quinta-feira, março 31, 2022

Flores num local de paz em tempo de guerra.
E viver na selva e fingir que se vive numa boa casa

 


Hoje não consegui caminhar ao fim da tarde. Cheguei a casa quase de noite. Quando estacionei, vi o meu marido a vir com a feríssima pela trela. Quando se aproximaram e ele percebeu que era eu que estava a sair do carro, ficou fora de si, tal a alegria (quando digo 'ele', refiro-me à feríssima). Fez peões no ar, saltos quase com flic flac à rectaguarda, uma alegria borbulhante. O meu marido, incapaz de competir, apressou-nos: 'Vá, já chega". Depois, já no jardim, por uns instantes sentou-se a olhar para mim e via-se que sorria, os dentões todos à vista mas com o semblante aberto e feliz (continuo a referir-me à feríssima). Mas foi mesmo apenas uns segundos pois, de imediato, se pôs ao alto para que eu o abraçasse. Abracei-o, fiz-lhe festinhas, disse-lhe palavrinhas fofas. Um amigo exuberante.

Eu vinha com a cabeça feita em água e vou precisar de dormir e do dia de amanhã para ver se me ocorre como processar tudo o que vi e ouvi. 

Na parte da manhã tinha tido reuniões e, ainda por cima, estava cheia de sono. De manhã, ou melhor, praticamente de madrugada, estava ainda a dormir, senti-o a tapar-me melhor (e agora, sim, estou a falar do meu marido). Eu, de noite, abro o vidro pois gosto de sentir o frio nocturno e ele, quando se levanta e me vê meio destapada, acha sempre que estou com frio. Ou melhor, dá essa desculpa. Só que, ao tapar-me e ajeitar a roupa, acorda-me. Já lhe disse mil vezes que, se faz aquilo para ter a certeza que estou viva, não faça. Se estiver morta, mais hora menos hora, não faz diferença. Por isso, deixe-me dormir. Ri-se e diz para eu me deixar de disparates. Desde que me aconteceu aquilo do coração, acho que gosta de se certificar de que estou viva. O pior é que acordei quase duas horas antes da hora. E se há coisa que me deixa em défice durante todo o dia é privarem-me das minhas preciosas horas de sono. Ele desculpa-se: tapo-te quase todos os dias e uns dias acordas e outros não. Como se a culpa ainda fosse minha. Zango-me. Não me mexas, deixa-me dormir destapada ou como me apetecer. Mas tenho a sensação que continuará a fazer o mesmo. 

Portanto, o dia começou assim e a coisa foi em crescendo. Mas valeu que, para jantar, só tive que me sentar pois, desde a confecção ao serviço, tudo correu por conta dele (e, claro, não me refiro à feríssima).

Quanto ao que aconteceu no mundo durante o dia, não consegui aprofundar. Passei por alto pelas notícias e fiquei sem certezas. Começa a ser claro que o grande czar tem patas de barro e orelhas de burro. Mas, psicopata como é, até se estatelar no chão, vai continuar a mentir, a agredir, a matar, a destruir.

Como sempre, depois das notícias escritas, sigo para o Youtube. Abaixo já partilhei a rábula do Hitler que mete o neo-Hitler à mistura e agora, num outro comprimento de onda, partilho dois vídeos muito tocantes embora em sentidos opostos.

No primeiro, Iryna, que fugiu da Ucrânia com a família, está abrigada num mosteiro. Vive em paz, sorri. Apesar dos horrores de que fugiu e das saudades e preocupações pelos que lá ficaram, agora sente-se tranquila. Vê as flores que despontam nos campos. Sente-se acolhida e protegida. Para trás deixou tudo, mas aqui está confortável, segura. 

No segundo vídeo, uma outra realidade, uma já bem conhecida. A cor da pele é outra mas não estou certa de que isso seja determinante. Talvez a questão da baixa escolaridade que mais pese. Mas não sei. Neste caso, ao contrário do primeiro, a maioria dos que deixaram tudo para trás é masculina. Aqui onde estão e no lugar para onde querem ir não são bem acolhidos. Trazem sonhos de uma vida melhor e, ao contrário do que acontece com os ucranianos que pensam vir por pouco tempo para voltarem logo que regresse a paz, neste caso penso que quererão fazer vida por cá. Sabem que de onde vêem não terão muitas oportunidades para concretizarem os seus sonhos. Estão em França a tentar chegar ao Reino Unido. As condições em que vivem são mais do que precárias. Tudo muito triste -- e ainda mais quando o jovem conta as dificuldades em tentar iludir a mãe para que ela não perceba as condições em que vive. Clandestinos, indesejados, perseguidos e maltratados.

São duas faces de uma realidade que é dura para quem tem a pouca sorte de se ver no lado traiçoeiro da vida.

_______________________________________________________________________

Ukrainian refugees shelter with monks in Romanian monastery - BBC News

Ukrainian refugees have found shelter living amongst monks at a Romanian monastery, until one day they can return home to their country.

Iryna and her family, who are staying the Carpathian monastery in north-east Romania after fleeing from Kharkiv, said they have settled into life there.

“Only here, at the monastery, I stopped hating. Last Sunday, I even prayed for Putin,” said Iryna.

Almost four million refugees have fled Ukraine so far following Russia’s invasion of the country.

___________________________________________________________

Life as a refugee in Calais: 'the Ukraine war is a wake-up call'

After the Ukraine invasion, hundreds of people found themselves stranded in Calais as they tried to navigate the UK visa process.

It put a spotlight on the city where many young refugees have been living outside all winter in harsh conditions, while NGOs struggled to provide the most basic services. The UK has given millions of pounds to France to try to prevent border crossings but people continue to attempt to get to Britain.  Meanwhile, the residents of Calais complain of an increasingly militarised city. 
----------------------------------------------------------------------------------

Pinturas de Igor Nekraha na companhia de Ganna Gryniva - Ukrainian Ethnic Jazz Ensemble

-------------------------------------------------------------------

E tenham um dia tão bom quanto possível
Saúde. Afecto. Boa sorte. Paz.

Hitler comenta fotografias ao acaso

 

Se calhar, qualquer dia, em vez de paródias com Hitler tê-las-emos com Putin. Estão bem um para o outro: psicopatas e mitómanos. E tão excessivos são os seus crimes e tão alheados aqueles assassinos sempre se mostraram em relação ao sofrimento e destruição que causaram que os seus comportamentos só encaixam em caricaturas. E, não há dúvidas, dão bons bonecos. E tão tresloucados são na sua desmedida ambição e na ignorância dos seus limites que só podem ter um fim caricato, sem deixar saudades, bons para ficcionar.

