quinta-feira, janeiro 31, 2019

Jardins e suspiros





Tanto trânsito, tantos acidentes. A grande e bela cidade tem isto de mau: muitos carros em circulação. E, quando vem a chuva, vêm os acidentes. Hoje passei por vários. Felizmente, não vi feridos. Num deles, dois carros amachucados e uma mota literalmente desfeita. Impressionante o estado em que estava a mota. Mas não havia ambulâncias, apenas pessoas com coletes, trocando informações. Por isso, porque olho e não vejo sofrimento, não me compadeço. E repare-se que digo que olho não porque me detenha a olhar, empatando ainda mais o trânsito, mas porque, dada a redução de vias, quem conduz não tem outro remédio senão ir a passo. E o que acontece é que uma pessoa, às tantas, só quer é poder chegar ao destino a tempo e horas e já fica é furiosa por não o conseguir, enredada naquele horrível pára-arranca. Quer-se lá saber se é só chapa ou se algo mais, quer-se é passar ao largo e seguir viagem. E digo isto com total franqueza, sabendo que pode parecer insensibilidade, porque a verdade é que tanto tempo perdido todos os dias já nos torna impacientes, indiferentes. E, no entanto, quem se vê metido nesses assados também não tem culpa, não o faz de propósito.


Naquela altura em que parecia que tinha uma nuvem negra a pairar em cima de mim, maçadas e pressões por todo o lado, na mesma semana bateram-me duas vezes por trás, escaqueirando-me o carro. Numa das vezes foi de tal forma que o meu carro saltou e foi espetar-se no da frente, ficando o carro também espatifado à frente e até de lado, tal a violência do impacto. A seguradora chegou a equacionar perda total. Em qualquer das vezes eu estava parada. Em qualquer dos casos, quem me bateu, fê-lo por distração. No primeiro caso, o rapaz viu abrir o verde para a fila do lado e pensou que era também para ele, avançando à confiança. Três dias depois, foi um homem de uns cinquenta e tal anos que, passado um bom bocado, quando conseguiu sair do carro, apenas me disse: há dias em que uma pessoa não devia sair de casa. Pediu-me muita desculpa, perguntou-me várias vezes se eu estava bem. Estava enervado, preocupado. Tinha os óculos partidos, a cara e a camisa cheias de sangue, parecia ter o nariz partido. Presumo que, com o impacto, tenha disparado o airbag e lhe tenha feito todo aquele estrago. Não consegui perceber como foi possível aquilo. Estávamos parados e, de repente, o carro veio bater-me com aquela inexplicável violência. O do carro da frente também estava espantado com o que tinha acontecido mas o causador não se explicou, apenas pediu muita desculpa, aparentemente também sem perceber o que lhe tinha acontecido. O que sei é que durante uma meia hora ali estivemos a atrapalhar o trânsito e a atrasar a vida a muitas dezenas de pessoas. Por acaso, agora estou a lembrar-me que nem me lembrei de vestir o colete. Aliás, estava muito vento e os papéis voavam todos. Uma chatice. Quando liguei ao meu marido e lhe disse: 'Bateram-me outra vez' ele fez um tom de voz preocupado, como se fosse o cúmulo da pouca sorte, como se ficasse receoso do que poderia vir a seguir. Como não sou fatalista, não me preocupei demais, fiquei foi arreliada por tanta maçada na mesma semana.


Depois de almoço fui a um sítio sem estacionamento próprio mas com um parque público subterrâneo ao pé. Pois estava completo. Tive que ficar à espera que um carro saísse para que a cancela levantasse. A seguir, tive que dar várias voltas, em vários pisos, até encontrar o lugar vago.

Imagino que quem me lê, tendo a sorte de viver numa terra pequena onde se pode ir a pé para o trabalho, onde, querendo usar o carro, há sempre onde estacioná-lo, nem consiga perceber o que é viver assim, gastando, em média, cerca de três horas por dia dentro do carro.

Há vantagens, claro que há. Há a possibilidade de ter acesso a muitas coisas boas, interessantes. Ainda hoje. Gostei muito. Não é todos os dias que se tem uma sorte destas.

Mas a verdade é que chego a casa, chego aqui ao meu sofá, e só tenho vontade de me evadir. Não consigo falar de temas românticos, não consigo ter vontade de falar de política, não consigo pensar em assuntos com alguma substância. Só me apetece ver vídeos tranquilos, jardins, bailados, ouvir sonetos, sei lá.


Passa da meia-noite, vou ainda fazer um bocadinho de tapete que só eu sei o que vai ser este dia e, se não desligo, se não esvazio a cabeça para acordar brand-new, não vou ter as asas soltas, os pés decididos a descobrir e a fazer caminho, os braços fortes para afastarem todo o mato que se me atravesse, todos os escolhos, a cabeça arejada, os olhos limpos para verem ao longe e pacientes para verem ao perto. Por isso, não levem a mal que me ponha aqui, sossegadinha da vida, a ouvir umas musiquinhas boas, umas boas pianadas, a olhar o verde da natureza, a descansar a alma. Vou buscar um soneto à toa sem querer saber do que diz, só para escutar a beleza das palavras, vou escolher um bailado solto, um jardim no meio da natureza. Fiquem comigo, está bem?.








Be happy. 
Be lucky.

quarta-feira, janeiro 30, 2019

Conheça Steven Pruitt aka Ser Amantio di Nicolao.
Uma pessoa extraordinária.
Uma das 25 pessoas mais importantes na Internet





De vez em quando sou surpreendida com a minha própria surpresa pois ela não teria razão de ser se eu fosse mais atenta, mais desperta para o que me rodeia. Percebo, então, como é absurda a minha ignorância. É que a ignorância mais absurda é aquela a que só os verdadeiramente ignorantes acedem, aquela ignorância que só existe porque os muito ignorantes nem da sua ignorância têm consciência. Convivem com ela com a displicência dos mentecaptos.
Como se um dia percebesse que ando de pé porque ando em cima das pernas e ando em cima das pernas porque elas têm força e maleabilidade para se movimentarem comigo em cima. E, no dia em que percebesse esta banalidade, percebesse também a minha anterior desatenção, estúpida, incompreensível.
Bem, pode o exemplo ser também absurdo mas é o que é. Um ignorante até para metáforas é limitado.

