O meu dia foi, outra vez, cheio como um ovo. Hoje o meu marido, ao ver-me a colocar a roupa na máquina, referiu uma toalha que estava em cima da mesa. Perguntei-lhe de que mesa estava a falar. Disse-me que na mesa grande. Perguntei-lhe de que toalha estava a falar. Não estava a ver. Ele encolheu os ombros e disse: 'Não deves viver cá em casa'. Depois elucidou: uma toalha que eu própria tinha posto na mesa quando os miúdos cá estiveram para evitar que a riscassem já que, sem pensarem duas vezes, lá pousavam o que quer que fosse que tivessem na mão. Depois acrescentou: 'Trabalhas de mais, esgotas-te no trabalho'. E eu não disse nada. Penso que ele deve ter razão. De facto, este meu trabalho actual é esgotante. Mas, se calhar, sou eu que faço tudo tão intensamente, querendo resultados imediatos, querendo alcançar a meta para logo traçar outra, que não consigo trabalhar (e viver) de outra maneira.
Deste que me levantei até há pouco estive a trabalhar apenas com um breve intervalo para uma curta caminhada e um rápido almoço. Confesso que nem consegui tomar o pequeno-almoço pois, quando ia fazê-lo, recebi uma chamada que se prolongou até me deixar apenas tempo para colocar uns brinquinhos, prender o cabelo com um travessão e sentar-me, airosamente, em frente do computador para a primeira de várias reuniões.
Por isso, se aqui estou não é que esteja descansada e precise de me entreter ou que me sinta inspirada ou porque tenha que aqui estar a pagar alguma promessa: é mesmo só porque me descansa a cabeça. E porque, também, faço o gosto aos dedos que gostam de se portar como inconsequentes bailarinos, saltitando sobre o teclado, indiferentes a cansaços, motivos ou descasos. O espírito espairece, os dedos brincam.
Já o contei muitas vezes: em tempos idos fazia tricot (camisolas, mantas), crochet (toalhas de renda), bordados (quadrinhos bordados a ponto pé de flor), tapetes de arraiolos, pinturas, colares e pulseiras. Pelo meio, durante uns tempos escrevi um livro (que se evaporou). Tudo noite adentro. Agora, e desde há uns anos, escrevo aqui, palavras que solto ao vento, sem fazer ideia do paradeiro que escolhem mal se soltam de mim. Mas penso que o motivo é sempre o mesmo motivo: arejar a cabeça, libertar as mãos.
Claro que, se fosse só distrair a mente, poderia deixar-me ficar a olhar para o líquido colorido ou o pó dourado escorrendo pelas ampulhetas ou pelas clepsidras que tenho aqui em casa mas não me dá muito para isso. Gosto imenso destes belos e delicados objectos mas vejo, viro, vejo e está visto. Também gosto de dar corda às duas caixinhas de música: ouço, vejo o mecanismo a rodar, gosto mas, quando a corda chega ao fim, está feito. Mas falta-me qualquer coisa: a minha interacção, as minhas mãos em acção.
Contudo, lembro-me do fascínio que alguns objectos de movimento infinito com imaginativo design me despertaram quando, na companhia de um casal amante de design, visitei galerias e lojas em Amesterdão. Quanta imaginação, quanta arte e engenho. Que surpresa eu sentia perante cada um.
Hoje descobri no The Guardian outro fantástico designer: Andreas Wannerstedt.
E leio:
‘It can be quite meditative’
Scrolling through Andreas Wannerstedt’s Instagram is the digital equivalent of walking into a spa. There are soothing soundscapes and pastel tiles. It’s a curated escape from the mess and stress of the outside world.
This is all deliberate. The Swedish artist posts each animation – from a slowly twisting velvet rope to two halves of a brass ball clicking into place – with hashtags like #relax #calm, #satisfying and #sleep. He has nine volumes of a series called Oddly Satisfying, which fans lovingly describe as “soothing”, “hypnotising” and “extremely fucking satisfying”.
São invisíveis. Habitam a noite, esgueiram-se pelos passeios, pelos pinhais da beira da estrada, pelas esquinas da vida. Ou recebem em casa, quando a têm. Há terras em que estão às portas, convidando quem passa. Outras vezes escondem-se, disfarçam-se.
Por vezes vêm de destinos longínquos. Vinham em busca de uma vida melhor. Algumas nasceram em famílias desestruturadas ou, simplesmente, foram vítimas da má sorte.
O mundo divide-se em grupos. Não serei a pessoa mais indicada para o exercício. Mas, a meu ver, consigo identificar alguns.