NB: Estas capas nunca existiram. São um trabalho da autoria de Patrick Mulder

Daqui por uns tempos, quando Putin for passado, pode acontecer que também existam saudosistas e tarados que o venerem tal como hoje ainda há malucos que têm o Hitler como seu guru. 

Não será de admirar: há malucos para tudo. Cruz suástica tatuada, cabeças rapadas, gente parva. Podem sempre dar bons figurantes nas paródias.

[De notar, contudo, que só se consegue rir com as maluquices deles quando já não têm como exercer a sua sanha destruidora.]

quarta-feira, março 30, 2022

Andar com pistola, ter unhas pintadas e saltos altos:
deputada, advogada de 34 anos, mãe de três filhos, uma mulher livre pronta a defender o seu país nem que seja à lei da bala

 

Ontem, em conversa, eu dizia que, se os espanhóis tivessem em mente anexar Portugal e lhes conhecêssemos instintos bélicos e assassinos, também eu quereria que alguém nos protegesse e, se não pertencêssemos à Nato e os espanhóis estivessem do outro lado, também eu imploraria que nos deixassem pertencer à Nato para que nos defendessem em caso de ataque. 

O meu interlocutor disse: 'A grande diferença é que se isso acontecesse, você não teria a população inteira pronta a defender o País. Pelo contrário, apareceria logo malta a dizer que o melhor era fazer a vontade aos espanhóis, dar-lhes o que eles quisessem. Até haveríamos de ver montes de malta nas televisões a falar espanhol.'  Fiquei na dúvida: 'Ah... Será...?'. E ele: 'Ah... não tenha dúvidas...'

Pouco depois, enquanto circulava pelos corredores da empresa, ia pensando, sobre cada um a um que cumprimentei, se defenderia o país de uma tentativa de ocupação selvática ou se cederia ao facilitismo da rendição, deixando que um outro país, outra língua, outra matriz cultural nos anexasse. Sim, provavelmente haveria quem remontasse aos tempos do Condado Portucalense, haveríamos de ouvir falar de Leão e Castela, haveríamos de ouvir falar de tudo o que pudesse servir para justificar o acto malvado do invasor, mesmo que se tratasse de um assassino que estivesse a arrasar Portugal e a praticar um infame extermínio dos portugueses. A julgar por tanto que tenho lido e ouvido por estas alturas, não me admiraria que parte dos portugueses, com as mais variadas desculpas e adversativas, em vez de condenar veemente os invasores, ainda se pusesse a arranjar desculpas para estarmos a ser invadidos. 

A coragem de uns alicerça-se na coragem dos outros. Por muito que queiramos ser corajosos, se olharmos para o lado e virmos todos a deitarem-se no chão para servirem de tapete aos agressores, se calhar também perdemos a valentia. Não sei. Por sorte nunca me vi -- e espero nunca me ver -- numa tão inconcebível situação. Mas, eu que gosto tanto de ser portuguesa, que gosto tanto do meu país e da minha língua, não sei se, vendo ao meu lado parte da população a capitular, teria coragem para me manter firme, para pegar em armas, para ficar debaixo de bombardeamentos, no meio de escombros, sem água, sem luz, com pouco ou nada que comer, vendo feridos e mortos ao meu lado. Nem sei se teria coragem para deixar a vida toda para trás e, com meia dúzia de coisas num saco, ir por estradas destruídas, pontes arrasadas, comboios cheios ou à boleia com desconhecidos, à procura de um tecto que me acolhesse. Nem para isso eu sei se teria coragem. 

Por isso, desde o primeiro dia, sinto uma admiração imensa por estes ucranianos que, novos e velhos, homens e mulheres, saudáveis e doentes, enfrentam o risco e defendem o seu país com unhas e dentes, sem medo, com uma abnegação e coragem como nunca vi. 

Querem ser livres, queres ser europeus, querem ser ucranianos -- e, sem pensarem duas vezes, dão a vida por isso.

Christiane Amanpour, cujo canal no youtube sigo e que nos tem dado interessantes entrevistas, foi a Kyiv entrevistar Lesia, uma mulher jovem, elegante, deputada... e que agora anda armada, confessando que, com as unhas grandes, pintadas, bem cuidadas, não era fácil carregá-la... Nada que ela não ultrapasse com um sorriso. Feminina e corajosa, determinada e livre.

Ali está, em campo aberto, pronta para ir à luta, determinada a defender o seu país, a defender o país dos seus filhos. 

Digo de novo que tenho pena que estes vídeos não estejam legendados e temo que nem todos os meus Leitores dominem bem o inglês mas são testemunhos que quero mesmo partilhar pois acho que são apontamentos que ajudam a perceber estes tempos que vivemos. 

Christiane Amanpour Speaks to One Woman Ready to Defend Kyiv | Amanpour and Company

Ukraine is still standing fast thanks to the remarkable resilience and resolve of its people, both military and civilians. When the war first started, Christiane spoke from London with Lesia Vasylenko, a parliamentarian who swore she would stay and fight alongside her fellow Ukrainians. Today, Christiane met with Vasylenko in Kyiv to see where things stand, more than a month later.

____________________________

E queiram continuar a descer pois o testemunho de Juan Arredondo que foi atingido e que viu morrer o colega e amigo Brent Renaud é tocante e ilustra bem o que são os riscos dos repórteres de guerra (e que boas reportagens nos têm dado). 
____________________________________________

Desejo-vos um dia bom.
Saúde. Boa sorte. Paz.

I am the master of my fate, I am the captain of my soul

 

Ver pessoas com armas apontadas na sua direcção. Pensar que se vai morrer. Sentir que se foi alvejado e pensar que o mais certo é que se vá mesmo morrer. Ver, ao lado, um amigo a ser alvejado. Querer que o amigo não morra. Ser levado para ser tratado e perceber que o amigo está a ser deixado para trás. Lembrar os outros que não deixem para trás o amigo. Estar no hospital sem saber o que aconteceu ao amigo. Depois, saber que o amigo morreu. Não poder acompanhar o amigo na sua última viagem. Pedir para lerem um poema para o amigo que não estará lá para ouvir. Agora falar de tudo isto. Falar dos pesadelos que não o deixam dormir em paz. Tentar travar as lágrimas.

Este poema:


Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate,
I am the captain of my soul.


'I kept saying bring Brent': Inside the moment bullets struck journalist Brent Renaud

CNN's Anderson Cooper visits photojournalist Juan Arredondo in a New York hospital, as the photographer recounts the moment he and award-winning filmmaker Brent Renaud came under fire while covering the war in Ukraine.