Isto porque consumo a wikipedia como gostava de poder comer pãezinhos quentes: a toda a hora. Se quero saber quem é um desconhecido ou um conhecido das outras pessoas mas mal conhecido por mim, vou à wikipedia. Se quero recordar algum conceito mais escuso da física, vou à wikipedia. Se quero saber de obras de um escritor ou cineasta -- ou mil outras coisas -- vou à wikipedia.

E isto como se a wikipedia fosse coisa de geração espontânea e, ao mesmo tempo, coisa científica, hiper-validada e super-editada.
Sou agnóstica: respeito as coisas distantes sem as querer perceber. Deixá-las lá onde estão, indiferentes à compreensão. Sou assim. Com deuses, com o milagre da natureza, com a magia da inspiração e da beleza. Com o mar. Com uma pessoa a nascer de dentro de outra pessoa. Com a generosidade absoluta. Com a intuição aguda, incompreensível. Com o amor louco. Com o princípio dos tempos. Com a memória que perdura apesar da ausência.
Agnóstica com tudo o que me transcende.
Por isso, consumindo a wikipedia a toda a hora, nunca me tinha ocorrido a pergunta óbvia: como aparece feita? 


Tanta gente a trabalhar nela, certamente a toda a hora, por vezes logo em cima do acontecimento, e eu sem me ocorrer a curiosidade óbvia: quem escreve os artigos? quem os actualiza? são pessoas de verdade? desocupadas? sábias? ubíquas?

Pois bem. Hoje uma surpresa: há um homem que sozinho já editou milhões de artigos (em língua inglesa), que escreveu sozinho milhares de artigos. Pelo prazer da generosidade, pelo prazer do conhecimento. Sem receber um cêntimo por todo esse abnegado trabalho.

Trata-se de Steven Fruitt que usa o nome de Ser Amantio di Nicolao, personagem da ópera que admira, ele que adora ópera.
[Coloquei aqui uma mulher debaixo de água, perplexa com a sua condição, para vos mostrar como me sinto por, antes, não ter tido sequer a curiosidade de tentar saber quem é que, por detrás de tudo o que tenho podido aprender, se dá a todo este galáctico trabalho. Por não ter antes confirmado que há gente como Steven. Eu, aqui cheia de frescuras a fazer links para a wikipedia enquanto pessoas como Ser Amantio di Nicolao estão usando o seu tempo para partilhar o seu conhecimento, para investigar -- para que, nós aqui, possamos degustar os frutos que ele colhe.]

Conheçamo-lo, ouçamo-lo. Não vale dizer que ele é um cromo. É. Talvez seja. Mas que interessa que seja isto, aquilo e o outro se, graças a ele e a outros como ele, temos o conhecimento ao alcance das mãos?

E também não vale dizer que a wikipedia é coisa pouca, conhecimento superficial, por vezes com erros -- e que bom, mesmo bom, coisa boa a sério, é ler os gregos em grego antigo. Não digo que não. Mas há patamares e o meu é cá em baixo. E o conhecimento, ainda que vago e superficial, que se pode ter, num ápice, com um simples lamiré como uma rápida consulta á wikipedia é relevante para quem sabe pouco como eu.

Mas o que sei ou deixo de saber também não interessa. Conheçam, por favor, Steven Pruitt, o Senhor Wikipedia:


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Are they in love or what?
[Lady Gaga - Shallow (Live) WITH BRADLEY COOPER - Full Video]


Eu cá não sou de intrigas mas que lá que parece que alguma coisa rola ali entre eles, lá isso parece. E se não rola, pinta. Ou, se não é 'pintar' que se diz, que seja qualquer outra palavra que queira dizer que entre aqueles dois parece que se soltam faíscas. Ou, se não são faíscas, são borboletas. E, se não são borboletas, são luzinhas azuis. Ou whatever.

O som do vídeo não é bom e a imagem também não é espectacular. Mas, não me perguntem porquê, gostei de ver. 

Eu, se fosse à Irina, ex-putativa menina Aveiro, acho que ficava um bocadinho apreensiva. Certo que tem um narizinho mais pequenino do que o de Stefani Joanne Angelina Germanotta, aka Lady Gaga. Mas a questão é que não sei se, nestas coisas, o tamanho de nariz importa.

Lady Gaga e Bradley Cooper - ao vivo e a cores


terça-feira, janeiro 29, 2019

Não há ausência se permanece, pelo menos, a recordação da ausência.





Há algum tempo, deparei-me com um velho caderno onde tinha apontado algumas frases que me tinham impressionado. Havia uma extraída de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. 


Dizia:
Mas para desencadear aquela tristeza, aquela sensação de irreparável, aquelas angústias que preparam o amor, é necessário -- e talvez seja isto, mais do que uma pessoa, o próprio objecto que a paixão procura ansiosamente atingir -- o risco de uma impossibilidade.
E se a paixão que me invade, que nos invade, diante destes livros perdidos tivesse as mesmas origens da paixão amorosa descrita por Proust? Se fosse precisamente o risco de uma impossibilidade que justifica o misto de arrebatamento e melancolia, de curiosidade e fascínio, que cresce quando se pensa em algo que existiu, mas que não podemos agarrar com as nossas mãos? Se for o vazio que nos fascina, por que podemos preenchê-lo com a ideia de que o que falta é a peça decisiva, perfeita, inigualável?


Além disso, esses livros tornam-se desafios à imaginação, a outros escritos, ao desenvolvimento de paixões alimentadas pela sua própria inatingibilidade. Não é por acaso que muitas destas páginas perdidas acabaram por provocar a escrita de novos livros.

Mas não é só isso, é algo mais.