Há uns quantos que se acham acima de todos, outra estirpe, uma estirpe que se acha tão acima das restantes que não quer nem saber de mais nada. Habitam o Olimpo e isso basta-lhes. Há, depois, uma parte do mundo que, afortunadamente, não tem de que se queixar e que louva a vida. Todos os dias me sinto agradecida por, até agora, ter feito parte desse grupo. E há aquela parte do mundo, uma parte crescente, que, com ou sem razão, sorri para as selfies, ficciona vidas de ilusão, exibe ao mundo as suas insignificantes vitórias, procura ser universalmente seguida, procura avidamente a aprovação nem que seja através de um 😊 ou de um 👍. E há os outros, os muito discretos, os remediados, os que não têm muita razão para se sentir felizes mas que a vão levando, pouco falando, existindo sem sobressalto e gerindo bem a angústia. E depois há os outros, os silenciosos, os que querem que ninguém os reconheça, os que preferem ser desconhecidos e ignorados, os que aprendem a controlar a vergonha ou a revolta, os que tentam aprender a racionalizar a vida que a má sorte lhes reservou, os que apenas tentam sobreviver.
Tenho muita pena das mulheres que se prostituem. Respeito-as e lamento que usem o seu corpo como instrumento ao dispor de quem não as respeita. Não consigo sentir, no meu íntimo, repulsa ou condenação. Tenho apenas um sentimento de profunda solidariedade. São mulheres como eu.
Amber
Faith
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Fotografias de Mark Laita que também realiza estes vídeos
Pouco tenho a acrescentar. Dia tranquilo, com uma ou outra demanda e com as dúvidas que nos têm ocupado a mente. De manhã caminhámos e, como ultimamente tem acontecido, cruzámo-nos com muitas pessoas. Notoriamente já ninguém consegue manter-se fechado em casa. É normal. Ainda por cima com este tempo amável puxando as pessoas para os seus braços... Mas, ao ar livre, e havendo um mínimo de distanciamento -- e, se não for garantido, com máscara -- acho que tudo bem. Arzinho livre mais bom...!
Enquanto almoçávamos, ligámos a televisão. Estava a Nuno Rogeiro a comentar cenas. E, uma vez mais, senti-me beige. Onde é que ele desencanta toda aquela informação? Li há algum tempo que ele se arma em bom, travestindo-se de espião, fazendo de conta que está a fazer revelações escaldantes, quando, na verdade, diz coisas que estão disponíveis em todo o lado. Não vou nessa. Nos jornais normais, pelo menos, não vêm. Ele mostra fotografias, ele revela conversas, ele sabe de telefonemas, ele divulga relatórios secretos. E mostra as provas. Ouço-o e fico sempre sem perceber: é ele um garganta funda que actua às claras? Um descarado dedo-duro? Um alcofinha new age? E tudo o que ele diz é verdade ou anda há séculos, com ar de quem tem a manga recheada, a espalhar fakes por tudo o que é sítio? Por acaso gostava que me esclarecessem. É que, se tudo aquilo é verdade, gostava que me dissessem como é que ele tem acesso a coisas tão improváveis? E mesmo que me digam que é tudo público, gostava que fizessem o favor de me dizer como é que ele selecciona e relaciona tudo aquilo. É muito jogo. E há um outro mistério a envolver o caso: é que, sendo tudo aquilo tão extraordinário, como é que a coisa não dá brado? E, reparem, nem falei no penteado. É que se juntasse esse pormenor, ainda a situação assumiria contornos mais inexplicáveis.
Mas adiante.
Agora à noite, perante a indigência que é a programação televisiva dominical, fiz zapping e passei pela mais estrídula, descabida e narcisística criatura de que há memória nos escaparates. Pior que a Guilherme. Pior que tudo o que se conhece. Desta vez apresentava-se mascarada de cleópatra ou o escambau. Um carnaval ambulante enfeitado de guinchos e escancaradas fake gargalhadas. O meu marido entrou na sala, olhou para a televisão e, ao vê-la a interagir com um bizarro painel, disse: 'Parece tudo muito rasca, não é...?'. E é, concordei. Desandei rapidamente do canal em busca do que se pudesse ver. Ele disse: 'Não queres acreditar mas a única coisa que se consegue ver é o futebol'. Uma tristeza.
E, portanto, acho que não tenho muito mais a dizer: não sei de nada, não vi notícias nem comentadores. Mantenho-me longe dessa praga que é pior do que a lagarta do pinheiro.
Circulo pelo internacional e, tirando aquelas desumanas e insanas notícias que me fazem ter vontade de hibernar, só coisas sui generis é que call my name. Desta vez foi a notícia de que os monges de uma abadia em França estão a orar para que apareçam clientes para as toneladas de queijo que têm feito e que, graças à covid e à falta de fiéis e devotos a visitar a abadia, correm o risco de passar o prazo de validade. Assim vamos. Penso que é a isto que se chama o novo normal: os padres a rezarem para terem clientes para o queijo. Não sei onde é que isto vai parar. Sempre pensei que a fé não tinha nada a ver com pragmatismos ou prazos de validade. Afinal tem. Se calhar com isso e com mais coisas do género. Credo.
Já agora, por falar em queijo: ao jantar comi apenas uma maçã royal gala -- as que prefiro, das miudinhas, destratadas e saloias -- acompanhada por little fatias de um queijinho artesanal recheado com mel. Dá para imaginarem a delícia dos deuses que é? Claro que não moderei. A moderação cansa-me.