__________________________________________


___________________________________________

terça-feira, março 29, 2022

Os que sobrevivem

 



Um conhecido hoje dizia-me que tem discutido com a mulher e com as filhas sobre se devem receber alguma família ucraniana em casa. Por ele receberiam mas a mulher, que também trabalha, diz que lhe faria impressão, durante o dia, deixar a casa nas mãos de estranhos. As filhas indignam-se, perguntam de que é que a mãe tem medo. O meu conhecido diz que, de certa forma, compreende mas que, ao mesmo tempo, acha que são preocupações sem razão de ser pois são pessoas que deixaram a vida para trás e que apenas precisam de um amparo enquanto não conseguem ter a sua independência financeira. Depois, com lágrimas nos olhos, falou-me de uma imagem que não lhe sai da cabeça, a de uma criança a chorar enquanto se despedia do pai. Nessa altura, desviei o olhar. Os homens não gostam que a gente lhes perceba a emoção.

O tema do acolhimento de famílias é um tema que também me perturba. Qual a melhor maneira de integrar estas pessoas que fogem da guerra?

Uns amigos de Lisboa tiveram durante anos um casal de ucranianos a viver numa sua herdade no Alentejo. Tinham vindo da Ucrânia num outro êxodo. Tinham a herdade por sua conta e gostavam muito de lá estar. Quando os donos e amigos lá iam, ficavam todos contentes por terem companhia, era como se estivessem a receber convidados. Eram pessoas simpatiquíssimas. Tinham uma filha na Ucrânia e, na última vez em que lá estive, tencionavam lá ir visitá-la. Não sei o que é feito deles, tenho ideia que regressaram há algum tempo. Se assim foi, devem estar outra vez a viver um pesadelo. Não sei que profissão tinham na Ucrânia nem sei como chegaram ao contacto com esses meus amigos mas imagino que sentissem aquela sua estadia ali como uma bênção. Tinham alojamento, largueza de acção, um ordenado e, sobretudo, paz.

Quando a minha sogra teve um avc estando o meu sogro já doente, tivemos que arranjar, quase de um dia para o outro, uma pessoa para os acompanhar em casa a tempo inteiro. Lembro-me que um dia, do hospital, me ligaram a dizer que mandássemos uma ambulância buscá-la. Eu estava no norte, o meu marido estava não sei onde e os meus cunhados estavam também na sua vida. Ela não andava, estava completamente dependente, e não tínhamos a casa minimamente adaptada à sua nova condição. Nunca imaginámos que lhe dessem alta estando ela ainda assim. Fiquei preocupada, sem fazer ideia do que fazer. Um colega ouviu os meus telefonemas e, percebendo a minha aflição, sugeriu que contactasse o Serviço Jesuíta aos Refugiados. Assim fiz. Expliquei a situação. Pouco depois, ligaram-me a perguntar se estaríamos disponíveis para acolher uma médica moldava que o pouco que sabia de português tinha sido aprendido numa breve passagem por Angola. Contactada a família, obviamente aceitámos. Pareceu-me que melhor não poderia ser. Ajudou-nos em situações complicadas, nomeadamente despistando, de forma certeira, alguns sintomas que requeriam atenção urgente. Queria aprender português e gostava de ali estar. Infelizmente, naquela altura, os meus sogros ainda não estavam bem conscientes do seu estado de saúde e preferiam alguém mais vocacionado para o tratamento da casa do que da sua saúde. O facto dela pouco saber de português também lhes fazia confusão. A minha sogra queixava-se que ela não sabia pôr a mesa como devia ser ou que não arrumava a roupa a seu gosto. Tentei de tudo para que percebesse que isso era de somenos. Importante era ela saber vigiar a saúde deles, saber ajudar na sua recuperação, acompanhar a fisioterapia, etc. Terem uma médica a viver com eles era mesmo uma sorte. Mas a minha sogra não valorizava isso e queixava-se que ela queria era aprender a falar português, não ligando nenhuma para aprender a tratar da casa como devia ser. Eu reconhecia que era bom também para a médica pois tinha um tecto e um ordenado mas que os maiores beneficiados eram eles os dois, que estavam doentes. Mas não tive sorte. Ao fim de algum tempo tinham-na mandado embora, coisa de que ela também não se deve ter importado muito pois já devia estar saturada de quererem uma empregada doméstica quando estava mais do que na cara de que precisavam mesmo era de apoio clínico.

E penso que deve ser muito isto que por vezes acontece no acolhimento de pessoas de outra nacionalidade com fraco domínio da língua, em especial quando as expectativas mútuas não convergem. Ter alguém em casa com quem não se tem empatia deve ser horrível.

Esta segunda-feira, na empresa, em diversas situações, recomendei que se tentasse recrutar refugiados ucranianos: se calhar conseguir-se-á encontrar pessoas com as habilitações adequadas e, se falarem minimamente inglês, já estará bem. Numa das vezes, notei uma certa desconfiança, quase como se houvesse o risco de que os ucranianos viessem 'roubar' o trabalho aos portugueses. Receio infundado. Neste momento, pelo menos em funções técnicas, não existe desemprego em Portugal, existe é escassez. Por isso, nem que fosse apenas por isso e não por razões humanitárias, já era bom haver a possibilidade de se poder recorrer a mão de obra que hoje nos falta. Mas, ao darmos trabalho a novos cidadãos com os quais não tivemos que investir na sua formação e que vão ser novos contribuintes, estaremos a ter um ganho líquido para o país. 

Portanto, a integração de refugiados, em especial se estiverem aptos a trabalhar, é sempre uma coisa boa. E crianças...? Que bom para o país. Claro que ainda melhor será se por cá acabarem por ficar: que boa injecção demográfica isso seria... Isto, claro, para não falar na prática da generosidade e na multiculturalidade que são gratificantes sob qualquer ponto de vista.

E isto vale para refugiados e/ou imigrantes de qualquer nacionalidade ou raça. Que se sintam bem, que queiram cá ficar, que integrem a nossa realidade, que nos ajudem a desenvolver o país.


Mas se um dia regressarem ao seu país, se quiserem ir ajudar na sua reconstrução, se quiserem ir em busca das suas raízes, cá estaremos para os receber sempre que quiserem voltar para virem matar saudades.
_______________________________________

O que não podemos, penso eu, é deixar de sentir compaixão e solidariedade pelos que perdem entes queridos, que perdem a casa e a sua vida. Sobrevivem às perdas mas o que devem sofrer... E, ao mesmo tempo, a esperança que devem sentir em melhores dias, em felizes reencontros. São uns heróis.