Num romance de finais do século passado, uma escritora canadiana, Anna Michaels, escreveu:
Não há ausência se permanece, pelo menos, a recordação da ausência. (...) Se alguém já não tem a terra, mas tem a recordação da terra, pode sempre desenhar um mapa.

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Excerto do livro 'Histórias de livros perdidos' de Giorgio Van Straten, da editora Elsinore, tradução de Carlos Aboim de Brito

Me And Mrs Jones aqui é interpretado por Billy Paul. Marie-Thérèse Walter é retratada por Picasso.

The Loveliness of Love de George Darley é lido por Tom O'Bedlam

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E queiram continuar a descer para verem como é bom saber viver

Saber viver


Há Leitores que me dizem que vêm aqui pelo que escrevo e não pelos vídeos que partilho. Algumas pessoas vêem o blog no trabalho e não lhes dá jeito estarem a fazer barulho ou receiam dar nas vistas. Mas acredito que alguns conseguirão oportunidade para os verem e, por isso, na senda do post de ontem, partilho hoje um outro vídeo do mesmo género. Não será tanto pela casa (embora também o seja) mas pela tranquilidade que se desprende do modo de viver que se percebe vendo a sua dona, uma serena senhora com 76 anos.

Atrai-me muito este vagar de gestos, a forma como toca os tecidos, esta curiosidade dela em sair, ao frio, para fotografar, o preparar de uma refeição para os amigos. E gosto de ver os objectos, a casa, o conforto simples. Não admira que pessoas assim vivam para além dos cem anos: a paz de espírito é saudável. 

Eu, que receio a forma desregulada como a inteligência artificial parece tender a evoluir, como as redes sociais proporcionam todo o tipo de devassa e manipulação, e todas essas coisas, tenho que reconhecer as imensas vantagens da internet e de plataformas como o youtube sem os quais jamais poderíamos conhecer tantas coisas tão distantes e tão simples como esta forma de viver que aqui podemos observar.


segunda-feira, janeiro 28, 2019

Casas: as minhas, as dos outros





Quando eu era pequena, quer os meus pais, avós, tios ou quase todos os demais conhecidos viviam em casas que eu achava normais. Entrava-se e toda a casa ficava relativamente à vista. Mas havia uma casa que eu achava misteriosa e da qual nunca percebi os contornos. Tinha divisões em baixo, depois uma escada sempre a meia luz e, em cima, um corredor comprido com muitas divisões de portas sempre fechadas. Lembro-me de algumas vezes estar numa das divisões com a amiga da minha mãe, uma mulher da mesma idade que era modista. Tenho ideia de que estava também a meia-luz embora me tenha ficado a ideia de janelas altas, com portadas de madeira. Essa mulher era a mãe de um menino um ano mais velho que eu, o meu primeiro amigo, o meu grande e inseparável amigo até eu ter dez anos. Tal como a mãe, ele era reservado, silencioso. A minha mãe era muito loura, de olhos muito azuis, muito alegre. A amiga tinha o cabelo escuro, olhos escuros e parecia viver sem prazer. No entanto, isto pode ser a impressão de uma criança pequena. A casa era como ela, sombria, silenciosa e eu gostava sempre de ter oportunidade de lá ir, em especial lá acima, para tentar perceber o que lá se escondia.


Mais tarde, conheci uma outra casa fascinante. Teria eu onze ou doze anos. Uma das minhas colegas de turma era muito rica. Vivia numa casa extraordinária. Vivia no último piso de um dos prédios mais emblemáticos da cidade, prédio que pertencia aos pais. Nos outros andares havia direito, esquerdo e centro e todos enormes; mas, no último piso, onde ela morava, estava tudo ligado. Tinha apenas um irmão. Uma casa imensa para dois adultos e duas crianças. E as criadas. E tinha um terraço enorme e uma estufa e um solário. Eu adorava ir para lá. Tinha uma vista espantosa de toda a cidade. Por dentro, a casa era tão grande que havia uma central com botões correspondentes a cada divisão. Quando alguém queria uma água ou um sumo, tocava uma campainha que soava na central que havia na copa. As empregadas andavam fardadas e, na realidade, eram as verdadeiras chefes da casa. A mãe ou nunca estava em casa ou nunca saía dos seus aposentos. Tinha perdido um filho, anos atrás, e parece que nunca tinha recuperado. O pai era um homem de negócios e também nunca o vi em casa. O irmão dela levava amigos lá para casa e ela também. Mas cruzávamo-nos apenas vagamente pois a casa era francamente gigante. Lembro-me de uma sala que ficava a meio da casa, uma esquina em redondo como redondo era o ângulo do prédio. Nunca eu tinha estado numa sala daquele tamanho. Sempre vi aquela sala sem pessoas, só móveis muito bonitos e bibelots fantásticos que vinham de outros países. E nós por ali andávamos à vontade, usando a casa como se não tivesse dono. Por volta das quatro ou cinco da tarde, não sei, tocava uma campainha e nós interrompíamos o que estávamos a fazer e íamos lanchar à copa. Havia uma mesa grande mas havia também um balcão alto com bancos altos. Era aí que preferíamos lanchar.


Uma outra nossa amiga, que morava entre a minha casa e esta casa gigante, vivia numa casa muito grande de tipo solar, numa quinta também enorme onde havia um extenso laranjal. Aí não íamos tanto. Havia lá muitos cães e eu tinha um bocado de medo. A quinta estava toda murada. A casa grande dava para um grande pátio para o qual davam também as casas dos empregados. Aí havia sempre bulício. Nunca vi o pai. Quer o pai quer a mãe eram bem mais velhos que os meus pais. Tinham seis filhos, todos irreverentes, mal comportados, bem dispostos. Se bem me lembro, a mãe tinha sido deputada na antiga assembleia nacional. Não sei se nessa condição ou na condição de aristocrata e rica, só se fazia deslocar com motorista. Só me lembro de a ver a chegar ou a sair com motorista. Em casa, não me lembro de a ver. Era uma casa em dois pisos, com muita patine, e também aqui, eram as empregadas que tomavam conta da casa e das crianças. Tinha bancos de pedra junto às portadas, tinha grandes tapeçarias, mobílias que deveria ser valiosas. Lembro-me de um grande louceiro, mesmo grande, grande, imponente, com pratos de louça e peças de prata e de uma mesa enorme nessa casa de jantar. Passava-se de umas divisões para outras, parecendo que não acabavam e isso para mim era um grande motivo de curiosidade e interesse.


