá para estar ali na rua. E quando arrefecer? Vou estar encasacada com uma caneca de chá? Não creio. É que outra condição me é indispensável: tenho que estar confortável pois nada me poderá distrair. 

Portanto, resumindo: ainda não sei bem o que vai ser e como vai ser.

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As imagens são algumas das melhores do The 2022 iPhone Photography Award: a  primeira, na categoria Abstract, é de William Ainger, a segunda e a terceira,, na categoria Still Life são respectivamente de Reem Borhan e de Robin Robertis e a última, na categoria Nature é de Charlotte Mason-Mottram

Maria Bethânia interpreta Asa Branca

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Desejo-vos uma boa sexta-feira

Saúde. Partilha. Afecto. Paz.

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