'My mother was still alive while she was on fire': Teen describes horrific attack

15-year-old Andriy recounts to CNN's John Berman the moment his family was forced from their home at gunpoint in Chernihiv, Ukraine, and the attack that claimed his mother's life


Ukraine war creates largest refugee crisis since WW2 - BBC News

Four weeks since Russia invaded Ukraine and the lives of millions have been turned upside down.

"Children were killed and teenage girls were raped, we had to leave, they were shooting at the cars as we tried to escape," Ukrainian mother Yulia Kirienko said.

Almost a quarter of Ukraine's population has fled their homes, with around 60% going to Poland.


Ukraine War: Town of Izyum hit by heavy shelling

________________________________________________________________

Fotografias de John Dykstra na companhia de June Tabor interpretando Music of World War I

_________________________________________________

Desejo-vos uma boa terça-feira
Saúde. Boa sorte. Esperança. Paz.

segunda-feira, março 28, 2022

Em noite de Oscares, memórias de outros tempos e vídeos muito esclarecedores nomeadamente aquele em que se fala de uma certa ponte dourada.
A vida é múltipla, incoerente e misteriosa.

 



Um dos meus professores de História era o Reitor, um bacano, um bon vivant. Baldava-se à grande e à francesa às aulas. Aquilo não tinha seguimento. Nunca se percebia que matéria estava a dar, se é que estava a dar alguma. Num dos testes deu-me uma nota fraca que não compreendi. Pensava que tinha as respostas certas. Nunca fui de me ficar quando penso que tenho razão. Tentei falar com ele no liceu, tentei, tentei, mas não consegui. Como sabia onde morava, não fui de modas: fui a casa dele. Não me recordo exactamente dos pormenores mas o que me ficou é que ficou muito atrapalhado e surpreendido por lhe ter aparecido em casa. Lembro-me também que confessou que, na realidade, não tinha tido tempo para ler os testes com atenção. Disse que ia rever. Mas deve ter-se esquecido. Não reviu e tive uma nota abaixo da que me pareceria justa. Aquilo deixou-me arreliada, injustiçada. Tudo naquela disciplina, pela forma como era data, me soava a pouca coisa. Cheguei ao fim do ano com a sensação que não tinha aprendido nada.

Outra professora que tive a História era um desastre. Era muito enfática, teatralizava o que dizia mas tinha um problema: parecia que engolia ar a mais e ficava com a voz transtornada como se precisasse de dar um grande arroto. Como não o dava, ficava a disfarçar a aerofagia enquanto falava. Já antecipávamos quando aquilo ia acontecer, e acontecia várias vezes em cada aula. Aquilo dava-me uma terrível vontade de rir. De vez em quando tinha brutais ataques de riso que mal conseguia controlar.

Um desses ataques mais complicados aconteceu num dia de teste. Já o devo ter aqui contado. Apesar de ser aluna mediana a História, à minha volta havia quem soubesse ainda menos. Eu deixava copiar tudo. As mesas ('carteiras') eram individuais, em filas. A rapariga que estava na fila ao lado da minha era minha grande amiga e, naquele dia, estava mesmo atrapalhada. Perguntava-me e eu tentava bichanar-lhe a resposta mas ela não percebia. Fez-me sinal para eu escrever. Para além da folha de ponto, folha própria, eu tinha uma folha de apoio, como se fosse para me servir de rascunho. A professora estava desconfiada e eu não sou grande coisa a disfarçar o que quer que seja. Escrevi a resposta na folha de rascunho, meio às escondidas, sempre pronta para esconder a folha debaixo da folha de teste, e, mal apanhei a professora distraída, passei-lhe a folha. A professora sempre de olho. Então, quando vou continuar a fazer o teste, cai-me tudo: na atrapalhação, despassarada como sou, tinha-lhe dado a minha folha de teste e tinha ficado apenas com a folha de rascunho que continha apenas a resposta a uma pergunta. Quando recebeu o meu teste, a minha amiga olhou para mim espantada, assustada. E eu, ao ver o que tinha feito, desatei a rir. A professora perguntou-me o que se passava e eu, entre o assustado e o divertida, disse que não era nada -- mas cada vez me ria mais. A outra cheia de medo, sem saber o que fazer, com o meu teste nas mãos e eu, em vez de estar sóbria, para a professora deixar de olhar para mim, naquele despreparo. Às tantas, a professora já me perguntava se eu queria ser posta na rua. E eu a chorar a rir. A outra já em pânico e a professora intrigada, desconfiada, a julgar que eu estava a rir dela. Fiz um esforço enorme, pensando que se não conseguisse recuperar o teste, no fim estaria em maus lençóis. Ao fim de um bocado, lá consegui que a professora desviasse os olhos e a outra lá conseguiu restituir-me o teste. Devo ter tido uma nota meio da treta, pois não devo ter conseguido acabar. Não me lembro. Só me lembro do ataque de riso. Ainda hoje, enquanto escrevo isto, me rio.

Tive uma outra professora, uma já com uma certa idade, que usava umas roupinhas muito curiosas. Lembro-me de um vestido justinho de malha que lhe ficava deveras bizarro. As aulas consistiam na sua leitura do livro. Ao fim de um bocado, já ela estava a perder a mão na turma. Ela lia monocordicamente, enquanto toda a gente se portava mal, ria, contava piadas, pregava partidas. Ela bem tentava ter mão em nós mas era impossível. De vez em quando enchiam a sua cadeira de pó de giz. Quando ela depois andava a ler o livro entre as filas de carteiras, a saia tinha duas manchas brancas no rabo e toda a gente ria a bom rir. Nos testes, queria que repetíssemos quase palavra por palavra o que estava no livro. Se omitíamos uma linha ou uma palavra, ela marcava incompleto. Por essa altura eu era apaixonadíssima pelo bad boy da turma. Num dia de testes, ele foi apanhado com o livro em cima do tampo da carteira a copiar as respostas. Ela, quando viu, ficou histérica: 'O que é isto? A copiar? Seu descarado? A copiar à descarada? O que vem a ser isto?!' E ele, sereno, desafiador: 'Como quer respostas exactamente iguais ao livro, resolvi certificar-me de que não falhava uma palavra'. Ela enraivecida e todos nós perplexos. Furiosa, mandou-o entregar a folha de ponto e sair da sala, ameaçando-o de que ia anular o teste. Eu com o coração disparado, querendo que ele tivesse juízo. Mas ele, descaradão e descontraído, levantou-se e saiu, nas calmas, sorridente. No entanto, movimentámo-nos todos e ela teve que arrepiar caminho. Com esta professora, eu, que sou péssima a decorar o que quer que seja, desliguei. História não era comigo, definitivamente.