Depois disso tenho conhecido outras casas fantásticas. De uma, em Sintra, um belíssimo palacete, já uma vez falei num daqueles folhetins que, volta e meia, me dá para escrever. É uma casa de família e ali poderia ser feito um belo filme. De facto, é uma casa tão extraordinária que poderia ser a personagem central de um romance, de um drama, de uma série de televisão. Aí, uma vez mais, passa-se de umas divisões para outras como se fosse uma casa infinita. Quando sou convidada para lá ir, encanto-me. Por minha vontade pedia carta branca para passar lá um dia inteiro por minha conta.

Mas, enfim, escuso de continuar a falar de casas que, de alguma forma, me impressionaram.


Mas, tenho que confessar, talvez por outros motivos, as minhas casas também me impressionaram. Esta, da cidade, foi assim: por causa dos livros, eu andava à procura de uma casa maior, de preferência com seis divisões. Pelos meus filhos, habituados a uma vida de cidade, com amigos e amores, com desportos e actividades sempre por perto, queríamos uma casa na cidade e não no campo. Procurámos procurámos, procurámos. Uma vez, estavam a fazer um prédio na rua onde eu morava. Um dia, ao chegar, estava um carro mal estacionado com indicação de que o dono estava na obra. Fui avisá-lo. Apareceu um homem mais ou menos da minha idade, com um bom ar, simpático. Percebi que era o construtor. Perguntei-lhe se as casas desse prédio em construção eram grandes. Disse-me que eram T4 normais. Perguntei-lhe se tinha ou sabia de casas grandes. Disse-me que sim, uma que tinha sido dele e que estava a reconstruir. Mais tarde haveria de me contar que era a casa onde tinha vivido com a primeira mulher e com a filha e que estava a reconstruir para que a mulher da altura, a segunda, não se importasse de ir para lá (mas que não sabia se nem mesmo assim ela quereria). Mas, naquele primeiro dia, não sei dizer bem porquê, interessei-me logo. Perguntei-lhe onde era. Disse-me e disse-me também que ia lá estar no dia seguinte à tarde. No dia seguinte, apareci lá. A casa estava em reboco, tudo a ser feito de novo. A casa tinha uma deslumbrante vista para o rio e era, realmente, uma belíssima casa. Senti imediatamente que era a casa pela qual eu estava à espera. O que tive que penar pela casa, as surpresas que tive, algumas muito boas, o inacreditável que foi todo o processo até que ele assimilou que a mulher jamais viria viver para aqui e aceitou vender-me a casa, é digno de outro filme. No dia da escritura, chorou ao vender-nos a casa. A mulher acompanhou-o mas não estava nem aí.


A casa no campo foi outra. Sempre tive vontade, ou melhor, necessidade, de ter uma casa no campo. O meu marido nem por isso. Durante anos procurámos. Ou eram caríssimas, ou horrorosas, ou a milhas, ou em lugares recônditos ou com vizinhança nula ou péssima. Já todos, o meu marido e os meus filhos, odiavam que eu persistisse, já nenhum deles tinha mais paciência para continuar a procurar. Até que um dia vi um anúncio. Chamou-me a atenção. Consegui convencê-los a ir ver. Estava de chuva, não queriam ir. Fomos ter com a dona da agência, uma pequena agência local. Quis mostrar-nos primeiro uma outra. Na verdade, um monte, literalmente um monte. Era vendido com o projecto de uma moradia que ela e o marido, que tinham também uma empresa de construção, fariam nascer. Mas eu estava com a ideia no tal anúncio. Lá fomos, num dia muito cinzento e muito molhado. E foi, de novo, amor à primeira vista. Era uma casa muito, muito antiga, com um acrescento recente e legal, uma casa no meio de pedras e mato rasteiro. Os miúdos entraram a correr e um disse: 'aqui é o meu quarto' e outro disse 'e aqui é o meu'. E eu comecei logo a pensar em desfazer-me daqueles móveis escuros e a pensar que tudo aquilo precisava de uma grande volta. E que ali, onde estavam pedras e mato rasteiro, haveria um dia um pequeno bosque. E foi outra luta. Papéis, papéis. Muito, muito tempo. Mas não desisti(mos). É agora o pedaço de terra que sinto como meu, como se tivesse nascido dele.


E talvez por ter esta ligação estreita a casas ou à recordação de algumas, sonho recorrentemente com casas. Sonho que chego a um lugar e que há uma casa fantástica que eu desejo que seja minha e que a vou visitar e que é enorme, sem princípio, meio e fim, com muitas divisões, que tudo ali me encanta, que me ponho à descoberta e que tem recantos maravilhosos e surpreendentes. Adoro ter este sonho. Nem quero acordar, para estar, maravilhada, a descobrir divisão após divisão, móveis lindos, louças e quadros magníficos, janelas grandes, muitas portas.

Mas, se hoje fizesse uma casa de raiz ou fosse escolher uma casa para iniciar uma vida nova, escolhia uma casa diferente das minhas. Talvez escolhesse ter casas como estas dos vídeos abaixo.





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As pinturas são de Gerhard Richter e acho que vão bem com Arvo Pärt, aqui com Pari Intervallo 

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Era para ter falado dos 'Livros Perdidos' mas cheguei tarde a casa, tive mil coisas para fazer, é tarde e espera-me um dia e pêras. Por isso, com vossa licença, vou já direitinha para a cama, apenas não rezando a todos os santos para isto não estar pejado de gralhas porque sei que não seria a reza a editar o texto.