E, vá, para que haja substância nisto, que se junte alguém que faz do perigo a sua profissão -- e que venha o mais rogeiro dizer-me que isto não é nada, que destas tem resmas para mostrar aos espetadores. Espetadores sem c, claro está.
The world's most dangerous bus route 😱 | Mountain: Life at the Extreme - BBC
Dia de sol velado e calor discreto. Caminhámos e, como agora acontece ao fim de semana, encontrámos jovens casais a passear com crianças pequenas em triciclos ou famílias a andar de bicicleta. Hoje também nos cruzámos com quatro rapazes igualmente de bicicleta. Iam a conversar, sorridentes e, ao passarem por nós, desejaram-nos um sonoro bom-dia. Engraçado este hábito. Até os jovens adolescentes que vão entretidos a pedalar e a conversar nos desejam bom-dia. Retribuímos a boa disposição.
A seguir fomos ao supermercado. Voltei a constatar que agora já ninguém se afasta de ninguém. Todos de máscara, claro, mas, ainda assim, ninguém se ensaia nem um instante para se pôr quase em cima de outra qualquer pessoa. Para tirar o pão, então, é um ver se te avias. Todos ao encostados para tirar o pão das prateleiras. Também não me afastei. Fazer o quê: pôr-me ao largo e esperar que desandassem...? Quem me garantiria que não vinham outros? Aquela história do servo que viu a morte em Bagdad e fugiu para Samarra, sabem...? Ná, mais vale ficar onde estamos e esperar que não seja nada.
Depois de almoço fui sentar-me ao sol, no jardim. Levei um livro. Como o sol estava de frente não consegui ler. Fechei os olhos enquanto um pássaro enviava chamamentos do alto de uma árvore. Fui adormecendo. Depois arrefeci. Vim para dentro, tapei-me com uma daquelas mantinhas finas e aveludadas. Estive a fazer pesquisas, a ler.
Por volta das seis voltei ao jardim. Estivemos a equacionar alternativas, a fazer medições. As árvores têm raízes grandes, não lhes devemos mexer. Como tenho um absoluto respeito pelas árvores, a margem de manobra para fazer alterações são escassas.
As árvores de fruto na horta estão em flor. Há ali um microclima que não sei explicar. Parece que o ar é ali mais morno e húmido. Agrada-me muito.
O fim de tarde estava ameno, sabe bem estar cá fora. Mas começou a esfriar. Vim para dentro.
Quando falei com a minha filha e com a minha mãe já era praticamente de noite. Ainda tentei voltar para o jardim mas a lua estava exuberante a guardar o frio. Recuei.
Estou contente por já ter mudado a hora. Vai ser um dia mais curto mas um dia não são dias.
Angustia-me um bocado isto de trabalhar até ser de noite, sem que sobre um bocadinho de dia para mim. Assim, com os dias maiores, talvez possa usufruir da luz do dia. Durante a semana tenho que aprender a usar a luz do dia em meu benefício.
É verdade: tenho andado a vigiar o ninho das andorinas e ainda não as vi. Será que não vêm? Ficarei com pena. Só espero que, se este ano não vierem, venham para o ano. Custar-me-ia saber que o ninho vai ficar ali, sem vida.
Será que faria sentido ter um porquinho da Índia à solta no jardim? Gostava de ter um animalzinho por aqui. Dizem-me que comem a relva, um descanso: nem é preciso cortá-la. Contaram-me que, às vezes, à noite se vêm ouriços cacheiros a atravessar a estrada. Quem me contou não falava daqui mas de outro lugar assim, em que há campo em volta. Uma pessoa conhecida, contou-me que o filho apanhou um e o levou para o jardim. Penso que os jardins são mais felizes se forem habitados por animais. Ocorre-me sempre aquela ideia de ter patos. Mas será que teria que ter um lago? Ou será que os patos não voariam? Mas depois penso que certamente um dia terei um cão. Será que o cão depois não dará cabo dos ouriços ou dos patos?
Tenho também uma coisa para contar: da altura das orelhas e até à altura das sobrancelhas, digamos que na primeira linha de costa, os meus cabelos estão a aparecer brancos. Tal como o meu pai que conservou os cabelos da cor natural até muito tarde e que apenas os tinha grisalhos ali dos lados, aparentemente é também é esse o padrão de branqueamento que o meu cabelo está a seguir. Para os cobrir usei uma coloração que manteve o meu tom. Coloquei a tinta apenas ali na raiz e, apenas antes de o lavar, a espalhei pelo cabelo todo. Ficou bem. Mas neste supermercado aqui mais perto não têm essa marca, têm aliás pouquíssima variedade e quantidade. Comprei de uma outra marca e de outra cor. Agora estou com receio de a aplicar, com medo de ficar muito diferente do que sou. Não sei o que faça. Devia coincidir com umas férias grandes para o caso de ficar absurdamente diferente haver tempo a corrigir. Assim, hesito em arriscar. O que me vale é que, como tenho muito cabelo, vai disfarçando. Mas um dia destes tenho que me encher de coragem.