Com estes professores nunca consegui, pois, que me ensinassem a gostar de História e isso ficou-me para o resto da vida. Tenho a sorte de ter cá em casa uma pessoa que gosta e sabe de História e que me ilumina quando estou às escuras. Mas é uma lacuna que nunca conseguirei ultrapassar.

[E estou a escrever isto enquanto as estrelas entram na cerimónia dos Oscares e se apreciam os vestidos que desfilam na passadeira (parte deles deixando os seios praticamente a saltar-lhes de dentro) e, ao mesmo tempo, leio notícias e vejo vídeos sobre a situação da Ucrânia e recrimino-me por misturar, no meu tempo e no meu espaço, o medo e o sangue com a volubilidade e o glamour da moda e da festa do cinema e com recordações que não têm nada a ver. Mas a minha cabeça deve precisar de manter compartimentos para cada emoção e, por isso, nem vale a pena eu fingir que não: ao mesmo tempo que me preocupo e me angustio e que me revolto com a bandidagem do Putin, mantenho via verde para as minhas memórias e, en passant, para ir acompanhando l'air du temps. A mente é um lugar tortuoso com labirintos, abismos, clareiras, pontos de luz.]

Mas esta conversa sobre a minha ignorância sobre História para dizer que, enquanto confesso o meu desconhecimento sobre matérias que explicam a raiz de muitos conflitos, a verdade é que, no que se refere à actualidade, tento compreendê-la nas suas diferentes vertentes. O que se passa na Ucrânia parece-me de tal forma aberrante e condenável que tento espreitar os acontecimentos sob diferentes ângulos. Evito fontes que podem ser discutíveis e procuro órgãos de comunicação social idóneos nos quais a informação é validada.

Hoje partilho vídeos que me parecem muito esclarecedores. Sendo todos interessantes, vi com especial atenção o último. Como sempre, não existem versões com legendagem em português...

________________________________________________________________

What untruths is Russia spreading about Nazis in Ukraine? - BBC News

One of President Putin’s justifications for his invasion of Ukraine is that he wants to "denazify" the country.

Ros Atkins looks at the distortions and untruths that Russia is spreading about Nazis in Ukraine - including about the role of the Azov regiment, who are based in Mariupol and are part of Ukraine's national guard.

________________________________________________________________

'Could be a big problem for you': Security analyst's warning to Putin

CNN's Peter Bergen reviews the implication of the Soviet Union's invasion of and withdrawal from Afghanistan, and how it could draw parallels to Russia's war in Ukraine today

__________________________________________________

The Psychology of an Isolated Russia | The New Yorker

David Remnick and the historian Steve Kotkin discuss Vladimir Putin and how authoritarian regimes are pushed into misguided foreign wars.
______________________________________________________________________

Pinturas de Nathan Altman na companhia de Valeria Kurbatova (Harpa) e de Davina Clarke (Violino) que interpretam o Romance de Dmitri Shostakovich

[Caso ainda não tenham reparado, este blog não gosta de assassinos, nomeadamente, de um dos mais cruéis de que há memória nos tempos recentes, mas acolhe de braços abertos a arte e os artistas russos]
____________________________________________________

Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira
Saúde. Boa sorte. Paz. E que o milagre não se faça esperar.

domingo, março 27, 2022

De que se fala quando se fala em meditação...?

 




Dia preenchido e bom. Almoço fora, em família, passeio à beira-rio, meninos felizes na brincadeira e na conversa uns com os outros, a minha mãe toda contente embora de vez em quando preocupada com o seu amigo little teddy bear, home alone. O céu estava cinzento mas ao ver as fotografias confirmei aquilo que me tinha parecido: todos estavam coloridos e sorridentes. Já lhes enviei as fotografias.

Não apareço, claro, pois eu era a fotógrafa. Mas gostava de ter podido fixar aqueles momentos em que os meninos vêm conversar comigo e caminhamos em conjunto. O meu mais crescido, já mais alto que eu, já com voz quase de homem, já com conversas e modos de rapaz crescido, é um bom conversador. Tem dúvidas, coloca questões, começa a pensar no seu futuro. Os outros ainda vivem apenas no presente, brincalhões e ruidosos na sua alegria. 

Ao fim da tarde fomos levar a minha mãe mas, antes, viemos a casa resgatar o nosso watch dog. De manhã, vendo os nossos preparativos, ele já mostrava que estava intrigado. Sentava-se a olhar para nós, seguia-nos pela casa, desconfiado. Quando saímos, veio a correr para nos acompanhar. Geralmente corre na brincadeira para ver se o conseguimos apanhar. Este sábado não, precipitou-se para o portão. Dissemos-lhe que não vinha, que ficava a tomar conta da casa. Ficou sentado, triste, a olhar para nós. Mas já está mais crescido. Antes, atirar-se-ia contra o portão, a ladrar, a ganir, num desespero. Hoje apenas ficou triste, desconsolado. 

Tínhamos deixado, no pátio junto à cozinha, a cama almofadada e a tigelinha da ração e a da água.

Quando chegámos, a almofada estava no jardim, ao lado do portão. E não tinha tocado na água nem ração. E, quando nos viu, ficou louco de alegria. Saltava, abraçava-nos, corria à nossa volta numa daquelas euforias que nos faz rir. A surpresa por ver a minha mãe, então, deixou-o fora de si, tanta, tanta a alegria. Alegria, de resto, recíproca.

Claro que, enquanto estávamos no almoço, depois a jogar matraquilhos, a passear, no parque infantil, a comer gelado e etc., todos, incluindo os meninos, perguntavam por ele e todos estavam com pena que o seu amiguinho não estivesse ali.

A minha mãe, quando íamos a caminho de sua casa, dizia que tinha sido um belo dia e que assim era muito mais descansado para mim. De facto, desde há dois anos que não íamos todos almoçar fora. Durante a pandemia todos os almoços em família têm sido cá em casa, de preferência ao ar livre. Por isso a minha mãe diz que assim é melhor para mim. Mas a verdade é que estou cansada, com sono, sem energia. É certo que acordei cedo e me tinha deitado tarde e é certo que a semana foi complicada. Talvez seja isso. É que hoje nem ânimo tenho para arrebitar a pele da cara com o pink jade-roller.