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E uma boa semana a todos a começar já por esta segunda-feira.

domingo, janeiro 27, 2019

Crónica de um dia in heaven com homens a passarem-me à porta do quarto, com um insólito bicho encarnado, um ovo branco e misterioso e etc.
E o meu tapete e um livro com poemas manuscritos.
[Mostro os de Daniel Jonas e Nuno Júdice]





E se eu estava a precisar de dormir até vir a mulher da fava rica. Mas não. Cedíssimo, sozinha na cama -- que o meu marido (felizmente) madruga -- comecei a ouvir uns ruídos não identificados. Tentei apurar o ouvido mas não consegui reconhecer que sons eram aqueles. Depois comecei a ouvir a voz do meu marido. Falava. Mas só ouvia a voz dele. Ouvi: não encontro a chave. E ouvia mexer em chaves. Passado um bocado, ouvi um batalhão de homens no corredor, a passar-me à porta do quarto. Nada de novo a não ser que não esperava que viessem tão cedo. O meu marido tinha-me dito que eu podia dormir porque eles iam lá para cima, não me incomodariam.


Eles eram os homens que vinham arranjar o tecto da parte antiga da casa, uma parte onde estavam os quartos dos meus filhos e uma pequena saleta, parte esta que hoje é pouca usada. Quando choveu mais, notámos que a escada de pedra estava molhada, vinha água desde lá de cima. O tecto, que é de madeira, precisava de ser levantado numas partes.

Acontece que a porta da rua que daria acesso quase directo a essa parte da casa é uma porta que há anos não é usada. 


O senhor que volta e meia vem cá fazer arranjos e que vinha com mais dois, tinha-se lembrado que dava jeito entrarem por essa porta e não pela habitual para não terem que atravessar a casa com escadote, madeiras, ferramentas e, então, tinha vindo mais cedo para limpar as teias de aranha que se tinham formado do lado de fora e era esse o ruído, de uma vassoura a raspar na porta e no telheiro, que me tinha acordado. E o meu marido andava a experimentar chaves do lado de dentro e ele do lado de fora. Por isso só ouvia a voz do meu marido (que, às tantas, dizia que, era uma chatice, mas que a chave se deveria ter perdido).

Só que, às tantas, já depois de ter deixado de ouvir a voz do meu marido, ouvi a voz do tal senhor a dizer para um dos que o tinha vindo ajudar: olha lá, se for preciso, sabes rebentar o canhão de uma fechadura?


Aí, dei um salto da cama, enfiei a roupa às três pancadas, fui à gaveta onde tenho o molho completo de chaves da casa e fui experimentar. Uma era a daquela porta. A seguir cruzei-me com o senhor e acho que nem o cumprimentei: Já abri a porta. Viu o meu marido? E ele: se calhar já foi lá para baixo. 

Fui à rua: estava com aquelas proteções nas pernas, a roçadora ao ombro, e ia lá para baixo. Já devia ter andado nos seus passeios ultra matinais pelos campos, veio a casa para abrir a porta aos homens e agora ia roçar o mato nascente. Ficou admirado por me ver: o que é que aconteceu? E eu: Achas que se consegue dormir com aquela barulheira? E se não me tenho levantado à pressa ainda destruiam a porta. Já encontrei a chave, já lhes abri a porta.

Não ligou. Está um camponês. Ia para a sua lida. Disse-me que também já tinha andado a cortar ramos altos com aquele serrote telescópico que o filho lhe ofereceu. Deve ter-se levantado às seis da manhã.



Entretanto, já os homens estavam a entrar e sair pela porta que não era aberta há anos, e muito barulhentos, uma algazarra pegada.

Portanto, acordei cedo e sobressaltada. A seguir, depois do meu marido ter cortado tojo e silvas, e de eu ter dado um breve passeio, fomos ao supermercado.

Ir ao supermercado à vila mais próxima é, para mim, um exercício de paciência. Tudo muito lento. Por exemplo, quase não há carne embalada. Tem que ser no talho mas há sempre umas vinte senhas à frente. E o pior é que cada pessoa leva carradas de carne, tudo cortado na hora. No peixe é a mesma coisa. Com a agravante de as empregadas serem vagarosas, cumprimentarem toda a gente, estarem a arranjar o peixe na calminha enquanto olham para as clientes, e conversam umas com as outras e com as clientes, tudo no maior vagar. Um desespero.


Regressámos. Fiz uma máquina de roupa, fiz arrumações. Por volta da uma, eles acabaram o trabalho. Mas o senhor, o principal, disse que voltava depois de almoço para acabar lá uma coisa.

Entretanto, também já tinha feito o almoço: pescada fresca cozida com batata, cenoura, feijão verde, ovo.

O meu marido tinha trazido um queijo de ovelha e, quando o abriu, achou que cheirava mal. Cheirei. Cheirava a curral. Talvez demais. O meu marido disse que era impossível comer um queijo que cheirava a m... Se tivesse sido mais barato, ia para o lixo e está a andar. Mas tinha sido caro e, sobretudo, era uma questão de princípio. Por isso, contrariado e irritado, foi ao supermercado.

Eu estava KO: deu-me um sono brutal. Pensei: vou deitar-me lá fora, na espreguiçadeira, e dormir um bocadinho. 


Como o senhor tinha dito que voltava, fiquei em casa, foi só ele. Pensei: o portão está aberto, o senhor sabe o caminho e talvez nem venha já, vou deitar-me ao sol, vou dormir.

Tinha eu acabado de arranjar a espreguiçadeira, toca a campainha. Era o senhor. Resolveu não entrar sem se fazer avisar. Começou a conversar. E a conversar. E a conversar. A contar-me dos filhos, dos netos, dos primos, dos cunhados, de um comendador que era dono de uma fábrica noutra aldeia e que tinha filhos de duas camadas, da primeira e da segunda mulher, e do que tinha uma oficina e da professora que tinha um portão eléctrico e que o tinha chamado. E.... e... e... . Eu mal me tinha de pé, perdida de sono, exausta -- e ele, uma simpatia, a falar em contínuo. Por fim lá pegou na escada e lá foi completar o que cá o tinha trazido.


