terça-feira, junho 30, 2020

Sobre o rival do blog
(do qual, obviamente, não poderei falar; pelo menos, por agora.)





O blog tem agora um rival de peso. Ando há algum tempo com outra encasquetada a que me dedico à noite, quando tenho tempo. A coisa veio fazendo o seu caminho e esta segunda-feira novo e decisivo passo foi dado. Estou agora em counting down até que a coisa se oficialize. E já comecei a fazer os meus planos para que, mal possa dar azo àquilo que tanto desejei, os possa de facto começar a concretizar. E é à noite que me entrego a isso. 

Chego à hora de ir para a cama e ainda ando de roda dos meus novos e intensos interesses. Vi as horas. Quase duas. E já coloquei um comprimido debaixo da língua. A noite passada a coisa surtiu um resultadão. Voltei ao meu registo habitual: caí na cama e foi de penalti até de manhã. Creio que hoje isso aconteceria na mesma, tal a sonolência que me invade. Mas não quero correr risco. Tomei de novo para ver se o meu organismo reaprende a descansar durante a noite.

Agora uma coisa vos digo: não há dúvida que um vendaval de mudança varreu a minha mente, o meu corpo, tudo. O que tem acontecido de há uns poucos meses a esta parte mal dá para acreditar. 

Durante o fim de semana e durante a segunda-feira, recebi mails, alguns tocantes, e telefonemas (alguns dos quais não consegui atender) muito simpáticos. Emoção da minha parte? Pouca. Parece que me falam de coisas que fazem parte de uma minha outra vida. Virei a página. 

Parece que tudo o que ainda se relaciona com a minha vida anterior é um empecilho para que a mudança seja ainda mais radical. Juro que não sei o que me deu. Felizmente não podemos ainda mudar totalmente os átomos de que somos feitos; senão provavelmente até isso eu faria e, aí, não sei se deixaria de ser eu -- e isso não. Quero ser quem sou mas viver e experimentar outra vida.

Mas, enfim, não vou agora falar mais do que não quero dizer.


Falo apenas daquilo de que me lembrei quando li Did you solve it? The broken vase.

Não tem nada a ver mas ocorreu-me. Eu vinha de carro com um colega quando lhe ligou a mulher. Como estava em alta voz, ouvi a conversa. Estava compungida pelo que foi com a voz cheia de drama que lhe comunicou que a empregada tinha quebrado um dos dois jarrões da entrada. Quase chorava. Ele, também abananado, tentava consolá-la. Uma meia hora de mútua consolação. Eu ouvia caladinha. Contou-me depois que se tratava de coisa enorme, enormemente valiosa, peças de antiquário. Dias depois, mostrou-me a fotografia da festa de anos e lá estava o jarrão agora desirmanado. Horrível. Toda a decoração do mais duvidoso. Ele todo orgulhoso, a sua querida esposa também orgulhosa e sentindo-se orfã sem um dos jarrões e eu, olhando aquilo, só pensava que, se fosse eu, tinha era partido os dois. 

Tudo tão subjectivo. Há pessoas que se enterram em vida em casas que mais parecem lúgubres mausoléus ou uma instalação de peças pirosas armadas ao pingarelho. Quando vejo tais ambientes só me interrogo sobre se podem ser mentalmente sãs ou felizes as pessoas que assim decidem viver. Mas, aparentemente, é gente normal que se orgulha daquilo. Fico, então, a pensar que ainda me falta viver mais cem anos (no mínimo) para aprender a decifrar a mente humana.


E agora tenho que interromper aqui: o little comprimido está a produzir efeito, estou a ficar anestesiada. Portanto, vou-me. E vou ver se sonho com andar à chuva a ver se me refresco que sofro à brava com a canícula.

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Vi estas fotografias de © Marco Glavian em: Marco Glaviano Icons - Photogallery

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Portem-se mal. Saúde.

segunda-feira, junho 29, 2020

Ainda há covid...?
[+ A casa de campo da Maitê]


Continuo numa de outras coisas. Para começar o dia, fomos ao Leroy. Parque de estacionamento cheio. Máscara. Lá dentro, como é óbvio, cheio. Longas filas para as caixas. Perguntámos por uma coisa. Esgotada. 'Como esgotada? Agora?'. A funcionária elucida: 'Não, até ao Natal'. Espanto. Tudo doido. Mas agora o meu filho disse-me: provavelmente fornecedores franceses, a cadeia de abastecimento em França está com quebras. Pois, não sei. Se for isso, é mau (para a economia no seu todo) mas é menos intrigante porque, se fosse porque todo o mundo tivesse desatado a adquirir aquilo até ao seu esgotamento até ao Natal, então eu ia ali e já vinha.

De tarde, deu-me aquele apetite incontornável por um gelado. Quando estive grávida nunca senti desejos. Nem tonturas, nem inchaço nas pernas ou cansaços, só mesmo uma barriga que crescia e mexia. Agora, que não estou grávida (acho eu...), é que sinto estes desejos. Lá fomos. As ruas cheias de gente, as esplanadas cheias, nem sinal de covid. Parece que acabou ou que nunca houve covid. Uma animada convivência, tudo nos come e bebes, máscara ao pescoço (mas, a comer e a beber, como manter a máscara?), tudo junto, a falar e rir alto e bom som.

Também assisti a uma coisa que me deixou francamente incomodada. Um homem que, pelos olhos congestionados, não percebi se estava adoentado, quiçá febril, ou um bocado embriagado, estava sentado num banco de rua. Debruçou-se e assoou-se directamente para o chão. Um grosso fio de muco caiu-lhe do nariz até ao chão. A seguir limpou o nariz com a mão. Tinha a máscara, com aspecto mais do que usado, pendurada de lado no pescoço. Se já em situações normais, isto enojaria, imagine-se agora na situação que atravessamos. 

Por tudo isto, passei o dia quase todo em casa. Uma coisa é estar no campo, à solta, em liberdade. A natureza é limpa, é pura. Outra coisa, oposta, é a cidade. Faz-me muita impressão. Penso: basta que uma pessoa aqui esteja contaminada para contaminar mais um magote de gente. Muita proximidade, muito descuido, muito à-vontade, muita inconsciência. Ou irresponsabilidade. Nem sei. 

Tempos difíceis. Por um lado a gente quer voltar à normalidade, a gente percebe que o cuidado de muitos é o desemprego de outros tantos, mas pior será se voltarmos aos tempos de Março e a taxa de contágio voltar a estar acima de 1, como já está. Aí será muito mais complicado.

Uma vez ouvi algém dizer que dar uma ordem de confinamento é simples. Não há variantes. Mais difícil é a de desconfinamento controlado e responsável em que cada um interpreta ou obedece como quer e lhe apetece. Ou consoante a sua percepção das coisas.