Ao sentar-me aqui, há pouco, ocorreu-me que, se calhar, está na altura de começar a meditar. Mas tenho com a meditação aquele mesmo desentendimento que tinha quando comecei a conduzir e não conseguia perceber o conceito do ponto de embraiagem. Diziam-me quando usar mas não me explicavam exactamente como era e como funcionava para se obter o ponto pretendido. Então, quando parava numa subida íngreme e tinha que arrancar, sofria horrores com medo de deixar descair o carro, bater no que estava atrás e não conseguir arrancar. Até que alguém me explicou detalhadamente os passos e a explicação. E tudo se tornou claro.

Com a meditação é a mesma coisa. Dantes, pensava que meditar era o mesmo que pensar. E que a meditação era boa quando se conseguia convocar pensamentos bons. Para meu espanto, vim a descobrir que é exactamente o oposto: não pensar. Por isso, se calhar é isso de que estou a precisar: esvaziar a cabeça, abolir os pensamentos. 

Já o contei aqui algumas vezes. Na única vez em que fui a uma sessão de meditação, deitei-me no colchão e, quando a professora mandou que fechássemos os olhos e pensássemos num lugar em que nos sentíssemos bem, pensei num campo verde, com as ervinhas a ondularem ao vento. E instantaneamente adormeci. Portanto, não sei de que se tratou entre aquele momento e aquele em que me dei conta que já tinha acabado e que estávamos a ser convidadas a respirar fundo e nos levantarmos devagarinho.

Para mim seria importante perceber de facto porque é que a meditação é benéfica: 

  • Porque, no fundo, consiste em respirar fundo, várias vezes a respirar fundo, e, portanto, oxigena-se bem todo o organismo, em particular o cérebro? é disso que se trata? 
  • E o tempo todo estamos alienados do mundo, concentrados apenas na respiração e, ao estarmos atentos à respiração, faz-nos esquecer tudo o que se passa à nossa volta? 
  • É isso que faz com que as pessoas se sintam tranquilas? 
  • Ou sentem-se revigoradas? 

Não sei e gostava de saber. Sem perceber isto parece que não consigo dar o passo seguinte que é de experimentar como deve ser.

Vejo vídeos mas é tudo muito conversa mística ou operacional e não os fundamentos científicos da coisa, as razões fisiológicas para as pessoas se sentirem bem. 

É que, por exemplo, estou a escrever isto e, ao mesmo tempo, estou a pensar que vou ter que me levantar cedo pois tenho um compromisso, estou a pensar nas horas a que tenho que me levantar, depois estou a pensar no que não posso esquecer-me de dizer às pessoas com quem me vou encontrar, depois num presente que tenho que comprar para mais um aniversariante, depois que gostava de ir comprar um banco para pôr numa parte do jardim em que é bom estar mas onde não há onde nos sentarmos a não ser no chão, nas lindas horas a que haveremos de conseguir almoçar, nas reuniões que tenho na segunda feira e em mais não sei o quê. Aliás, sei bem em quê, sei. No que se passa na Ucrânia. 


No carro, ouvimos as notícias e a minha mãe disse que o que já tinha dito ao almoço e que não reproduzo aqui para não ferir almas sensíveis. E falou, com revolta e pesar, da destruição sangrenta e feroz que está a ser levada a cabo. O meu filho diz que não devemos personalizar no Putin, que isto é uma questão geoestratégica. Não quero saber. Quando se invade um país para o destruir que se lixe a geoestratégia. E se me lembram os Iraques desta vida também não quero saber. Não determinei, aplaudi ou defendi essas guerras. Caraças para o Iraque: tantas pegas que tive nessa altura por não acreditar naquelas patranhas das armas de destruição maciça, tanto que me manifestei contra a porcaria da guerra no Iraque! E, por todas essas guerras serem absurdas, indesculpáveis, criminosas, destrutivas e desumanas é que me revolta que não se tenha aprendido nada e se volte a cometer os meus atentados contra a liberdade, contra o património, contra a vida.

Enfim. Adiante. É tarde. 

Deve estar quase a mudar a hora. Aliás: já mudou. Menos uma, ainda por cima. O que vale é que é por uma boa causa. Dias a crescerem é um sopro de oxigénio na minha disposição, fico sempre mais animada. É bom termos dias grandes, cada vez maiores, a encherem-se de luz. Tomara que tragam também mais paz a este mundo desgraçado.


_________________________________________

Já agora, a propósito da meditação:

Porque é que Yuval Noah Harari pratica meditação?

Seventy thousand years ago, our human ancestors were insignificant animals, just minding their own business in a corner of Africa with all the other animals. But now, few would disagree that humans dominate planet Earth; we've spread to every continent, and our actions determine the fate of other animals (and possibly Earth itself). How did we get from there to here? Historian Yuval Noah Harari suggests a surprising reason for the rise of humanity.


Qual é a ciência por trás da meditação?

Meditation has been practiced for thousands of years in many cultures to nurture calmness and inner peace. But what does science say about it, and how can we fit it into our busy, modern lives? CNN speaks to a psychologist about what it does to our brains and how we can do it better

[Não tem as respostas para as minhas perguntas mas aqui fica na mesma] 


___________________________________________

Pinturas de Andrey Remnev na companhia de Diana Tishchenko que interpreta Melody de Myroslav Skoryk

___________________________________________

Desejo-vos um belo dia de domingo 
(e que o milagre da paz comece a desenhar-se no horizonte)

sábado, março 26, 2022

Um dia normal junto à última fronteira -- com apontamentos variados à mistura

 

Mais uma vez o meu dia foi longo e apenas consegui aterrar no meu sofá a seguir às onze da noite. Na véspera tinha dito que a sexta ia ser tranquila pois tinha uma única reunião agendada. Mal tinha acabado de dizer isso arrependi-me. Na volta, com o tempo, estou a tornar-me supersticiosa. Felizmente, a superstição só se dá com coisas meio parvas. Uma que dou como certa é que, mal digo que uma coisa não vai acontecer ou que há muito tempo que não acontece, é certo e sabido que vai acontecer. Não sei explicar mas sei que acontece. Falar nas coisas pela negativa parece que atrai, uma atração de tipo dispensável.

O certo é que aconteceu: tive uma sexta-feira do caraças, sem sossego. Telefonemas em contínuo, chatices, problemas que se embrulham uns nos outros. Pedem-me soluções e eu, tantas vezes, sem saber bem como ou, mesmo, apetecendo-me é tréguas, é pôr-me a milhas. Mas não fujo: corto a direito, passo por cima de pruridos e sensibilidades e digo de minha justiça. Por vezes, sinto que estou a tornar-me mais dura. E, mal acabo uma, quando quero pensar no que acabei de decidir, já está a surgir nova situação. 

