Atrai-me a perspectiva de mudar de vida. No outro dia li no Guardian um artigo sobre uma pessoa que se reformou e resolveu fazer o que sempre tinha desejado: escrever um livro. Correu-lhe bem e já vai a caminho do terceiro. Anne Youngson tinha uma outra profissão, era engenheira, e, ao mudar, tudo na vida dela ganhou novo sentido. Gostei de ler e pensei que tomara que comigo aconteça o mesmo.
Mas creio que isso não funcionará comigo. Se tiver saúde e os anos de vida suficientes, acho que iniciarei uma nova vida. No outro dia, ao falar com os meninos, o querido e irrequieto mano do meio falava na doença do Jorge Sampaio e dizia que, enfim, também já tinha quase oitenta e dois anos. Contrapus que a bisa tem mais que isso, que já vai a caminho dos oitenta e nove. Ficou muito admirado. Então disse-lhe que isso não tem nada de mais, que eu vou viver até aos cento e tal. Ele repetiu, incrédulo, como se não acreditasse. Repeti, convicta. Mas sei lá quantos anos vou viver ou se, estando lá, na provecta idade, quererei viver muitos mais anos.
Quando faço anos, gosto de perguntar aos meninos se sabem quantos anos faço. E acertem ou não, costumo dizer que faço cento e tal. Por exemplo: 'Não senhor. Cento e três.'. E eles, espantados, pensando que ouviram mal: 'Sessenta e três?' E eu: 'Isso é que era bom... Não senhor, já disse: cento e três...'. Ficam sempre baralhados. Gosto de baralhá-los com a minha idade. No fundo, gosto de fingir que tenho diferentes idades pois assim vou vivendo por avanço idades a que não sei se chego. Mas chegue onde chegar, o que quero é ter sempre a impressão de que estou a fazer o que me apetece fazer.
Ao escrever isto dos fretes, ocorreu-me que já vivi situações na minha vida que hoje não viveria de modo algum.
Por exemplo, na minha adolescência tomei uma decisão errada, quase involuntária. Porque estava furiosa com um namorado que tinha ciúmes de um outro mas que não fazia o que deveria -- que era, simplesmente, agarrar-me, abraçar-me e beijar-me --, para me vingar e para o picar, resolvi começar a namorar o outro, o alvo dos seus ciúmes. Na minha cabeça impulsiva, aquilo era mesmo só para ver se ele acordava para a realidade e vinha atrás de mim. Se viesse, de forma aberta e assertiva, se me agarrasse e dissesse que me deixasse de parvoíces e que me deixasse estar quieta, nos seus braços, a coisa ter-se-ia resolvido logo ali. Mas isso não aconteceu. Ficou sentido, passado, zangado. Acreditou que eu tinha mesmo optado pelo outro. E ao outro nem lhe passou pela cabeça que eu queria simplesmente provocar o primeiro e, apaixonado que era por mim, levou aquilo a sério. E eu, envergonhada, não consegui desiludi-lo. Gostava dele, era amiga dele, admirava o seu lado artístico. Mas claro que não era apaixonada. Foi um castigo para conseguir manter algum distanciamento físico quando, naturalmente, ele queria muito mais. Escreveu belos poemas sobre isso, sobre a minha estranha e persistente inacessibilidade. Eu inventava mil desculpas para fugir à intimidade que ele procurava. E fazia um sacrifício dos diabos para aturar os pais deles, que eram uma simpatia e que gostavam muito de mim, ou as tias, também amorosas, e que falavam comigo como se eu fosse alguma vez casar-me com ele. Por exemplo, lembro-me bem de como fiquei passada, passada da vida, quando ele, que adorava o meu cabelo e fez vários poemas sobre ele, me disse que queria que eu, toda a vida, tivesse o cabelo comprido pois era assim que queria ver-me até ao resto dos seus dias. Fiquei com vontade de lhe dizer: mas olha lá, acreditas mesmo que vais viver a tua vida ao meu lado...? Mas não disse, tive acanhamento, tive pudor, tive vergonha. E, sobretudo, tive pena dele.
Quem me conhecia apenas percebeu que, da minha parte, aquilo era uma coisa forçada quando me viram deveras apaixonada por aquele por quem o meu coração se rendeu incondicionalmente, num daqueles coup de foudre que fazia estremecer as pedras da calçada.
Se eu pensar na minha vida em retrospectiva posso dizer que esse período em que namorei alguém por quem não estava apaixonada, alimentando-lhe falsas expectativas e, depois, causando-lhe um profundo desgosto de amor, é o que mais lamento. Hoje nada daquilo aconteceria. Hoje, se gostasse deveras de outro, diria claramente a esse outro o que sentia em vez de o deixar a sofrer e em vez de agudizar a dúvida namorando com outro. E, se, sem saber como, me visse metida numa situação dúbia, em vez de fazer fretes e alimentar uma absurda ficção, rapidamente a enfrentaria e me veria livre dela.
Na altura, a inexperiência, o medo da reacção dos outros, a insegurança, sei lá, fez com que alimentasse durante três anos uma coisa que jamais deveria ter durado mais do que três dias.
Agora sou diferente. Tal como Anne Youngson diz:
“You have a better sense of yourself as you get older," .
“You begin to understand where you fit, and you are not so anxious about who you are and what people think of you. It is liberating. Actually, I’m a big fan of old age. I think everybody should experience it.”
Agora é tudo pão-pão, queijo-queijo. Se quero digo que quero, se não gosto digo que não gosto.
E se me apetecer ser jardineira ou escritora é isso que irei tentar ser. Não quero saber dos anos que terei pela frente, do trabalho que isso dará, dos escolhos que poderei ter que enfrentar. Se é por ali que quero ir, é por ali que irei.
Entrar numa nova actividade, num novo mundo, conhecer outra realidade, ter que aprender tudo de novo, ter a humildade de ouvir quem sabe e agradecer a ajuda que queiram oferecer-me, conhecer outras pessoas -- tudo isso é das coisas que mais me entusiasma. Começar de novo. Começar tudo de novo.
Foi como a sensação boa de mudar de casa, mudar para um local completamente diferente. Vizinhos novos, hábitos novos. Um corte radical com a vida anterior. Tão bom.
E agora, cada vez mais, tenho vontade de começar a pensar numa mudança ainda mais radical. Nascer de novo. Dar os primeiros passos. Que vontade sinto, caraças.