Sentei-me na espreguiçadeira a ler. Achei que, com ele por ali, não devia deitar-me. Passado um bocado chamou por mim. Estava em cima do telhado. Tinha reparado que o solho no que antes era o quarto do meu filho, na direcção da escrivaninha, estava mais escuro, prova de humidade. Então tinha ido ver o telhado. Disse-me que havia ali uma zona que precisava de ser impermeabilizada. Eu pensava que ele se deveria estar a referir ao chão de madeira, ao soalho. Nunca tinha ouvido chamar solho ao soalho mas agora já vi no dicionário que, de facto, se pode dizer. Aprendo imenso com ele, imenso mesmo.

A questão é que espertei. Quando estou perdida de sono e não consigo dormir, depois já não consigo.

Quando o meu marido regressou, estava ele a sair. Fui para dentro, recostei-me no sofá, comecei a ler e pensei que ia adormecer. Mas não adormeci.


Li. O livro, interessante. A ver se amanhã falo dele.

Depois fui caminhar, fotografar. A lua branca, já por metade. Translúcida, num céu límpido. A vaporosa florzinha do eucalipto. A casca de ovo muito branca, partida ainda de fresco, com outro bocado de ovo lá ao pé. Não sei a que pássaro poderá pertencer. Tão grande. Não é um ovinho de passarinho. Menor que o ovo de uma galinha mas maior do que os ovos de passarinho que costumo ver nos ninhos. E tão branco. E o gato amarelinho que me olhava de longe, um gato silencioso que me observa enquanto ando e que me deixa sempre surpreendida pois não sei de onde vem nem para onde vai (aquela velha questão mas agora aplicada ao gatinho cor de mel). E a flor encarnada, linda. E o bicho espantoso, também encarnado mas com efeitos em preto e branco, espectacular, um daqueles seres vivos que se vêem e em que não se acredita. E um outro pinheirinho despontando numa outra rocha. E tudo tão bonito e sereno.

E fiz o tapete (desforrei-me a fazer enquanto o meu marido via o seu Sporting a ser campeão de uma Liga de que eu nunca tinha ouvido falar, a Liga de Inverno. Ainda lhe perguntei que liga era aquela mas limitou-se a responder: esquece, não ias perceber e eu não insisti porque sei que não ia mesmo perceber), e li e vi televisão. Ainda não adormeci mas já estive várias vezes quase. Espero dormir bem esta noite.  Estou mesmo, mesmo, mesmo, a precisar de dormir muito porque sei que a semana que aí vem vai ser de me deixar a rebentar pelas costuras e, se não recarrego baterias, nem sei como vai ser.


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Mas queria era falar de um livro novo. Não do que estive hoje a ler mas de um outro, um muito bonito, com poemas manuscritos. Eu que gosto tanto de estudar a escrita caligráfica das pessoas fiquei logo rendida ao livro.

Não faço aqui a análise porque seria deselegante fazê-lo mas mostro-vos a do Daniel Jonas (uma letra que me agrada muito e que me deixa contente pois gosto muito da poesia dele) e a do Nuno Júdice (uma letra que espelha bem a pessoa que penso que ele deve ser)

Fotografei os livros que comprei a semana passada (uma pequena recaída) em cima do tapete que estou a fazer na cidade. Se comparem com a fotografia de há dois meses até parece que não andei muito mas, como já referi, como a barra é quase da cor da juta, na altura não reparei que boa parte do preenchimento da barra estava por fazer. Agora já está todinha e já vou para aí num quarto do preenchimento do fundo (a azul escuro).






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Lamento, uma vez mais, não ser capaz de responder aos comentários.

Desejo-vos a todos um feliz dia de domingo.

Não sei se resulta mas as Sheng nu devem agradecer




Li e pensei: 'esta malta é maluca'. Depois ponderei: 'na volta, são é muito à frente' mas logo corrigi: 'vivem mas é no passado'. E depois de ter entrado num registo de raciocínio em circunvalação fiquei sem saber em que apeadeiro sair. Com certeza, com certeza, só posso dizer que é curioso.

Isto porque na China uma empresa resolveu oferecer oito dias de férias adicionais aos empregados solteiros com mais de trinta anos para os ajudar a descobrir o amor, para poderem ir à terra às festas tradicionais do ano novo, para conviverem. Não é inédito. Pouco tempo antes uma escola tinha anunciado que dava dois dias e meio aos professores solteiros.

A medida visa em especial as mulheres a quem chamam Sheng nu, 'as raparigas que sobram'. Uma vez mais penso: 'Que atraso de vida, caraças'. Coisa mais degradante. E até parece que uma mulher que fique solteira o tenha ficado forçosamente por ter sobrado, por não ter sido querida. Como se uma mulher não seja livre de optar por ficar solteira. Mas logo pensei que os chineses são gente mais do que trabalhadora, eficiente, focada e adaptável. Não são mais burros ou mais atrasados que nós. Portanto, nada de raciocínios paternalistas ou arrogantes em relação a eles. Mais, não posso esquecer-me da sua cultura milenar. Num primeiro impulso, sou sempre levada a raciocínios imediatistas e, em relação a tudo o que não encaixa na minha matriz de valores, sentir uma certa repulsa. Mas depois tento uma certa visão em landscape para tentar colocar as coisas em perspectiva.

Seja como for, parece-me aquela medida uma coisa meio parva mas, por outro lado, reconheço que ter dias de férias a mais é uma coisa boa. Dizem eles que as mulheres apaixonadas, acasaladas e que constituem família são mais felizes e mais produtivas no trabalho. E é também um facto que na China, como em todo o mundo ocidental ou 'evoluído' (e ponham aspas nisto) cada vez as mulheres se focam mais nas suas carreiras e se casam mais tarde -- já para não falar em que têm cada vez filhos mais tardiamente e em menor número o que, reconheçamos, não é coisa boa para o futuro da hmanidade.