Mas houve um telefonema bom. Telefonaram-me para me agradecer uma decisão. Palavras muito simpáticas de uma pessoa muito simpática e genuína. Por uma vez, um telefonema que acabou com 'um beijinho muito grande'. Agradeci de coração mas, ao mesmo tempo, por dentro, estava a pensar que entre beij'inho' e 'muito grande' havia uma contradição de termos. Claro que não disse nada. Imagina se ia dizer: 'Peço desculpa mas, se é beijinho, tem que ser 'muito pequenino' ou, se é para ser grande, tem que ser beijão' -- ia quebrar o momento e lançar a confusão. A semântica e a lógica às vezes só atrapalham.

Tinha pensado ir ao supermercado mais cedo mas, afinal, só consegui ir mais tarde. Pior: tive que ir sozinha. Quando vou numa de turismo com necessidade apenas de kefir ou de coisas para a sopa, é bom, passeio, vejo as novidades. Agora, quando é avio a preceito, prefiro companhia. Mas não deu. O meu compagnon de route estava ainda mais metido em trabalhos que eu.

Mal saí do carro, logo a fera veio de lá de trás a correr, a ladrar, chegando-se todo feliz, de pé junto ao portão, a dar ao rabinho. Ainda do lado de fora, fiz-lhe festinhas, disse-lhe miminhos. A instrutura bem se zanga: 'Não o mime tanto... Se quer mesmo dar-lhe mimo, primeiro dê-lhe uma ordem para ele a seguir sentir o mimo como uma recompensa.' Mas esqueço-me. Um ser tão exuberantemente feliz com a minha presença precisa forçosamente de uma recompensa e, para ele, a melhor recompensa é a minha atenção e mimo. A instrutora avisa-me: 'Assim, ele não vai sentir necessidade de ser obediente pois já sabe que recebe mimo de qualquer maneira...'. Percebo. Mas pode a gente regatear ou negociar afecto junto de quem se gosta? 

Bem. 

Depois do supermercado ainda houve muitas coisas. O meu marido queixa-se, não conseguimos ter descanso. Não sei que coisa é esta, parece que atraímos afazeres e compromissos.

Agora já passa da uma da manhã, já é sábado. E ainda tenho o cabelo molhado. Na volta, vou dormir assim o que não dá jeito nenhum. Não tenho paciência para ir secá-lo. Nunca seco com secador, não tenho paciência. 

Entretanto, estive a ver as notícias e os blogs. De vez em quando há algum que tem palavras que chegam até mim ainda a latejar e fico com vontade de enviar o meu apoio ao seu autor nem que seja, pelo menos, para que saiba que as suas palavras me tocam. O meu apoio ou um abraço. Mas não o faço. Não sei bem porquê mas não o faço. Parece que penso que é melhor guardar distância, ver e ouvir de longe, não correr o risco de dizer palavras a mais ou a menos. A vida é uma coisa incompreensível.

Alguns blogs têm a caixa de comentários fechados. É o caso do blog de Eduardo Pitta. Gosto de ler. É sempre conciso, focado. Gostei bastante de ler o que ele hoje publicou. Por isso, tomo a liberdade de transcrever quase na íntegra.

A ÚLTIMA FRONTEIRA

Estamos todos a pagar a factura da nossa indiferença face à anexação da Crimeia pela Federação Russa em Março de 2014. Quando isso aconteceu, fazendo tábua rasa do direito internacional, a Europa e a administração Trump assobiaram para o lado. O que está em jogo na Ucrânia é o nosso futuro como civilização.

Trinta dias de confronto deram origem a seis milhões de deslocados no seu próprio país, quatro milhões de refugiados no Ocidente, meio milhão de deportados para a Rússia, milhares de civis mortos, corredores humanitários atacados à bomba, cidades destruídas, tráfico de seres humanos, crise económica planetária, etc. Kiev ainda não caiu. Só cairá se a Rússia adoptar a solução final. Se isso acontecer, a NATO intervirá. Não pode ficar de braços cruzados como ficou há oito anos.

Um dia saberemos o que levou Putin a supor que a invasão da Ucrânia seria um remake da libertação de Paris, em Agosto de 1944, quando os franceses receberam os militares americanos com flores, beijos e canções. Quem terá convencido Putin dessa ilusão?

A “operação especial militar” que visava “desnazificar” a Ucrânia foi prevista para durar umas horas, porque, julgavam os idiotas de todos os matizes, a chegada do primeiro tanque ao Donbass levaria Zelensky a fugir para o Ocidente e a população ucraniana a receber os “libertadores” em triunfo. Nada disso aconteceu. A Ucrânia resiste, a Ucrânia vai continuar a resistir, para desgosto dos “pacifistas” que apelam à capitulação de um Estado soberano.

(...) 

E, como sempre, procurei notícias e explicações ou apontamentos que me ajudem a perceber como atingiu tamanhas proporções a chacina que Putin empreendeu e que se, por um lado, arrasou lugares, matou gente e empurrou para outros destinos milhões de pessoas, a verdade é que, estranhamente, à parte a força bruta dos bombardeamentos, no terreno demonstram amadorismo, desmotivação, desgoverno.

Partilho alguns vídeos que me parecem dignos de registo.


Ukrainian family: 11-year-old girl shot in face by Russian soldier

Terrified Russian soldier tells gran he wants to ‘get the f*** right out of’ Ukraine

A TERRIFIED Russian soldier has told his gran he wants to “get the f*** out” of Ukraine and expected the war to be over in two weeks.

The unnamed soldier was heard speaking in an intercepted telephone call home that has been released by the Ukrainian government.

Vladimir Putin’s troops have been hit by plummeting morale after the quick victory promised by the tyrant has turned into a bloodbath in the face of fierce Ukrainian resistance.

At the start of phone call, a woman asks the soldier “God, when will this end” to which he replies that his situation is “scary granny”.

He then says that his “whole brigade was smashed” and that “I don’t know how God saved me”.

“To be honest with you I would get the f** out of here right now and I don’t care,” the soldier tells her.

“The main thing is to survive the hell. We thought everything would be over in two weeks. It’s been almost a month already.”


Mounting Deaths Make Russian Censorship Of Ukraine War Harder To Maintain

Joshua Yaffa, correspondent for the New Yorker, talks about how Russians would react if they knew the truth about the war happening in their name in Ukraine, and the question of whether Vladimir Putin can continue to keep Russians in the dark.

Gen. McCaffrey: Russia Has ‘Lost Command And Control’

Retired Four Star General Barry McCaffrey and former consultant to the FBI’s Counterterrorism Division Clint Watts discuss the Russian army struggling with logistics, communication, and resources.
_____________________________________________

As fotografias provêm do Guardian

_____________________________________________

Desejo-vos saúde, boa sorte, paz e felizes reencontros

sexta-feira, março 25, 2022

Como falar de jade-rollers e outras futilidades sem que sintamos que estamos a interiorizar a banalidade do mal?