Também li que o Zoom está a preparar (ou já o tem disponível, não me lembro) um filtro para adoçar as feições quando estamos em videoconferência. Li que milagrosamente tira rugas, papos, olheiras, manchas. Li que as mulheres que têm muitas reuniões por esta via estão a passar-se de tanto verem as suas imperfeições no ecrã. Só espero que o Teams também apareça com isso. O pior é quando voltarmos a estar ao vivo e sem máscara (seja lá quando isso for), sem apelo nem agravo todas as misérias bem à vista. Sou adepta de não disfarçar nada para evitar decepções futuras. Mas digo isto e, na volta, se me aparecer o filtro mágico, não vou resistir. Não se pode dizer que não seja de me deixar sucumbir perante tentações convincentes.
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E é isto. Nada mais a contar. Só me causa espécie que agora ninguém acuse o Costa ou a Marta Temido por sermos o país com os mais baixos números de Covid da UE. Tanto que se babaram todos a acusá-lo de sermos os piores, tanto foguetório atiraram para festejar a crucificação pública de que o Governo foi alvo e agora que vários países estão a braços com a desgraça que começou por bater-nos à porta antes de lá chegar ninguém se lembra de o elogiar e agradecer? Gentinha...
Mas contar, contar, que me lembre não tenho mais nada. A vida corre mansa. O tempo, pelo contrário, corre veloz. E eu estou parada a tentar perceber como melhor me encaixar neste filme.
E agora vou partilhar dois vídeos que prenderam a minha atenção: um muito bonito, um belíssimo pas de deux, e o outro com uma condessa simpatiquíssima e divertidamente depravada (como provavelmente são todas as condessas).
Second Piano Concerto (Shostakovich) – Second movement pas de deux
(Marianela Nuñez, Rupert Pennefather, The Royal Ballet)
A summer spent poolside with a retired countess
Victoria Hely-Hutchinson takes us around her eccentric “bohemian expat retiree” grandparents retreat in the South of France. Known for documenting British lives for publications including New York Magazine and Vanity Fair, Hely-Hutchinson’s short is a relaxingly slow-paced portrait of the “respite for relatives in search of a tan”.
Gosto de histórias de amor. Quando namorava aquele com quem viria a casar-me sentia uma atracção tão absoluta por ele, presumo que fosse aquilo a que também se chama química, que não conseguíamos desgrudar-nos um do outro. Ele ia ter comigo à escola em que eu estudava e eu fazia o mesmo em relação a ele. Cheguei a assistir a aulas práticas dele. Tempos curiosos aqueles. Ao passo que no meu curso era tudo muito formal e todos os alunos levavam tudo muito a sério, no dele tratavam-se todos por tu, alguns professores quase pareciam alunos e reinava a informalidade.
Atravessávamos a cidade para estarmos um com o outro. Almoçávamos juntos, jantávamos juntos, estávamos juntos até de madrugada. Dormíamos pouco para estarmos juntos o mais que podíamos. Visitámos todos os parques e jardins, conhecemos todos os cinemas, não perdíamos as grandes peças de teatro, exposições, ruas e miradouros. Quando ele ia levar-me a casa, a última das quais uma bela moradia na Lapa, víamos as luzes acesas nas outras casas e invejávamos a intimidade que se adivinhava lá dentro. Naquela casa em concreto, ele tinha que ficar à porta. E isso era um sofrimento para nós. O que fazíamos no escurinho do jardim é outra conversa. O que custava era termos que nos despedir.
Quando estávamos juntos, no mínimo estávamos abraçados ou a beijar-nos. Uma vez estávamos em casa dos pais dele e uma das suas tias, a sua tia preferida, uma de quem sempre gostei muito, ao ver-nos naquele chamego, olhou-nos com ternura e disse: 'sempre aos beijinhos, como se as bocas fossem rebuçadinhos'.
Uma vez estávamos na Cantina de Farmácia, uma cantina muito decente que havia por bandas que frequentávamos, estávamos na fila para escolher a comida no self, íamos jantar, e, como sempre, era aquele enlevo de que nem nos dávamos conta, quando um senhor, certamente professor ou investigador, olhou para nós e, a sorrir, disse: Se me permitem, deixem que vos diga que, ao ver-vos, tenho que concordar quando se diz que, quando se casa, se passa da poesia à prosa. Rimo-nos. Éramos poesia em estado puro. Aliás, uma vez estávamos num café onde gostávamos de ir, e estávamos como sempre estávamos, olhando-nos, sorrindo, dando-nos as mãos, ele fazendo-me rir, por vezes fazendo bolinhas de papel com o papel das toalhas ou dos guardanapos e fazendo pontaria ao meu decote, coisa que me fazia zangar com ele e, logo, fazia com que ele tentasse apanhar-me distraída para ver se encestava, e sempre nestas brincadeiras de namorados enfeitiçados, quando um senhor se levantou da sua mesa e nos veio oferecer um papel, pedindo licença para nos oferecer um poema que tinha composto ao olhar para nós. Fiquei encantada, agradecida. Era um poema muito bonito. Guardei-o dentro do livro que tinha comigo e assim o conservei até que o perdi de vista, entretanto casada, a dar aulas enquanto ainda estudava. Tenho pena. Gostava de poder reler o poema. Era do poeta Rui Knopfli.