Mas, enfim, talvez estejamos a começar a aprender a viver debaixo de uma ameaça que veio para ficar, uma ameaça invisível e traiçoeira. Se calhar, apenas estamos na fase dos baby steps, dos tropeços. Se calhar, temos desculpa. 

Portanto, aqui neste meu ninho bem acima do solo, dentro do céu, ouvindo os gritos e vendo os voos das gaivotas, entretenho-me com o que calha. Estive à janela, sentindo o frescor que sobe do rio, estive a tentar ler, estive ao telefone. E, como habitualmente, partilho convosco um vídeo no qual me revi completamente. Ou melhor, que compreendi. Ou que me deu vontade de ir para lá -- porque é o género de lugar onde me sinto bem.

PS: Também fui à farmácia queixar-me da dificuldade em dormir. Trouxe valdispert. Há anos que ouço falar nesta coisa. Hoje vou experimentar a ver se durmo como dormia antes, quando era tiro e queda.

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Os esquilinhos que andam a brincar com o texto foram fotografados por Dani Connor
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Até já

domingo, junho 28, 2020

Em dia de grandes disrupções, o pobre diabo arranja trabalho
-- tudo ao som do azul e de ti





Este sábado foi-me um dia e tanto. Não é todos os dias que acontecem tantas coisas e coisas tão disruptivas e estruturantes como me aconteceram hoje. Perdoar-me-ão por não as revelar.

Não gosto de falar, em cima do acontecimento, do que me acontece, em especial quando são coisas mesmo relevantes para mim. Poderei apenas dizer que, por um lado, consumei ainda mais o fecho da porta que no outro dia fechei. Por outro, dei um novo, grande e decisivo passo na minha vida. Avizinham-se tempos de muita agitação, certamente muito trabalho. Terei que descobrir em mim um poço sem fim de energia (e, logo agora, que me sinto tão sem energia). Mas serão também tempos de grande expectativa, de recomeços, de vida nova. E isto a nível pessoal. E, a nível profissional, também.

Há bocado, por vídeochamada, ligou-me um dos meninos. Com mais uma ideia. A desafiar-me para outra novidade. Digo que não, não e não. Isso não. Tanta revolução na minha vida e ainda agora também mais essa? Não, não e não. Mas as tropas vão-se movimentando, vão querendo preparar-me psicologicamente para mais essa. Mas a essa resisto. Não pode. Contudo qualquer coisa me diz que o caminho se está a formar para que acabe por ceder -- embora mil soldados, dentro de mim, estejam em guarda para defender a minha vontade de não.

Há bocado também os meus filhos estiveram a trocar mensagens comigo e um com o outro: mais ideias, novos desafios. Com esse alinho mas está envolto em dificuldades que, neste momento, não sei como resolver. Nem eles. No entanto, acredito que a luz se há-de fazer. Só não sei é como é que consigo acomodar tanta coisa na minha cabeça.
E só sei que espero conseguir dormir até ao meio-dia a ver se descanso. Preciso de descansar. Preciso de não ter nada que fazer, ninguém a acordar-me, compromissos em cima de compromissos, horários a cumprir, tarefas a fazer. Por exemplo, ir ao supermercado. Perto da hora de almoço fui ao supermercado. Um carrego. E o protocolo de limpar, resguardar, não usar logo. E o calor e o incómodo da máscara. Tudo coisas que me fatigam demais.
Ah, e aconteceu outra coisa. E é das importantes, devia ter-me lembrado de a contar logo á cabeça. É que sou capaz de ter descoberto o lugar onde, um dia que tenha tempo, me sentarei a escrever. E essa perspectiva enche-me de impaciência. Parece que mal posso esperar para explorar essa hipótese, para testar se resulta. 
Penso, por vezes, que ando a alimentar uma ilusão e que vou inventando pretextos para a manter como ilusão nunca posta à prova. Mas, de repente, neste tornado de revoluções que, por um lado, desabam sobre mim e, por outro, loucamente procuro, parece estar a desenhar-se o lugar perfeito para materializar essa ilusão. Parece daquelas coisas. Quase como se um passarinho viesse a voar e, de repente, pousasse junto a mim e cantasse para me dizer: é este o teu lugar. Piu-piu.
Tirando isso, nada mais.

Só consegui almoçar já passava das quatro da tarde, já estava quase a cair para o lado. E só consegui jantar depois das dez da noite, varada de fome e perdida de cansaço. Agora são quase três da manhã. A casa está silenciosa. Tenho uma pequena coluna a rodar e a fazer frio na minha direcção. Sinto-me bem.

Como não vi notícias, fui ver se as havia. Parece que não. Só coisas sem alma ou frescura. Azedas de velhas. Azeredas de tancos. Não há pachorra.

E estranho que continue a ser dado palco a um certo correio-manhãzoso, um papagaio bem falante que para aí anda com bué de upa-lá-lá de populismo. Parece que organizou uma espécie de manifestação. E, em vez de ser ignorada, foi noticiada. Presumo que tenha sido uma vacuidade disfarçada de qualquer coisa mas, sinceramente, é tema que não me assiste. Animadores de rua ou actores de stand up para mim têm que ter mais do que apenas vontade de sê-lo. Se tiverem graça presto-lhes atenção. Se não, passo ao lado. Se, em cima da falta de graça, forem trafulhas, intelectualmente desonestos e meros vendedores de banha da cobra, então, faço tudo para passar bem ao largo. Tenho mais que fazer do que atirar pérolas a porcos.


E agora que aqui trouxe obras de Fausto Zonaro ao som de Blue and You pelas The Webb Sisters, vou pregar para outra freguesia, deixando-vos com um vídeo que francamente me deixou com um big smile interior. Quando é que alguém se lembra de organizar uma manif cheia de gags de chorar por mais, de patinhos, pombinhos, gargalhadas, cambalhotas, alegria e sonho? Bem, agora com esta coisa da porcaria do corona se calhar não dá. Ou talvez pudesse dar se alguém puxasse pela cabecinha, em especial pela que supostamente tem neurónios.



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A si que aí está desse lado desejo um feliz dia de domingo. 

sábado, junho 27, 2020

Tempos de mudança + a casa delas





Pode o mundo não mudar para a humanidade mas para mim, que sou uma mera e simplória versão feminina do manuel germano, ele tem mudado. Ele, o mundo, bem entendido. Ah, se tem. Eu já tinha aqui falado. Quando a coisa dá em mim nem vale a pena eu lutar. Só tenho é que abrir a janela e pôr-me quieta que a ventania vai entrar e fazer a sua revolução.