 



O dia foi longo. Quando acabámos de jantar passava das onze da noite. Estou cansada e com sono e o que me vale enquanto escrevo é que, enquanto escrevo com a direita, massajo o rosto com o jade-roller que, na terça-feira à hora de almoço, comprei no Ale-Hop. É um objecto bonito, com umas translúcidas pedras cor de rosa suportadas por metal acobreado. Quando lhe pego, as pedras estão frias e a sensação da pedra macia e fria a rolar no rosto é bastante agradável. Nunca apliquei botox ou fiz lifting ou o que quer que seja. Por vezes, o YouTube, sabendo as saudades que, por vezes, sinto das revistas que via quando ia ao cabeleireiro, propõe-me tutoriais de moda ou de rotinas de beleza. Vejo com alguma curiosidade pois são apresentados como coisas simples, quase como apenas lavar a cara com água e sabão azul e branco e, afinal, são todo um processo. Põem produtos em cima de produtos e, se as mulheres começam com um aspecto normalíssimo, com algumas imperfeições, até com olhos pequenos e lábios secos, acabam com menos anos, sem rugas, sem olheiras, olhos grandes e lábios carnudos. E eu vejo aquilo e sinto-me uma descuidada. Lavo a cara, coloco um hidratante, uma leve sombra nas pálpebras superiores e está feito. Se tenho reunião, ainda ponho um pinkezito nos lábios mas, tirando isso, nem creme para isto, creme para aquilo, anti-olheiras, base, pó, iluminador, máscara, preenchimento de sobrancelhas, etc. Mas agora, com este instrumento, tenho esperança que produza o mesmo efeito que tudo o que não uso. E, se não produzir, paciência, pelo menos mantem-me acordada enquanto o uso.

Estou agora a ver as notícias. Hoje uma pessoa dizia-me que já não conseguia ver notícias pois já andava a sentir-se deprimido, não suportando a impotência perante o grau de violência de Putin e o sofrimento dos ucranianos. A minha mãe diz-me a mesma coisa, que já não quer ver notícias, diz que, sempre que vê o que está a passar-se, fica incomodada, não se sente bem. Ouço isto e receio que isto venha a acontecer comigo, com toda a gente: cansarmo-nos de ver tanta violência, alhearmo-nos da destruição e do sofrimento dos que estão a ser tão vilmente atacados, deixarmos que o criminoso aniquile um país. Quando o mal é assimilado como uma coisa normal é a morte que se metastiza na nossa vida. 

A minha mãe de vez em quando fala de quando era miúda e havia guerra e havia falta de tudo. Ouvia-a falando disso como se se tratasse de uma realidade remota, irrepetível, coisa de outros tempos. Na nossa Europa, agora estável, as fronteiras sagradas, ter havido uma coisa tão medonha  quase parecia coisa de há mil séculos. Quando mais recentemente tantas guerras têm acontecido, embora qualquer guerra seja sempre um buraco negro por onde a vida é sugada, parece que, mesmo que involuntariamente, a minha mente parece que colocava um qualquer filtro que me impedia de as encarar com excessivo realismo. Na minha mente era como se fossem conflitos ancestrais, lutas irracionais por fronteiras, casos de loucura exacerbada como os que levam algumas pessoas a matarem-se por uns centímetros nas extremas de um terreno, povos habituados à violência, civilizações para quem a vida não tem assim tanto valor, alguns arriscam-na para conquistar o paraíso e para irem fazer companhia a bandos de virgens, lugares onde as religiões andam com armas à cintura. Na minha cabeça, alguns eram lugares relativamente longínquos, de instabilidade e sofrimento, quase sem salvação possível, um triste escoadouro de armamento e munições que mantinham florescente a indústria das armas. Mas, de repente, quando estávamos ainda a digerir a nossa fragilidade perante um vírus, acontece uma coisa destas, aqui perto, uma coisa feroz, desalmada, desumana, numa era em que todos queremos paz e amor -- e tudo parece inconcebível, imperdoável e, sobretudo, muito triste.

___________________________________________

Mas se me compadeço e me solidarizo com os ucranianos, vítimas de uma chacina, tenho que repetir o que já no outro dia referi: tenho também muita pena dos pobres soldados russos que não passam de carne para canhão ao serviço de um louco. Não se sentem motivados para esta guerra, sofrem o frio, a fome e, tantos, o abandono e o medo. E, pelo que se vai sabendo, tirando a força bruta dos bombardeamentos que arrasam habitações, escolas, hospitais, teatros, gente indefesa, o resto demonstra desgoverno e, até, alguma desactualização tecnológica. Ouço falar em corrupção como envolvente do que parece ser um descalabro militar. Mas seja ou não seja, que preço estão estes jovens a pagar? Tal como no outro dia aqui falei, quantos destes rapazes se tornam corpos que ninguém vem resgatar...?

O vídeo abaixo é impressionante e elucidativo. Já tinha visto vídeos com comunicações russas interceptadas mas não os tinha aqui referido pois não sabia se era informação fidedigna. Parecia-me quase impossível. Mas este vídeo é do The New York Times e tudo foi checkado, inclusivamente duplamente checkado, confrontando imagens com o que as informações que militares russos trocavam entre si. Chega a ser desconcertante. Mas é, sobretudo, muito triste. Se os ucranianos lutam com unhas e dentes e anima-os a força de defenderem o seu país, estes pobres soldados estão também a passar por horrores sem saberem porquê e, pelo que se percebe, sentindo-se desprotegidos, desapoiados.

Russia Struggled to Capture a Ukrainian Town. Intercepted Radio Messages Show Why

The Times’s Visual Investigations team analyzed dozens of battlefield radio transmissions between Russian forces during an initial invasion of the town of Makariv, outside Kyiv. They reveal an army struggling with logistical problems and communication failures.


Россия пыталась захватить украинский город. Перехваченные радиосообщения показывают, почему

Группа визуальных расследований The Times проанализировала десятки радиопередач с поля боя между российскими войсками во время первоначального вторжения в город Макаров под Киевом. Они показывают армию, борющуюся с проблемами логистики и сбоями связи.

_____________________________________

Pinturas de Kandinsky ao som de Scriabin -- Poeme Op 32 No 1 na interpretação de Horowitz

__________________________________________

Dias felizes.
Espero que o mundo trave Putin. Sobretudo, espero que os russos travem Putin.
Saúde, paz e amor.