Gosto de filmes de amor. Não tanto de dramas que metem mortes, sofrimentos, abandonos mas amores arrebatadores, amores que não envolvem dúvidas, amores totais, inquestionáveis, incontornáveis.
Era bom que, por cá, houvesse cinemas ao ar livre como aquele fantástico ao ar livre, em Luanda, salvo erro num bairro que se chamava Alvalade, um cinema em declive, o grande ecrã lá em baixo, bananeiras, nós em socalcos na noite grande e quente, o grande amor a invadir uma noite feita para incendiar os sentidos. Lara. O Dr. Jivago. O Joca -- naqueles dias meu inseparável companheiro, o Joca que dizia que os meus ombros o deixavam louco, que afastava o meu longo e pesado cabelo das minhas costas com o pretexto de que era para me aliviar do calor -- dizendo ao meu ouvido que a Lara era quase tão bonita como eu e eu a rir com a ternura e a cegueira dele. Nos dias seguintes, olhava para mim e eu dizia que não fosse parvo, que não olhasse para mim assim, e ele desculpava-se, insistia que éramos parecidas e eu ria e dizia 'não sejas parvo'. Naquela altura o meu namorado era outro e estava longe, e as noites de África eram estranhamente perigosas. Por vezes, ele dizia: 'quando lá chegares acabas o namoro'. Eu dizia que não e que também não queria que ele acabasse o dele. Ele zangava-se. Eu achava que não daria certo, eu em Lisboa, ele a Norte. Ele dizia que sim, que viria para baixo ou eu iria para cima. E eu achava que não poderia ser. Naquela altura eu sabia muito pouco da vida (hoje ainda sei menos) e achava que os duzentos ou trezentos quilómetros que nos separariam impediriam qualquer amor e não me imaginava a ir viver para o norte nem queria que, por mim, ele se separasse da família de que tanto gostava. Penso que ainda bem. Se tivesse ido naquela onda tão tentadora e caliente provavelmente algum tempo depois não me teria deixado apaixonar como apaixonei por aquele que me fez conhecer o intenso sabor da paixão.
E lembrei-me de escrever isto ao descobrir os dois deliciosos vídeos que aqui partilho convosco. Duas maravilhosas histórias de amor.
Neron and Keira, uma história de amor entre jaguares
Estamos, de novo, apenas os dois em casa. As obras em casa dos hóspedes acabaram e eles regressaram. Enquanto cá estiveram, porque ficava aqui com companhia até tarde (quem sai aos seus não degenera), apenas pegava nisto lá para a uma ou uma e tal da manhã. Portanto, apesar de ler todos os comentários, não consegui responder a nenhum. Foi sempre meio a dormir que acabei cada post. Hoje, contudo, apesar de poder parecer que ia ser dia de quase descanso, foi, na verdade, outro dia dos valentes. Tentámos condensar um dia inteiro em apenas parte dele e, de tarde, fomos a casa da minha mãe, levámos sumos e bolos e um menino e uma menina para fazerem coro nos parabéns a você. Não foi um comportamento dos mais canónicos mas um dia não são dias, e um dia como o de hoje não podia passar em branco. Além disso, depois não poderíamos mudar de concelho. Portanto, teve que ser.
Não queria cantorias, não queria festejos, ela. Mas, creio, eram meros mixed feelings: por um lado custa-lhe alegrias estando a memória do meu pai ali ao lado ainda tão recente, ele no quarto, ela a querer que a maltinha fizesse pouco barulho para não o incomodar, e, por outro, gosta da alegria de nos ter ali a celebrar a sua vida. Sendo dia de trabalho, os netos não puderam ir e sendo proibido circular entre concelhos a partir de hoje, também não poderia ser no fim de semana, o melhor foi o festejo ser mesmo assim, restrito a nós dois e a dois dos bisnetos.
Mas ficou feliz. A vida continua.
A bisneta ensinou-a a fazer algumas coisas no tablet, o bisneto comeu que se regalou e foi ver televisão, todo bem instalado, fomos apanhar laranjas, conversámos, provei o poncho que tem estado a fazer-me -- e, sempre que em casa, estivemos sempre de máscara, com as janelas bem abertas e lanchámos à vez. Os meninos mais pequenos andam na escola, sem máscara, podem trazer o bicho -- nunca se sabe. Fica muito estranho: fomos habituados a esperar uns pelos outros para comermos ao mesmo tempo, fomos habituados a beijar-nos e abraçar-nos quando nos vemos. Agora é tudo diferente.
Mas adaptamo-nos. Que remédio.