E fez mesmo. Um santo dia levantei-me e pensei: vou ligar e dizer que sim. E foi o suficiente. Daí para cá tem sido um torvelinho. Melhor: um torvelhão. E um dia desta semana, depois de algumas aproximações, sentei-me eu de um lado e outro do lado contrário e cada um deu o seu melhor. Mano a mano. Chegámos ao fim e dissemos: está feito. Do lado dele ainda sujeito a aprovação. No dia seguinte ligou: aprovado. Depois outro a ligar. Conversa, muita conversa. A envolver tudo em celofane e piropo. Tudo desnecessário. Já não estou nem aí. Esta sexta-feira a coisa consumou-se. Magno evento, magno anúncio, magnos encómios. E eu, por dentro, 'está bem, está'. Depois ainda outras reuniões e a seguir telefonemas e mensagens. Mas parece que já não é comigo. Não que não sinta qualquer coisa. Sinto. Qualquer coisa. Qualquer coisinha. Mas faz parte, tenho qualquer hoisa de humano dentro de mim. Ou será que é de germano? 

É aquilo de fechar a porta. Em mim estas situações são assim mesmo. Fecho, está fechada. Para todo o sempre. 

Ou seja: dentro de mim, já estou no day after.


Um novo desafio, uma nova vida, um salto no escuro, um certo temor perante o desconhecido, um certo receio de não conseguir, o ser incapaz de pré-definir um guião, o querer entrar assim, a tactear, uma imersão a pleno. Mas estou sem pressa. Parece que sinto que esta nova missão é apenas o in between para uma mudança ainda maior que, dentro de algum tempo, me abençoará. O meu marido não acredita. Diz que não tarda vou estar é de manhã à noite, empolgada, ao rubro, a mais de cem por cento, a moer a cabeça aos outros. E eu acredito. Ele sabe e eu sei que, quando me entrego, é sem meio termo. Não conheço meio termo. É tudo ou nada. E o tudo é um tudo exponenciado tal como o nada é o nada mais absoluto.

No dia em que a coisa se consumou, disse-o à minha mãe. Não se admirou, disse que, nessa manhã, tinha ouvido o horóscopo e que era isso que dizia: mudanças, revoluções. Diz que pensou: lá vai levar a dela adiante. E levei. É isso que todos os horóscopos andam a dizer. Ela ouviu na televisão, eu vi na Madame Figaro e na Vogue. Até faz impressão.


Mas isto das mudanças não se fica por aqui. Fui tomada por uma vontade indomável de vida nova. E é em toda a linha. Do outro processo que está em curso a seu tempo falarei. Só falo quando as coisas se concretizam. Antes não falo: não me traz sorte falar nas coisas quando ainda não se consumaram. E não é que seja supersticiosa. Não sou em geral. Mas sou em particular. E este é um desses particulares. Mas, se se concretizar (e há-de concretizar, ah não se não vai), vai ser uma baita mudança. Caneco, como eu a desejo agora que a vontade dela se apoderou de mim.

Vida nova. É o que me apetece. Nova, nova, nova. Para a revolução ser ainda mais completa só falta mesmo é pegar na tesoura e cortar o cabelo mais curto, quase curto, um corte incerto, cabelo espetado, ponta aqui, ponta acolá, e pintá-lo de louro claro, claro, quase platinado. Ou de azul. Mas esta do cabelo só quando deixar de trabalhar e ter funções como tenho agora em que tenho que fazer de conta que sou uma pessoa muito respeitável. Não é que deixasse de sê-lo mas há gente burra que faz juízos primários e não entenderia bem ver aparecer numa reunião uma pessoa com o cabelo assim.


No outro dia o meu marido, já nem sei a que despropósito, disse: será que qualquer dia vamos perceber que estamos a ficar velhos? Não gostei. Bolas. Isola. Disse-lhe: fala por ti. Eu não. Eu sinto-me é a renascer, a começar de novo. Ele não me respondeu. Somos diferentes. Para ele a vida é coisa contínua. Para mim não, Para mim tem que haver disrupção. O apelo pelo desconhecido é forte. O prazer em ir à descoberta é uma constante dentro de mim. Só gostava era de ser capaz de ainda mais: de deitar quase tudo fora e rodear-me apenas de quase nada e esse quase nada ser tudo novo, coisa oposta ao que agora existe.

Mas, enfim, é isto. E isto, estranhamente, este despir de pele, esta ecdise, anda a deixar-me exausta. Chego ao fim do dia e estou exausta. Depois, chego à cama, tantas coisas na minha cabeça a fervilharem, perco o sono. Vai-se o sono. Mal durmo. Uma coisa horrível. A noite passada derivei para outro lado. Nunca quis ter um barco. O meu marido sim. O pai e um dos tios tinham um, muito grande. Eram os filhos que o usavam. Eu detestava: aqueles peões a meio do rio, aquela loucura dos cavalinhos, o barco a saltar em cima das ondas que provocava, a despesa e o risco que aquilo era. Felizmente, acabaram por se deixar disso. Fiquei escaldada. Mas a noite passada, vá lá saber-se porquè, até me deu para pensar num barquinho pequeno só para passar o dia sobre as águas, uma pequena cabine para proteger do sol, da chuva, do vento. Levar um livro. Depois pensava: talvez pescar. Mas logo me ocorria: e se ali há metais pesados ou outros resíduos e os peixes não são bons? Em vez de dormir, perdida nestes pensamentos vadios. Só visto.

Bem. Já chega de conversa à toa. Vou-me. Com vossa licença.


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Mas, antes de me ir, deixem que partilhe dois vídeos bons de ver e ouvir. Patrícia Pillar e Malu Mader mostram parte das suas casas. Gostoso de conhecer e de gostoso de revê-las.




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Obras expostas:

John Singleton Copley, ALICE HOOPER
Nicolaas Verkolje, LANDSCHAP MET TWEE NIMFEN
Angelica Kauffman, RINALDO AND ARMIDA
Élisabeth-Louise Vigée-Le Brun, LADY FOLDING A LETTER
Heinrich Kühn, STUDY IN TONAL VALUES II

ao som de The Webb Sisters - If It Be Your Will  ft. Leonard Cohen

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E um feliz sábado para si que está aí, lendo o que para aqui vai.

sexta-feira, junho 26, 2020

Quase tão bom como o guru...? Ou quase a conseguir ultrapassar o guru...?
Venha o diabo e decida.


Vê-se e mal se acredita. Aliás, só se acredita porque se tem assistido à trajectória tendo-se chegado já àquele ponto em que se admite que tudo é possível. 

"Queria aproveitar o Gilson aqui. Sei que muitos programas de rádio tocam a 'Ave Maria' a esta hora. Queria então prestar uma homenagem a todos os que se foram vítimas do coronavírus e pedir para o Gilson tocar a 'Ave Maria'", disse o chefe de Estado. 
Com os 1.141 mortos registados nas últimas 24 horas, o Brasil totaliza agora 54.971 vítimas mortais devido à covid-19, segundo o Ministério da Saúde do país. Em relação ao número de infetados, o Brasil contabilizou 39.483 novos casos, num total de 1.228.114 pessoas diagnosticadas com o novo coronavírus.


