quinta-feira, abril 28, 2022

Varrer, podar, fotografar



Acabei de fazer zapping por todos os canais portugueses. Nas telenovelas portuguesas nem paro, não tenho pachorra. Em quase todos os demais vi gente com um certo ar de maluquice. Cada um fala de sua coisa, desde cantigas, a economia ou política, mas alguns estão com olhos demasiado abertos, outros falam como se quisessem convencer-nos que são inteligentes e há um que tem um cabelão de impor respeito, um ceo de uma coisa com nome curioso. Não sei porquê mas tenho para mim que saíram de algum ninho de cucos. 

Não sei se por isso, não consigo estabilizar em nenhum. Não estou com cabeça para tanto. 

Estou é a pensar se a mangueira que trouxemos encaixará bem na torneira que está ali do outro lado. É daquelas que parece uma serpentina e não sei se estica até onde quero. Em vez de regar os vasos com regador, seria bom regar com mangueira. Como me fio sempre na virgem, encho o regador até acima a fim de minimizar o número de idas e vindas. Mas o regador cheio leva dez litros. Ora andar cá e lá com dez quilos nas mãos, às vezes deriva para uma tendinite no ombro sacrificado. O meu marido hoje, a propósito de ser difícil darmos cabo de tanto mato, disse: 'Sabes o que é? Se calhar já não temos idade para tratarmos de tudo sem ajuda'. Fiquei a olhar. Temos tanta como antes. Não é uma questão de idade ou não idade. 

Não quero é que me arranquem os orégãos ou o rosmaninho ou o alecrim e já sei que se contratamos alguém para arrancar o mato tenho que pôr o coração ao alto pois já sei que vai tudo à frente. Conversa mais recorrente... Todos os anos por esta altura temos esta divergência.

Enfim.

Também tenho que arranjar adubo para citrinos porque as laranjeiras aqui, in heaven, também estão bem precisadas. O limoeiro já se foi e as laranjeiras estão desvitaminadas, fraquinhas.

As nêsperas ´que já estão razoáveis. Apanhei umas poucas, ainda não demasiadamente douradinhas mas já comestíveis. Perguntei ao meu marido se queria e respondeu: 'Devem estar boas... Pela cor... Come-as tu se achas que já estão boas'. É um céptico.

Certo, certo é que varri bastantes folhas, caruma, bolotas. É das coisas que gosto francamente de fazer: varrer. 

O balde grande com rodas agora está com lenha e, por isso, tive que pôr o que apanhava num balde simples, dos das esfregonas. Não rende nada. Tive que fazer não sei quantos trajectos para o despejar. Agora estou aqui a escrever e sinto as mãos um pouco doridas. Alma de camponesa, maozinhas de princesa (vá, Segismundo, ria-se, ria-se...)

Por vezes o acto de varrer é, sobretudo, uma animada coreografia entre a vassoura e o urso peludo que acha que a vassoura é um ser de outro planeta que está ali só para o desafiar. Ladra, salta, quer apanhá-la, finca-lhe. Uma luta.

Para ele isto é o seu elemento. Anda à solta, à larga, à chuva. Claro que depois chega a casa, molha o chão, molha os tapetes e, pior, molha os sofás. Aliás, o pior não é isso, o pior é outra coisa: o pior é que não consigo zangar-me com ele. 

Tenho um coração de manteiga, é o que é.

Supostamente estamos de férias. Mas as férias são bem tão raro que as aproveitamos para fazer tudo o que nos outros dias não conseguimos fazer. Portanto, não descansamos. 

Hoje, a seguir ao almoço, repimpados naquele sofá em que não chego com os pés ao chão mas que se reclina e se transforma numa coisa que me deixa a dormir, pimbas, deixei-me mesmo dormir. 

Mas logo, logo, logo a seguir, tocou o telefone e, ao meu lado, uma conversa sobre os grandes problemas existenciais (estou a gozar... eram problemas bem materiais) despertou-me. Ainda tentei voltar a pegar no sono mas outro tema da máxima relevância assomou à minha mente: onde estaria o podão pequeno, aquele jeitosinho, para ir desbastar os rebentos ladrões das azinheiras? 

E não descansei enquanto não me levantei para ir à procura. Não encontrei. 

O pior é que, ao estar na despensa à procura, rocei com o cabo de um podão gigante numa caixa de ferramentas que caiu ao chão e se entornou. Ora é sabido que entornar-se uma caixa de ferramentas é pior que entornar azeite: não se dá apanhado. Apanhei de arrastão parafusos, pregos, roscas, buchas e toda a espécie de pequenos objectos... e tudo lá para dentro. Nem quero pensar quando o meu marido vir aquilo. É que acho que, de manhã, quando estava a chover e não podia estar a dar cabo do tojo e das sílvias (que é o que ele chama às silvas), tinha estado a arrumar a dita caixa. Mas deve tê-la deixado meio de fora da prateleira, em desequilíbrio. Digo eu (para me desculpar por tê-la atirado ao chão).

Resumindo: andei a podar azinheiras com um daqueles podões que têm umas pegas telescópicas. Não dá jeito nenhum. Mas, enfim, como gosto de podar, andei de gosto. 

Já contei -- não contei? -- que, para mim, podar árvores é como aparar cabelo, coisa que, com a minha veia de cabeleireira frustrada, estou sempre pronta para passar à prática.

E é isto. Nada mais a declarar. Pouca televisão, poucas notícias, tentando não falar do que me atormenta, tentando não ir espreitar os mails, tentando preparar-me para ir dormir. Férias. In heaven.

Antes de me ir, partilho apenas o que tenho estado a ouvir. A voz da Bethânia pega bem nas palavras do Nandinho.

"Meu coração não aprendeu nada" 

| Fernando Pessoa | Maria Bethânia


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Um dia feliz (na medida do possível, claro)
Esperança. Força. Saúde. Paz.

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