Depois fomos levar os meninos a casa e, aproveitando a viagem, fomos à farmácia e, en passant, fomos comprar comida ao restaurantezinho a que, em tempos, íamos. Só funciona em regime de take away. Mas foi um bocado assustador para quem, como eu, vive aqui recatada e bem mandada. À porta do restaurante umas quantas mesas. Presumo que seja o que se chama venda ao postigo. Uns bebem cervejas, outros comem amêijoas e bebem uns copos, outros conversam e fumam. Todos sem máscara, todos em proximidade total. Todos. Uma animação das antigas, tertúlia à maneira. O meu marido quis logo dar meia volta. Como coloco os meus interesses acima dos meus incómodos, de máscara bem afivelada, tentando arranjar um corredor de ar não contaminado, consegui ir buscar uma ementa. E, de ementa em punho, lá fui ter com ele, que estava afastado, para escolhermos o que encomendar. Depois, contrariado (e quase zangado comigo por eu não ter desandado de imediato), lá foi encomendar os comes. Depois fomos fazer tempo e, quando regressámos, continuava a bem frequentada e animada reinação. Todos sem máscara, todos a escassos centímetros uns dos outros, todos falando alto e bom som, ou seja expelindo ar em quantidades generosas. Tal e qual como se não houvesse nem nunca tivesse havido covid.
Não chegámos a casa cedo. E, depois de jantar, ainda estive a resolver o que chegou durante a tarde. E isto depois de me ter levantado com as galinhas. Não gosto nada de ter uma reunião logo à primeira hora da manhã. Nada, nada. Não me importo de trabalhar até às quinhentas. Mas não gosto de interacção humana ao início dos inícios da manhã. Mas, enfim, por vezes tem que ser. Foi mais um dia em que estive numa reunião com o cabelo molhado. Dantes saía de casa com o cabelo molhado mas, pelo caminho, o cabelo secava. Agora vou do banho para a reunião quase directamente, apenas o tempo de me vestir e de tomar o meu rápido pequeno almoço de permeio. Não tem mal: faz de conta que é deliberado, um wet look. Não uso secador mas, ao princípio, ficava a achar que, se calhar, devia usá-lo para não me apresentar quase saída do banho. Agora não importo, até acho uma certa graça.
Por isso, é também mais um daqueles dias em que, se não fosse este gosto em escrever, já deveria era estar entre lençóis. Mas ainda aqui estou, os dedos saltitando alegremente sobre o teclado, os dedos ainda bem despertos apesar da cabeça estar a dormir. Não sei como se explica isto. É um misto de não passar sem escrever com gostar de estar com quem, aí desse lado, me acompanha todos os dias.
Entretanto, ao abrir o YouTube, tenho a novidade que Liziqi ganhou um daqueles prémios do Guinness, coisa que me deixou de queixo caído. Pensava que os guiness eram para a maior feijoada, para o maior bolo rei, para o maior nabo ou para proezas do género. Afinal, toma.
Chinese YouTuber 李子柒 Liziqi earns GUINNESS WORLD RECORDS TITLE
Li Ziqi is a Chinese food and country-life blogger, entrepreneur, and internet celebrity. She activated her YouTube channel on 22 August 2017 and her content is about creating dishes from basic ingredients and tools using traditional Chinese techniques.
Não há o que se possa dizer. Há uma crueldade profunda em todos os que condescendem com o que se passa aqui -- em todos nós. Vêem-se as imagens e percebe-se o autismo de que colectivamente padecemos ao vivermos normalmente como se ignorássemos as condições em que vive parte da humanidade. Somos todos corresponsáveis. Somo-lo tal como foram todos os que fingiam ignorar o que se passava nos campos de extermínio em tempos não muito longínquos. Podemos não ser individualmente responsáveis mas, colectivamente, não podemos deixar de ser considerados cobardes, cruéis, desprezíveis.
Não sei como é possível que se viva como se vive aqui ou em qualquer outro campo de refugiados. É tão mau, tão humilhante (para os que lá vivem e para os que ignoram), tão desumano. E é tão vergonhoso, tão, tão insuportável vergonhoso que custa a ver.
Não vou dizer mais nada. Não há palavras que se possam dizer ao ver estas imagens. É tudo de uma dimensão avassaladora. É devastador. Deixa-me reduzida a nada.
Hundreds of people missing after Rohingya refugee camp fire
At least 15 people have been killed and another 400 are missing after a fire tore through Balukhali camp near Cox’s Bazar late on Monday. More than 17,000 shelters were destroyed, leaving 45,000 people displaced. Emergency services, volunteers and Red Cross staff worked for several hours to control the blaze. The camp houses about 124,000 people, although the surrounding area shelters approximately 1 million Rohingya refugees
Ao fim do dia, tivemos que ir à cidade. Havia comida feita para o jantar. Contudo, o meu marido lembrou-se que os meninos adoram pizza e sugeriu que encomendássemos duas para, no regresso, as irmos buscar. São feitas em forno de lenha, óptimas. Pedimos duas das familiares, gigantes: uma à base de salmão, outra de frango. Mas não lhes dissemos nada. Chegámos e caladinhos. Foram tomar banho e nós nada. O mais novo já lavado, o mais velho ainda a banhos, e as pizzas a serem aquecidas no forno. E, então, deu-lhe o cheiro. Entrou na cozinha, viu o forno aceso, espreitou e... nem queria acreditar, ficou sem palavras. Quando assimilou que eram mesmo pizzas, saiu a correr, entrou na casa de banho e gritou: 'Pizzas!'. O irmão passou-se, não gosta de ser visto em pelota. O mais novo regressou dando pinotes, doido de alegria. Passado um bocado chegou o outro, para confirmar. Parecia que tinham ganho a lotaria.