Como foi possível chegar-se a isto?
[Trump, a ciência e o coronavírus]


Quando se diz mal deste, daquele e do outro pensemos que há uma linha encarnada que devemos garantir que nunca seja ultrapassada.

É que há por aí muito boa gente que gosta muito de dizer mal só por dizer e que não percebe que, com essa atitude acéfala, está a abrir a porta a ignorantes e populistas. É bom ter sempre presente que, por muita graça que se ache a quem se faz arauto de uma veemente e permanente mensagem de bota-abaixo, pode muito bem acontecer que, quando se der por ela, se tenha, em lugar de poder, uma cavalgadura, um ignorante, um narcisista.

Ora se aturar um narcisista é um calvário que não se deseja nem ao pior inimigo, aturar um ignorante é de deixar quem tenha dois neurónios à beira de um ataque de nervos e conviver com uma cavalgadura é coisa que leva qualquer alma ao desespero, imagine-se o que é um país governado por uma besta quadrada que junte, em si, a proeza de ser simultaneamente narcisista, ignorante e cavalgadura.

Conheço pessoalmente algumas amostras disso mas, felizmente, não lhes deu para a política nem tiveram arcaboiço para chegar a um ponto em que pudessem desgraçar a vida de muitas pessoas. Mas quando, em cima disso, têm dinheiro e tiveram a alavancagem da comunicação social, então temos case studies como o de Trump e ou, em versão rasca, Bolsonaro.

Governar um país em situação de pandemia pede estadistas a sério. Mas o merdinhas cabeçudo com totós cor-de-rosa apanhou os Estados Unidos com o Trump a cavalo no povo americano tal como o Brasil com o Bolsonaro (isto para citar os casos mais mediáticos ou de maior dimensão).

O Guardian fez um vídeo que quase pareceria coisa do Vargas se fosse por cá, uma compilação de absurdos tão absurdos que quase parece coisa para rir. Mas não é para rir, não.

How Trump has defied science on coronavirus


quinta-feira, junho 25, 2020

Breathe, Sergei, breathe


Esta coisa da pandemia tem que se lhe diga. Os que acham que alguma coisa tem que mudar baseiam-se na constatação de como tudo mudou num abrir e fechar de olhos. Os aviões pararam, as autoestradas esvaziaram-se, os centros comerciais e hotéis fecharam, em média o consumo caíu cerca de oitenta por cento e, de uma maneira ou de outra, meio mundo ficou fechado em casa enquanto os invisíveis, os sem voz e os precários mantiveram as cadeias de abastecimento e as cidades a funcionar (e, portanto, garantiram que nada faltasse aos outros).

Podemos dizer, como os cépticos: não mudou nada, continuamos tão estúpidos como antes. E até pode ser que continuemos tão estúpidos como antes mas lá que o mundo mudou, mudou. E pode ter acelerado a mudança em relação ao que éramos no mau sentido porque já provámos que o medo verga o mundo e o deixa à mercê de qualquer coisa -- da vigilância permanente, da total falta de liberdade, da manipulação mais torpe -- mas também pode ter tornado algumas pessoas mais sensíveis à necessidade de preservar e respeitar e adorar a natureza, de olharem para os outros, para os outros que desconhecemos porque os ignoramos.

De certa maneira é como se isto da pandemia fosse um crivo em que a maioria passa pelo ralo e desanda para o esgoto do costume, o esgoto das redes sociais, da futilidade, da maledicência, mas há uma parte que fica, que sobressai, que olha para o mundo de outra maneira.

Como faço parte do grupo dos tontos (leia-se: dos optimistas), ainda estou em crer que algumas coisas boas haverão de emergir da caldeirada geral.

Esta iniciativa aqui abaixo é daquelas que me deixa de sorriso posto, toda crente, desejando ver o que vai sair dali. As grandes ideias são simples, são sempre simples, Esta aqui abaixo tem tudo para vir a maravilhar-me. 



quarta-feira, junho 24, 2020

As três realidades básicas do universo


Por entre tentativas disto e daquilo, quase todas goradas, estive com o Harari ao colo. Estive a tentar acompanhá-lo naquilo da diferença entre cérebro e mente. E estive a ler sobre o nosso desconhecimento sobre tudo isso. Na verdade, fiquei a pensar no total desconhecimento de tudo o que de mais íntimo nos diz respeito. É muito estranho, isso. E é tema que muito me intriga. Diz ele que já estamos na fase em que os algoritmos sabem as nossas preferências e que, se não nos apressamos, um dia serão eles a determinar o que nos é dado a conhecer.

Já estamos quase lá. E mantemo-nos indiferentes a essa evolução do rumo dos humanos. Um dia, talvez não muito longínquo, já pouco teremos daquilo que somos hoje. Se chegarmos até lá, claro. É que pode haver uma pandemia em que o vírus seja menos condescentente que este coroninha tinhoso ou pode o degelo encharcar meio mundo e a outra metada ficar ressequida, com os humanos feitos carapaus secos. 

Mas, até lá, iremos evoluindo no sentido em que agora vamos: cada vez mais fúteis, mais parvos, mais mentecaptos. Vítimas de tudo, reféns de tudo, nomeadamente de tretas como as redes sociais -- e, talvez por isso, narcisistas, burrificados, superficiais. Mas isto já sou, não é ele, que ele é mais contido que moi.

Também estive a ler o que ele diz sobre a preocupação das pessoas com o que acontece depois da morte. E concordo com o que diz. Se as pessoas não se importam em saber o que são antes de morrer, porque se preocupam tanto com o day after? E preocupam-se como se, enquanto estivessem vivas, fossem unas, com uma identidade imutável. Ora se mudamos todos os dias, mudam as nossas células, muda o que as mantém vivas e unidas, muda a nossa perspetiva, muda tudo, porque nos olhamos sem nos vermos como somos, algo em permanente mudança? Mas olhamo-nos como se fossemos calhaus, havendo muita gente que se gaba de, se fosse hoje, faria o que fez há mil anos, da mesma maneira. Pensam que mostram coerência. Contudo, o que eu ali vejo são anos de aprendizagem desperdiçados. E nem se dão conta da burrice que revelam, E estas apreciações também já são de minha lavra. 

E li sobre outras coisas mas agora não vos quero maçar mais. Tinha pensado em transcrever algumas coisas mas estive aqui de roda de outra coisa e já é tarde demais para me armar em copista. Ainda se, com a mente, eu pudesse seleccionar um trecho de uma página e, copy paste, pumba para aqui... 