De resto, eu, cá por mim, acho que a vida profissional não se deve sobrepor à vida pessoal. E isto por muito motivante que seja a profissão. E acho também que estar enamorado, ter a quem dedicar amor  e os nossos melhores pensamentos, é uma coisa boa, traz felicidade e saúde, quiçá também produtividade a todos os níveis.

Portanto, achando a terminologia deles uma coisa pré-histórica e achando que, a ser, tudo se deveria aplicar por igual a homens e mulheres, capaz de a medida não ser coisa má de todo. 

Por mim, não sendo o caso já que tenho marido, acho que seria bom que, por cá, algumas pessoas noutras circunstâncias também tivessem direito a mais dias de férias. E, aqui cá para nós que ninguém nos ouve, não me ralava nada que fosse só para mulheres. Por exemplo, oito diazinhos a mais de férias para as mulheres que tenham atingido a menopausa. Não me perguntem porquê. Mas era bom. Não sei seria se seria lógico, razoável ou justo. Mas era bom.

[Não que todas as mulheres com menopausa sofram de afrontamentos... calma aí]
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E já cá volto para vos mostrar a letra de alguns escritores.
Até já.

sábado, janeiro 26, 2019

Uma mulher normal cuida das vestes das mulheres ideais
-- E faces, selfies, filtros e fantasias levadas a sério --


Só posso dizer que sou uma mulher normal. É quase meia-noite e estou com muito sono. 

Chegámos há pouco e, tal como os bebés quando estão cansados, também eu, quando me apanho num carro a andar (e não estou a conduzir), logo me dá o sono. Só que o meu marido parou para abastecer e não cheguei a adormecer e, durante o resto da viagem, estava quase mas não adormeci mesmo. Quando me sentei aqui no sofá depois de me ter descalçado, tirado os brincos, o colar, a roupa justa e etc e me pus à vontade, fiquei com frio. E o meu marido já pôs lenha ali na salamandra e o aquecedor a óleo também já deita quentinho. 

Mas não chega. Então fui buscar a manta grande e quentinha que estava na cadeira de balouço e embrulhei-me toda nela. É assim que estou agora, envelopada em flanela e ovelhinha, com sono.

Sou uma mulher normal. Canso-me. Tanto trabalho, tanto trânsito, tanta reunião, tanta pressa para conseguir chegar a horas, tanta vontade de ter tempo para ler, para escrever, para passear, para descansar.

Tenho muitas ideias, muita vontade de fazer muitas coisas. E pedem-me que as faça. E eu fico contente, porque é o que acho que deve ser feito, porque me sinto motivada. E depois são coisas a mais. 

Podia ser diferente. Mas não seria eu. Não sei ser de outra maneira. A procurar e a encontrar trabalho. O pior é que sou uma mulher normal. Canso-me. Não estico. Preciso de dormir, de descansar. Não sou a fingir, daquelas executivas que não precisam de descanso, sempre em cima, sempre prontas para exigirem, darem o litro, sempre muito bem pintadas, penteadas, calçadas. Eu não. Nada disso.

Estive a ver uma coisa que gosto muito de ver: costura, bordados, trabalhos manuais cuidadosos. Dedos artífices, dedos de mulheres dedicadas.

São as mãos normais de mulheres normais de corpos fortes, pernas e braços grossos, roupas normais, sapatos normais.

Fazem obras de arte para sílfides, sereias, ninfas, fadas aladas, mulheres meninas esguias e etéreas. As mulheres de peles e carnes espessas ajeitam os folhos, as sedas, as rendas, os tules perfeitos, os alfinetes de pérolas, as pedrinhas coloridas dos vestidos das meninas bonecas pestanudas.

Os segredos dos ateliers Dior



Li uma outra coisa muito estranha. Em todas as eras haverá de haver excentricidades, maluqueiras, excessos. Na nossa há muitas. Uma é o culto da sua própria imagem associado  ao mito de  que a beleza física tem que ser perfeita, extrema.

O que li e que me deixou perplexa e um bocado triste: com isto das selfies e dos filtros há muitas mulheres que se viciam na ausência de vincos, rugas, papos, manchas. Modificam a sua imagem, aperfeiçoam-se. Snapchat para todos os gostos: mais bebezinha, mais olhudinha, mais borboletinha, mais gatinha. Até aqui tudo bem. O pior é que depois vão ao médico e pedem que as ponham iguais às selfies transformadas e transbordantes de fantasia. Começam com os botox e essas coisas que relaxam o músculo, depois preenchem rugas e depois vão por aí fora: narizinho fininho e pequenino, olhos grandes e sonhadores, maçãs do rosto lisinhas, redondinhas e lindinhas, queixinho com covinhas, lábios desenhadinhos com perfeição de barbbiezinhha.

A jornalista do Guardian, Elle Hunt, ilustrou com a sua própria imagem.
Me, my selfie and I: a portrait of Elle Hunt, taken in natural light on a digital camera; a selfie, taken on an iPhone without a filter; a selfie, with a Snapchat filter. Photograph: Linda Nylind/Elle Hunt

Ainda não chegámos à fase de fazer bebés a la carte mas já não falta muito.  Ainda se está na fase que, não tarda, será coisa do passado, olhada como uma coisa meio pueril: querer ser iguais à fantasia da nossa cara.

Acho isto uma coisa parva mas, lá está, se calhar falta-me sofisticação, alinhamento com as trends, conhecimento das mais recentes práticas de engenharia social. Não passo de uma mulher normal.

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E agora vou para a cama que isto de estar para aqui a escrever de olhos fechados é capaz de não produzir bom resultado. Desejo-vos um belo sábado e peço desculpa por não ser capaz de responder aos comentários do post abaixo.

sexta-feira, janeiro 25, 2019

O João Miguel Tavares vai ser o comissário do Dia de Portugal...?
A sério...?
Alguém me belisque, se faz favor.
Mas isto é o quê? O fim dos tempos...?