E foi a alegria: comeram, comeram, comeram. Deliciados. E nós deliciados por vermos a alegria que a surpresa lhes causou. Não é preciso muito para uma criança se sentir feliz. Nem é preciso muito para nos sentirmos felizes: basta sentirmos que estamos a fazer as crianças felizes.
Continuo com muito trabalho pelo que não consigo estar com eles muito tempo. Mas o mais crescido também ainda está com aulas, também não tem muito tempo e o que tem é para estudar pois está com testes. Mas o tempo que estou com eles é uma bênção.
A nível pessoal vão surgindo situações que têm que ser equacionadas e decididas e isso, por vezes, cansa. Sinto, por vezes, que me apetecia que não houvesse nada a resolver, que a vida fosse mais simples. A nível profissional também é sempre a mesma agitação, a mesma canseira. Também me apetecia que, por vezes, não me pusessem problemas para resolver nem que não me caíssem em cima situações das quais não posso fugir. Mas a vida é assim mesmo. As coisas vêm ter connosco e não podemos virar as costas a tudo: algumas vezes temos mesmo que enfrentá-las de frente. Pior ainda quando nos desafiam com carácter de urgência. Eu a querer desviar a cabeça para temas mais interessantes ou para resolver assuntos pessoais e as coisas a aparecerem para ontem. No meio disto apareceu o mapa das férias. Todos temos que marcar as nossas férias. Sei lá quando posso ter férias. O meu marido também. Lá preenchemos aquilo. Mas as férias, agora, parecem coisa hipotética. Sabe-se lá como estão as coisas nessa altura, sabe-se lá que espécie de férias vamos poder ter.
No meio disto, uma vez mais afastada de notícias, sem saber se o sol ainda é uma bolinha remota cheia de pisca-pisca amarelos e se a terra é um pequeno ponto azul perdido no universo, leio que as cartas estão de volta. Cartas em papel, quero eu dizer. E se eu gosto de cartas. Como gostaria de receber cartas. Claro que bom seria recebê-las em papel, folhas dobradas dentro de um envelope entregue pelo Carteiro. Mas já não vou tão longe: já me derreteria se a recebesse por mail. Cartas de desconhecidos, cartas de alguém que nos fala da sua vida e a quem nós depois respondemos, amizade límpida, transparente, confiança total. Não sei se isso é possível na net. Gostava que fosse. É tão bom a gente fazer o que gosta sem ter medo de ser enganada ou de se desiludir.
A quem tiver disponibilidade e se ajeite com a língua (metaforicamente falando, claro) recomendo a leitura:
[In the pandemic, many have rediscovered the sheer pleasure of writing to strangers, with new schemes spreading hope and connection around the world (...)]
As fotografias provêm da selecção das melhores da Tokyo International Foto Awards e aparecem na companhia de James Taylor & Yo-Yo Ma que interpretam Here Comes the Sun
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E porque receio que achem que o post não mereceu a visita e me venham pedir de volta o dinheiro do bilhete, aqui vos deixo um vídeo que é uma graça. Melhor: um vídeo com um senhor que é uma graça. 70 anos. E se ele consegue fazer isto porque não haveriam vocês também de conseguir? Não me dizem?
Recebi uma chamada de uma ex-colega com quem antes falava bastante. Agora estamos em empresas distintas, cada uma trabalhando em teletrabalho, as casas longe uma da outra. Deixámos de nos encontrar quotidianamente pelo que, cada uma com o seu trabalho e a sua família, a oportunidade para nos pormos à conversa não surge naturalmente. Ligou-me estava eu em reunião. Avisei que ligava depois e liguei. Estivemos mais de uma hora, de gosto, à conversa.
Contou-me de um outro, nosso conhecido, que está reformado há uns dois ou três anos e que continua a trabalhar. Diz ela: só sabe trabalhar, não se vê a estar em casa sem nada que fazer. A mulher ainda trabalha, o filho está no estrangeiro, o neto também. Portanto, nada o puxa para casa. Já reformado? Não fazia ideia. Fiquei muito admirada. Deve ser um bocado angustiante uma pessoa saber que já pode, e se calhar deve, ficar em casa, não precisar de mais dinheiro e, portanto, trabalhar apenas porque não sabe, ou não quer, fazer mais nada.
Esta minha ex-colega, que tem família numerosa e que antes relatava vitórias e provações dos filhos, dos netos, dos genros, dos compadres e demais familiares, agora, por causa da covid que a força a estar longe dos familiares, fala-me de animais de estimação, de flores, de passarinhos no jardim, da horta -- e está igualmente feliz. Já antes aqui falei dela. Tudo lhe tem acontecido e tudo ultrapassa com uma perna às costas, sempre na boa, sempre na levezinha.