Agora assim, o estado da arte ainda não chegado a esse ponto e tendo que ser à mão, limito-me a esta coisa pouca:

"(...) as três realidades básicas do universo são que tudo está em constante mudança, que nada tem uma essência duradoura e que nada satisfaz totalmente".

A seguir ele explica porque são estas e não outras as realidades básicas do universo mas isso é informação preciosa demais para ser despachada aqui em três penadas, 

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Fotografias de Ren Hang que, como é bom de ver, não tinham nada que ser para aqui chamadas. 
Talvez por falta de inspiração, não me ocorreu nenhuma música desapropriada para aqui colocar

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E tenham uma boa quarta-feira, está bem?

terça-feira, junho 23, 2020

Sobre papagaios, mansos netos e outros que tais


Tenho andado talvez um pouco mais esgotada do que o costume. Não tenho conseguido responder a mails ou comentários. Tenho pena mas, na verdade, não tenho conseguido. Não pensem que é por falta de atenção ou falta de consideração. Não, é mesmo apenas falta de energia. Chego ao fim do dia e reservo a pouca energia que me sobra para o que aqui escrevo. Estou a precisar de um intervalo, de algum descanso.  Acresce que os meus últimos meses têm sido complexos. Para toda a gente o terão sido mas agora falo por mim. A minha mãe, no outro dia, dizia-me que eu deveria descansar porque tem sido muita coisa. Pois. Convenço-me de que mantendo a máquina em movimento e seguindo em frente tudo será mais fácil e mais leve. Mas a verdade é que o meu sono, sempre tão fácil e reparador, se anda a ressentir. E a minha paciência e tolerância para com gente incapaz também começa a dar mostras de estar a caminho de se esgotar. 

Mas nada que uns dias mais tranquilos e umas noites bem dormidas não resolvam. Portanto, é esperar que, logo logo, volte ao normal (se bem que o normal, com alguma frequência, anda perto disto -- reconheço).

O que sei é que, quando ligo a televisão, como tantas vezes aqui tenho dito, também não tenho paciência.

Prós e Contras sobre o teletrabalho. Achei que iria interessar-me. Mas não. Só levam gente previsível. E eu já não consigo ouvir repetir banalidades.

E, em plena pandemia, a turbamulta na rua, por todo o lado, toda a gente a respirar para cima de toda a gente, a cantar, abraçados, a partilhar copos? Vejo e acho que está tudo maluco e que não há pachorra para tanto irresponsável. Mas, ao mesmo tempo, também não consigo ter opinião bem definida e ser verdadeiramente crítica porque uma parte de mim reconhece que ninguém consegue travar a força das multidões e, quando uma multidão de jovens resolve ir para a rua reivindicar o direito de cagar para o vírus, como saber se estão errados? Se calhar não estão. Se calhar temos que olhar para o estupor do corona de outra forma. Se calhar, a abordagem deve ser outra e não a que o mundo todo tem andado a tentar. Entre a burrice encartada e as cavalices nojentas do Trump e do Bolsonaro e os confinamentos bem comportados dos bons alunos há-de haver uma outra forma, quiçá mais inteligente, para lidar com um merdinhas de nada. Mas quem é que haveremos de ouvir que tenha uma visão fresca e inteligente sobre o tema?

É como o teletrabalho: com quem é que os decisores estão a falar para se aconselharem? Com a gente velha e relha do costume? Não pode ser. O teletrabalho é uma realidade que apresenta muitas nuances e requer muita reflexão. Não pode ser debatida pelos papagaios do costume, gente que apenas quer dizer coisas. Estou farta de gente que fala não para acrescentar novas perspectivas ou para enunciar novas ideias mas, simplesmente, para dizer coisas, para se fazer ouvir. Juro: estou farta de papagaios. Acredito que, às tantas, já nem sabem pensar por si próprias, só sabem dizer o que acham que os outros esperam ouvir.

E quem diz isso diz tudo o resto. De vez em quando um breve poema, uma frase limpída, um sorriso, uma ideia inteligente bastam para salvar o meu dia mas, de resto, parece que o mundo só fala, fala, polui, polui, exibe selfies, põe likes, expõe narcisismos fúteis - e pouco mais. 

Portanto, é com agrado que, ao abrir o YouTube, descubro que me é proposto um vídeo com um casal de papagaios não humanos. Uma graça. Olho e fico sem saber se são papagaios de verdade ou se são bonecos. Seja como for, têm graça e, se forem papagaios de verdade, ainda mais graça terão. Um chamego que fará inveja a muito casal de empalhados que não se riem nem conversam uns com os outros, que não são capazes de um beijinho terno e enamorado nem daquela cumplicidade boa sem a qual nada vale a pena. 



Lá atrás vi um coelho, Como não se mexe, depreendo que não seja de verdade. Mas se estivesse com uma coelha ao lado, em vez do romance dialogante e quase platónico que se vê com os papagaios, estaria certamente a saltar-lhe para cima. Mas também poderiam ser bonecos amestrados. Nunca se sabe. A gente pensa que percebe o que está a ver mas não percebe é nada. Só os tolos acham que sabem tudo. Farta desses justiceiros e mortáguas que ditam sentenças por todo o lado.

Por exemplo, há muitos anos que ando intrigada com aquele senhor administrador da EDP que, ao contrário do Mexia -- que se arma e sempre se armou em apertadinho com veia de intelectual honoris causa --, se mostra como uma múmia a quem o cabelo cresceu durante o exílio na catacumba. É a cara, a pele macilenta, a postura corporal, a roupa larga, a cor amarelada e o insólito corte de cabelo. Tem um nome que é também, todo ele, uma narrativa: Manso Neto. De cada vez que o vejo interrogo-me: qual é a dele? Mas depois deixo para lá. Tenho a sensação que alguém levantou uma pedra e, de lá, saíu aquele zombie. Mas, na volta, é um gestor competente. Diz-se agora que terá corrompido uns quantos, ele e o Mexia-apertadinho. E eu tento imaginar: com um aspecto e uma voz de quem acabou de sair da tumba teria tido a arte de se armar em corruptor? Pois não sei. Só surpresas. Só faltava virem dizer-me que, nas horas livres, o Manso Neto faz um rabo de cavalo, se aperalta a preceito e vai dançar sevilhanas. Um mundo desconchavado este. Parece que nada faz sentido.

Por isso, assim como assim, retiro-me  -- mas não sem antes ver outra vez aquela do papagaio que estava calado, a descansar. Morto, dizia o céptico. Armado em Carlos Costa, diria eu. Que não, dizia o outro.