Repito: alguém me belisque, se faz favor. Não pode ser. Quem escolheu João Miguel Tavares para comissário do próximo Dia de Portugal teria que estar com uma grande pancada na cabeça para achar que um tal tonto, to say the least, pode ombrear com gente de cultura, gente com os cinco alqueires bem medidos, gente que sabe pensar com elevação, ilustres da nação. Não sei se isto foi ideia do assessor, o amigo Mexia do Governo Sombra (o cujo, para o ano, talvez proponha o Ricardo Araújo Pereira e, a seguir, o Carlos Vaz Marques), se terá sido do próprio Marcelo num dia em que a falta de descanso lhe trocou as voltas e o fez dar um passo em falso. Tanto rodopio, tanta noite mal dormida e jet leg, tanta selfie e beijinho, tanto comentário em tempo real a propósito de tudo e de nada, tanta ida de imediato ao local da notícia, um dia haveria de dar mau resultado. 

Devo ter estado distraída porque isto hoje me caíu como uma bomba. Nem sei se a coisa já é mesmo oficial e irreversível. É que ainda admito a hipótese de que isto seja brincadeirinha pré-carnavaleira, uma bombinha de mau cheiro, uma bicha de rabear. Porque, se isto é mesmo verdade, então vou ali e já venho. Às tantas, isto ainda foi a melhor alternativa à Cristina Ferreira. Quem garante que o Marcelo não a quis para comissária e alguém, com um módico de sensatez, para o dissuadir, atirou com o nome daquela anedota para a frente? Já não digo nada. Sim, porque, depois daquele telefonema dele para o programa da dita agente cultural, sei lá se aquilo não foi já o prenúncio de que a sua capacidade de discernimento está a entrar por um caminho muito estreito, um caminho a descer e que não se sabe onde vai dar...?

Se isto é verdade, se o João Miguel Tavares vai mesmo ser o comissário do Dia de Portugal, então só vos digo que isto é o país a bater no fundo. Está certo que, em anos transactos, alguns comissários foram um bocado chatos, discursos talvez excessivamente longos e lidos em tom monocórdico. Mas, caraças, era escusado irem buscar um big-show-pimba, um vulgar-totó-populista que tem como lema de vida 'contra o sócrates vale-tudo, tudo, tudo' e nada mais, uma verdadeira cabeça de alho chocho, um zero à esquerda.

A menos que haja outro. Espero bem que sim. Haja esperança. Pode ser que haja por aí um outro João Miguel Tavares mas em bom.

É que, se não houver, acho que o Marcelo só tem uma solução para sair desta. Ser criativo. Por exemplo, primeiro, lá no dia das comemorações, punha um leopardo a correr e a largar pintas, depois uma zebra surreal, a fingir, a largar riscas, e, a seguir, aparecia o jornalista pimba a fingir que era o comissário. E a seguir, quando toda a gente já estivesse partida de riso, entrava,então, o comissário de verdade. Outro. Um a sério.




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Belisquem-me. Não posso estar bem. Estou a alucinar. 
Isto não pode ser verdade. Devo ter percebido mal.

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Ai Marcelo, Marcelo... 
Não me diga, Exª, que ainda vamos ter que acabar por ajudá-lo a terminar o seu mandato com dignidade...

quinta-feira, janeiro 24, 2019

Sobre a beleza e sobre a matemática




Estive a ver, ontem, na RTP2, um programa sobre a beleza. E muito foi dito e mostrado mas aquilo de que gostei mais tem a ver com a relação entre a beleza e a matemática. Seria muito difícil explicar a emoção que senti ao ouvir isto tal como é difícil explicar a beleza da matemática, a vertigem de encontrar a elegância da demonstração de um teorema complexo, a vertigem de olhar e compreender as proporções de uma geometria sublime, a vertigem de descobrir o caminho certo por entre um intrincado labirinto. Difícil explicar. Parece coisa de doido. Mais vale calar porque há coisas que não se podem explicar, não se podem macular com a imprecisão das palavras incorrectas.


Se é a simetria, a proporção, a harmonia -- isso eu não sei. Sei que sou muito sensível à beleza. Dependente da beleza. Não vivo sem beleza. Procuro-a.

Pode ser uma difusão de cores em pleno voo, pode ser um sentido choro de violoncelo, pode ser uma lenta sucessão de volumes ou o grito de um ângulo agudo. Ou uma conjugação de palavras que me deixe sem fôlego, em lágrimas ou sem chão.

Não me prendo a uma só forma de beleza. Pode até ser apenas um terno sorriso, pode mesmo ser um olhar mais doce. Pode ser uma mão que se aproxima. Pode ser o rendilhado de uma sombra num muro branco ou o deslizar suave das águas de um rio ou o suave tombar das ramagens de uma árvore nas suas margens. Ou uma inexplicável saudade ou a imorredoura e muito bela memória de uma varanda suspensa, envolta em sombra e flores, em sorrisos, em abraços não consumados. .


Mas saber que afinal há mesmo semelhança entre a emoção que se sente perante estas formas quase consensuais de beleza e a que se sente perante conceitos de análise infinitesimal, topologias abstractas, geometrias descritivas, casos insolúveis, sistemas cruzados de inequações ou soluções inesperadas e quase mágicas para problemas de matemática enche-me mesmo de surpresa e satisfação.


Penso que será também semelhante ao que se sente perante o tentador abismo que é a física da matéria ou perante as assombrosas similitudes entre o infinitamente pequeno e o infinitamente grande ou perante o fascínio que resulta do meu total desconhecimento da vida das partículas elementares ou do imenso espaço ou do indefinível vazio. Mergulhar nesses mundos, percorrida por uma louca incompreensão, deixa-me com uma emoção que é um frémito quase vertiginoso muito semelhante ao que me faz ter vontade de me ajoelhar em silêncio perante uma tela de Caravaggio ou de Chagall ou de me reduzir a nada para melhor escutar os acordes vindos de um mundo habitado por divindades ou o que sinto perante uma paisagem que me faz ter vontade de me diluir na terra ou de sair a voar sobre os vales.


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Have beauty.