A todos desejo uma tranquila terça-feira

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PS: Recomendo que vejam os comentários ao post em que falo de Pedro Lima, Anthony Bourdain e outras pessoas bem sucedidas


segunda-feira, junho 22, 2020

Eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir





Para que serve a poesia?, perguntarão alguns. Imagino que muitos tratados já terão sido escritos sobre isso, muitas teses já terão sido expostas enunciando hipóteses, desfiando certezas. Eu não sou de sabedorias ou certezas e, nisto das poesias, sou mais de sensações. Não sei interpretar nem dissertar. Sou mais de gostar ou não gostar, de me soar ou não bem. Os meus instintos prevalecem sobre a razão -- quase sempre na vida e, na poesia, sobremaneira. Tenho que ali sentir uma toada que me toque, tem que haver a elegância da palavra subtil, tenho que sentir que o silêncio predomina, tenho que sentir que há o vagar da destilação gota a gota, e que, do que se vai produzindo, se evola o perfume e a luz dos momentos sagrados.

E, depois de o ler ou ouvir, algumas cordas em mim deverão continuar a vibrar sem perceber que isso acontece porque, sem dar por tal, me reconheci na palavra que me define ou que define o que sinto.


Cada vez estou mais exigente. E nem sei se diga exigente se experiente. Não, experiente talvez não. Talvez mais privada nos meus gostos. Coisas cá minhas. O que dantes me parecia uma combinação feliz de palavras para descrever um sentimento ou uma impressão, agora, muitas vezes, parece-me coisa banal, forjada, forçada, procura de efeito fácil.

Outras vezes, poemas de poetas aclamados que leio em versão portuguesa parecem-me exercícios de escrita descuidada, sem melodia ou emoção, tradução infantil ou apressada, agarrada a uma gramática acéfala. Por exemplo, em geral, não consigo ler poemas traduzidos por Ana Luísa Amaral ou Frederico Lourenço. Dá ideia que traduzem palavra a palavra sem terem a sensibilidade necessária para captar o estado de espírito e a intenção de quem os escreveu no original. Aliás, para não correr o risco dessas desatenções desagradáveis, evito ler poemas em português de poetas estrangeiros. Acho que não há muitos tradutores capazes de me cativarem na tradução de poesia. Talvez haja um ou dois. Casos raros, especialíssimos. Um muito em particular. Not a private dancer, a dancer for love, mas um private translator. É um trabalho de minúcia, de relojoaria, de bordado fino, um trabalho feito com desvelo e em busca da nota perfeita, a nota de som, a nota de perfume.

Pode acontecer que um poema, instintivamente, brote como água pura de entre as pedras e as palavras sejam límpidas e perfeitas. Palavras ditadas por um misterioso deus. Mas pode também acontecer que, depois de desbastada a pedra, haja ainda um fino trabalho de limar, de afagar, de amaciar. O amor dos amantes perfeitos. 


E poetas portugueses, actuais, vivos, também os não há em quantidade. Tenho o privilégio de, com grande assiduidade, ler poemas de um poeta que me encanta: tem um blog e, portanto, não sou a única privilegiada. Apetecia-me puxar para aqui alguns dos seus poemas, tecelagem amorosa, toada cristalina. Mas não o faço. Receio macular a beleza das suas palavras. Ali respiram a luz e o silêncio que habitam aquele lugar. Há nelas uma pureza branca que pousa no meu coração e que, sinto sem sombra de dúvida, ali ficam a cintilar. É o que se espera da poesia de verdade.

E talvez, no fundo, seja isso que faz com que eu goste de um poema -- sentir-lhe a verdade, que é como quem diz as suas vísceras.

E talvez seja para isso que, afinal, a poesia serve: para que nos sintamos felizes, especiais, únicos, por conseguirmos tocar a verdade, essa coisa tão íntima, de outra pessoa.


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Em vez de poemas desse Poeta especial, coloco antes um poema (do qual também extraí o título deste post) de um poeta da língua portuguesa e dito por uma pessoa que o sabe dizer com a contenção e simplicidade de que a poesia precisa:

Ausência de Viniciu de Moraes dito por Marília Gabriela

(...)
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


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Gravuras de Anna Atkins (British, 1799 - 1871) e Anne Dixon (British, 1799 - 1877)
enquanto se ouve Ayub Ogada a interpretar Kothbiro (The Constant Gardener)
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A si que aí está desse lado desejo uma boa semana.
Saúde, paz e alegria.

domingo, junho 21, 2020

Pedro Lima, Anthony Bourdain e outras pessoas bem sucedidas





Não sigo telenovelas portuguesas pelo que o que conheço de Pedro Lima, enquanto actor de novelas, é o que vejo nos pequenos anúncios aos episódios do dia que, de vez em quando, de passagem, apanho. A ideia que tenho é que tem tido sempre trabalho, o que é natural dado ser um homem muito bonito, um galã que dá sempre jeito em qualquer 'peça'. Tenho também ideia de que, volta e meia, o via, sempre sorridente, em actividades daquelas para as quais convidam os actores. Sem exuberâncias mas com afabilidade. Mas não sei, pois, ajuizar sobre o seu talento. Nunca o vi em palco, no teatro, pelo que, também daí, não poderei pronunciar-me. Pessoa que me é próxima conhecia-o do surf mas também apenas hoje soube disso. 

A ideia que tinha dele é que seria um actor sóbrio, discreto, pouco dado a mediatismos. Mas simpático, sereno. Tenho ideia de vê-lo sorridente. Tenho ideia dele com a mulher e com um bando de filhos. Uma família feliz. Um homem bem resolvido.

Soube também hoje dos seus feitos desportivos. Não fazia ideia. Contudo, com aquele corpo é natural que tivesse força e energia para vencer as provas que venceu e que, por outro lado, aqueles músculos tenham vindo da prática continuada de desporto.


Por isso, o espanto ainda foi maior quando li que aparentemente se terá suicidado. A minha filha esteve a mostrar-me fotografias dele no Instagram. Bem disposto, apaixonado, amável, brincalhão. Tentei perceber se o sorriso e a boa disposição seriam máscaras para algum desconforto ou tristeza mas, nas fotografias, não detectei nada disso. A última fotografia mostra-o escultural, pronto para o surf, festejando o regresso à vida normal.

A mesma surpresa senti quando soube da morte de Anthony Bourdain. Gostava muito de ver os seus programas. Irreverente, empático, amante do insólito, curioso em relação ao pouco óbvio. Dizia ele dele próprio ser uma pessoa cheia de sorte: fazia o que queria, quando queria, onde queria, com quem queria. Com amigos em todo o lado. Um homem de aspecto possante, viril. Uma pessoa absolutamente bem sucedida, conhecida em todo o lado. Brincalhão, bon vivant.

Até ao dia que se soube que, ao contrário do que parecia, era tímido, frequentemente inseguro e com um fundo depressivo. Há um vídeo feito pouco antes de ter decidido pôr fim à sua vida: nos copos com os amigos, divertido. Certamente encobrindo o que lhe ia na alma.

Estava a escrever e a pensar em Bernardo Sassetti, cuja morte também muito me impressionou. Não sei se caíu sem querer ou se também não suportou mais. Mas sei que me custou muito.

Em tempos o vocalista de uma banda suicidou-se e a mulher mostrou fotografias em que ele aparecia pouco antes, com ela e creio que com os filhos. Estava sorridente, parecia feliz. A mulher, em sofrimento, perguntava: vendo-o assim, rindo, em família, quem é que poderia adivinhar o que estava prestes a acontecer?

Não sei causas. Não sei o que se passou com o Pedro Lima. Não sei se foi suicídio (embora as notícias o indiciem) e, se foi, se foi por depressão, problemas financeiros ou outros. Sei que, a ter sido suicídio, deve ter sido pela mesma razão que leva alguém -- mesmo as pessoas mais talentosas, na flor ou a meio da vida -- a pôr termo à vida: não aguentam mais. Quem está de fora não percebe: mas não aguentam mais o quê? Com a vida quase inteira pela frente, amados pela família e amigos, respeitados pelos conhecidos e pelo público em geral, como não aguentam mais? O que lhes falta para que, como a maior parte das pessoas, consigam superar algum constrangimento, algum escolho, alguma ameaça ou temor? O que lhes falta, se os conhecemos tão talentosos e se os sabemos tão especiais?

Não sei. Talvez lhes falte a coragem para pedirem ajuda.

A minha filha referia o caso de um nosso conhecido: pessoa descontraída, praticante de desporto, do mais divertido que há, profissionalmente bem sucedido, na altura com uma namorada linda e amorosa, com uma família que o adorava, com um nível de vida a que nada faltava. E, no entanto, quem poderia dizer que, contra toda a lógica, viesse a ter um problema de droga? Quem poderia dizer que gastava tudo o que ganhava e se endividava por todo o lado, junto de familiares, amigos e sabe-se lá de quem mais, sempre arranjando desculpas convincentes, vindo a ter sérios problemas por não poder pagar as dívidas que ia acumulando? Quem poderia antever que viria a deixar o trabalho e ter que ir viver para um lugar recôndito não apenas para ver se se curava como para os traficantes e demais amigos e inimigos dessas andanças deixassem de persegui-lo? E, no entanto, ninguém, ninguém mesmo, nem mesmo os mais próximos, sequer suspeitaram do que estava a passar-se.

Quem vê caras não vê corações, quem vê sorrisos não sabe o que se esconde por debaixo. A mente por vezes cava sulcos ou abre buracos negros de que é difícil sair. 

Nestas histórias não há, muitas vezes, fins felizes. Há desistência. E muita dor e perplexidade por parte dos que ficam.  E se há alguma coisa que se possa retirar de situações que se aproximam do limite é que há que lhes prestar muita atenção para tentar ajudar. Não é fácil. Quem está com depressões profundas ou quem tem problemas muito sérios frequentemente não quer preocupar a família e os amigos pelo que não quer assumir aquilo por que está a passar, prefere disfarçar, prefere esconder as trevas que os assombram, mostrando uma alegria que é apenas aparente. Estas coisas deveriam ser mais faladas para que as pessoas que sofrem em silêncio se encham de coragem e peçam ajuda, para que pensem um pouco nelas e não apenas em poupar os outros.

A vida breve dos que não aguentam mais deveria ser uma vela acesa na opinião pública para que nunca nos esqueçamos de fazer sentir aos que precisam de ajuda que devem pedi-la: por eles e por aqueles que os amam.


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Pinturas de Mark Rothko que pintou as trevas antes de nelas mergulhar, 
com acompanhamento de Noite por Bernardo Sassetti

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Desejo-vos um bom dia de domingo

sábado, junho 20, 2020

Nem perfumes, nem relógio. Brincos e vai lá, vai.





Quando aqui chegamos a primeira impressão quando a porta se abre é o cheiro. Melhor: o perfume. Não sei definir que perfume é. Sei que a sensação que desperta é boa. Tudo me acolhe. A casa fechada, silenciosa, em paz, na penumbra, perfumada. Muito agradável. Do lado da sala, a janela, virada a oeste, deixa entrar uma luz dourada que a atravessa e chega até ao hall. Umas boas vindas douradas e perfumadas. Digo que cheira bem e o meu marido diz que é bom regressar aqui. E é mesmo. Quando chego ao quarto da minha filha, e que agora é o meu quarto de vestir, o perfume é mais evidente, um mix de perfumes suaves, bons. Desde o dia 13 de Março que não me perfumo. É das coisas que, de vez em quando, tenho saudades. Brincos ainda ponho. Não consigo estar numa vc (videoconferência) sem me arranjar. No outro dia, o bebé ficou espantado: porque é que estás assim? 'Assim' era com um tonzinho nos lábios, um framboesa natural com um leve brilho, um tonzinho nas pálpebras superiores para ficar um smoky ligeiro. Expliquei: vou ter uma reunião. Ele ripostou, como que a corrigir-me: uma call. Pensei que, para ele. talvez não fizesse grande sentido mas tenho para mim que, em contexto profissional, o dress code não deve ser exactamente o 'trazer por casa'. E, portanto, visto-me, penteio-me, ponho uns brinquinhos, passo um brilhozinho nos lábios, uma sombra, quase nude, nos olhos. Talvez seja quase como uma barreira. Esta não sou eu tal e qual, esta sou eu com alguma distância. Talvez um dia destes passe a pôr um esguinchinho de cheirinho bom.


Aconteceu uma coisa, esta tarde. E vou confessar porque isto é anónimo. Tive uma vc bem chata. Mais do que chata, estúpida. Inútil. De faz-de-conta. Sendo o assunto importantíssimo, por não o saberem agarrar, optaram pelo do costume: consultoria e dinheiro para cima. A acompanhar, pessoas que não pescam boi do assunto. Portanto, tudo aquilo é uma fantasia. O tipo de coisa que me tira do sério, que me encanita, que me dá brotoeja, que faz com que eu fique à espera que alguém 'make my day'. Mas desta vez deu-me para outra coisa: para não me chatear. É uma premiêre mas acho que está na altura de começar a dar descanso à consciência. Reunião com magna participação. Não sei quantos mas, no mínimo, uma dúzia. Por não saberem o que dizer, puseram o pobre do consultor a fazer toda a despesa. Aos poucos, todos foram retirando a imagem. Nem som nem imagem de vivalma excepto do pobre coitado que, com voz monocórdica e sem qualquer interrupção dos demais participantes,ia desfiando os slides. Enquanto isso, eu ia trocando mensagens divertidas com um outro que também estava a (não) participar e que decidiu, meanwhile, tratar de assuntos mais concretos. O meu marido foi-se sentar ao meu lado, na mesa, a trabalhar. Volta e meia eu ia conversando com ele. Ninguém na reunião me via, ninguém me ouvia. Às tantas a reunião acabou sem que se tivesse percebido o que é que ali se tinha passado. Acabou quase meia hora mais cedo. Só abri o microfone para dizer adeus. E disse ao meu marido. Para a próxima, sento o bebé no meu lugar e, no fim, abro a câmara e aparece ele. O meu marido disse: ou eu. Fartei-me de rir. Havia de ter piada, no fim da reunião, em vez de mim, aparecia ali um ilustre desconhecido. A seguir ele sugeriu outra coisa mas essa já eu não posso dizer aqui, só posso dizer que haveria de deixar toda a gente de boca aberta, sem reacção. Imagino eu.


Bem. Voltando aos perfumes. Sempre que aqui estou, olho os meus perfumes com alguma saudade. Também nunca mais pus relógio. Nunca saía de casa sem relógio. Contudo, ele não funciona bem. Está sempre com horas de atraso. Em tempos, longínquos tempos, um colega dizia-me: 'Usa-o como uma jóia, não é?'. Sim, uma jóia. Não é apenas a estética, é também o peso, a habituação àquela presença elegante e silenciosa ali no meu braço. 

Nas vcs verifico que a grande maioria dos meus colegas ou das pessoas com quem me encontro por esta via estão em casa. Alguns voltaram ao escritório mas rapidamente retornaram a casa. Não encontram grande vantagem em deslocar-se até ao escritório. Claro que os operacionais estão no terreno, sempre estiveram. Mas a malta que pode estar em casa -- a trabalhar, a consumir mais água, mais electricidade, etc, e a proporcionar ganhos às empresas (ouviu senhor comentador que acha que se devem cortar os ordenados aos trabalhadores em teletrabalho?) -- opta por estar em casa.


Mas há excepções: dois colegas, ambos com várias crianças pequenas em casa e ambos quase doidos com isso, optaram por fazer meio-dia no escritório. Ambos dizem que precisam de desanuviar. Acredito.

E eu estou para aqui a escrever mas, como deve dar para perceber pois notoriamente não estou a dizer coisa que avance a direito, estou francamente cansada. Tirando aquele bocado daquela reunião super-importante em que descansei a mente, tive várias outras reuniões e vários telefonemas e muita outra coisa e tudo junto tornou-se demais. Cheguei ao fim do dia exausta. Agora tenho os dedos em roda livre, vão-se esticando e encolhendo, saltando e dançando e eles lá sabem por onde anda. Escolhem as teclas e, por sorte, o que sai são palavras que existem. Não tenho ascendente sobre os meus dedos, nem quero. Estou out.

Fui.
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Christiane Karg interpreta Felicissima quest’alma de Handel
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Um bom sábado

sexta-feira, junho 19, 2020

Sem fantasia




Conhecer-te-ia? Saberia reconhecer-te quando és uma pessoa normal, feita de carne e osso e não apenas de palavras? Se o acaso da vida nos pusesse frente a frente -- e será que nunca nos pôs? -- saberia eu quem tu és? O teu olhar será igual aos teus silêncios? As pausas ao falares serão idênticas às palavras que não dizes quando escreves?

Sabes? Quando me imagino, não estou. Quando me imagino, estou a chegar. Eu a chegar e tu a apareceres ou eu a chegar e tu à minha espera, alguém sentado à minha espera, sorrindo à minha chegada, sorrindo, de surpresa, ao me veres. Quando me imagino, sou o vulto que chega sabendo que vai partir mas fazendo de conta que não. Não, fazendo de conta não. Não me lembrando de que terei que partir. Não imagino, pois, o momento da partida. Quando me imagino ainda estou. E tu estás a olhar e a sorrir para mim. A atravessar uma rua, sentados à volta de uma mesa, olhando-nos junto a um elevador. Momentos assim. Fragmentos. Peças de um puzzle inexistente.


Se me imaginar sentada à tua frente, talvez numa esplanada ou talvez sentada ao teu lado na muralha do rio, talvez sentada na relva junto ao tronco de uma árvore, de que falaríamos? De livros? Dir-me-ias poemas? Ou apenas respiraríamos em conjunto, como se não quiséssemos poluir o momento com palavras talvez pouco exactas? Ou experimentaríamos aquela inexplicável familiaridade que acontece quando duas pessoas se conhecem de outras vidas, de outros tempos? Ou sentiríamos antecipadamente as saudades de talvez nos não voltarmos a ver?

Olha: se fosse agora, estaríamos com máscara? O que achas? Eu acho que não. Não, não estaríamos. Não poderíamos desperdiçar a breve e única possibilidade de sentirmos a proximidade, de ouvirmos a voz sem filtros, o rosto inteiro. ignoraríamos o distanciamento, esqueceríamos a realidade.

Escuta: há quanto tempo nos conhecemos? Desde há uns anos? Desde sempre? Que peculiares e insólitos laços invisíveis são estes que nos unem? Ou não há laços nem estamos unidos e isto são apenas palavras desprovidas de sentido? O que dizes? Aposto que não dizes nada. Eu também não digo nada, prefiro o mistério, o infinito enigma. Desvenda-o se quiseres. Desvenda-me se fores capaz.


Mas se, por um instante, eu conseguir acreditar que existe uma ínfima e absurda probabilidade de um dia te materializares junto a mim e que, apesar de ser aburda a probabilidade de isso acontecer, nos reconheceríamos mesmo, o que te diria?

Já sei. Talvez te pedisse: diz-me uma música que eu ouça quando quiser pensar em ti. Ou: diz-me um livro em que eu pense quando quiser pensar em ti. Ou: conta-me uma história que eu recorde quando quiser recordar-me de ti. Ou: não digas nada para eu respirar o teu silêncio quando o silêncio sem ti for um vazio grande demais para mim. Ou: olha os meus olhos para eu ficar com o teu olhar para sempre dentro de mim. 

Nada explica o que não tem explicação. As palavras são disfarces, são refúgios, subterfúgios, armadilhas, recantos, segredos, mentiras, inocências, fantasias, doçuras, gume, afago, convite, sonho, sobressalto, simples conjuntos de letras. E os afectos são abstracções. E o resto é espaço que flutua em nossa volta.

Por isso, de novo te pergunto: se te encontrasse, reconhecer-te-ia? Reconhecer-me-ias? Os nossos corpos reconhecer-se-iam? Fora as fantasias, quererias ter-me junto a ti? Quereria eu ter-te junto a mim?

Ou não existes?
Se calhar, não.
E eu? Será que existo?
O que achas?

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Como é bom de ver, pinturas de Chagall

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E uma bela e happy friday a todos vós