Hoje, ambas na má língua a propósito de uma outra, rimo-nos a bom rir. E o que ela penou para aturar a outra, uma incompetente e vigarista encartada, uma flausina que mascarava o bluff que era com um rebuscado charme. Mas penou também na desportiva pois achava a outra tão postiça que não conseguia levar a sério tudo o que vinha dela. Agora que a outra deu de frosques, ainda mais na desportiva ela encara aqueles anos que poderiam ter deitado abaixo o seu optimismo. Contou-me cenas da outra, cenas verdadeiramente imperdoáveis, altas sacanices, e fartámo-nos de rir.
Habituada a uma casa sempre cheia e a andar num virote para ir trabalhar longe de casa e para acudir à legião que sempre estava de passagem por sua casa, isto quando a criançada não era lá deixada (o que era quase inevitável dada a profissão dos pais), agora vive o oposto e continua feliz da vida. Perguntei: 'e não sente a falta da barafunda?'. E ela, rindo: 'eu não; vemo-nos por vídeo; e temos tempo, qualquer dia isto passa; e nunca tive uma vida tão regalada como agora; não quero outra coisa'. Diz que faz o mesmo trabalho que fazia antes ou talvez mais mas não perde tempo com o trânsito, que o trabalho em casa caiu para perto de zero e que isso lhe sabe a merecidas férias. E ri de gosto.
Li que umas pessoas estão desesperadamente sós e outras desesperadas por ter um tempo só para si. E perguntam onde nos encaixamos. Fiquei a pensar. Durante muito tempo desejei ter disponibilidade para estar sossegada ou para fazer o que me apetecesse. Agora, com o confinamento, tudo se alterou. Mas porque coincidiu com isto o ter mudado de trabalho e ter pela frente e em mãos um desafio muito absorvente (por vezes, esmagador), o que aconteceu é que o meu tempo de trabalho tem galgado para o tempo do descanso. Talvez por isso, não sinto sombra de solidão. Mas a verdade é que nunca a senti. Não me lembro de alguma vez me ter sentido sozinha. Mesmo se alguma vez o estive, ocupei o tempo a fazer coisas que me sabem bem fazer. Posso agora sentir saudades de estar com os meus, de os ter próximo de mim, mas o tempo em que estou sozinha sabe-me bem. Claro que sozinha também não estou. Mas, de vez em quando, gosto de estar no meu canto e isso é bom.
Contudo, penso nas pessoas que vivem sozinhas e que, com o confinamento, não podem sair e encontrar-se com amigos. Deve ser muito triste. Aí a solidão deve pesar e de que maneira. Penso também nas pessoas que estão vinte e quatro horas por dia com companheiros com quem já não sentem grande afinidade, com filhos que impedem que certas situações se esclareçam de frente, com trabalho a fazer e sem um minuto de privacidade. Deve ser de deixar os nervos em franja, um sufoco, uma asfixia.
Por tudo o que se tem passado na casa e na vida das pessoas, imagino que, logo que isto desconfine a sério, muito desequilíbrio emocional venha a ver a luz do dia. O que tem que rebentar, há-de rebentar quase como uma explosão e isso, antevejo, acontecerá mal se volte a sentir o prazer da liberdade que acompanhará o alívio ou a ausência de medo.
Eu o que me apetece fazer, para além de voltar a ter a família reunida, é passear pelo meu país. Tenho muita vontade de andar a descobrir montanhas ou a beira de riachos escondidos entre arvoredos. Muita, muita.
No outro dia, uma com quem conversava pelo telefone dizia que estava cheia de saudades de fazer retiros daqueles em que passava uma semana ou um fim de semana prolongado enfiada num mosteiro, em silêncio, fazendo meditação, ioga, lendo. Sem computador ou telefone, sem conversar. Só silêncio. Estando em teletrabalho e tendo mandado o companheiro bugiar, sozinha em casa, aquilo de que tem saudades é de retiros de silêncio. Acho notável. E a verdade é que a percebo. Será um silêncio de qualidade ao passo que agora o seu tempo está preenchido com o trabalho e com banalidades. Contou-me, cheia de orgulho em si própria que, no verão, pela primeira vez na vida, foi passar férias sozinha e que tinha adorado. E que essa sensação de liberdade a deixou cheia de confiança e cheia de vontade de ir à procura de coisas novas. Eu ouvi-a espantada com a transformação que senti que estava a operar-se nela.
Vamo-nos adaptando a tudo mas a adaptação é, em si, uma transformação. E há transformações profundas que, forçosamente, nos farão ver o mundo de forma diferente mesmo que as circunstâncias voltem a parecer-se com o que eram antes da fractura da covid. E há decisões que antes temíamos e que, quando menos dermos por isso, nos vão parecer naturais, inevitáveis.
Moral da história? Nenhuma, ora essa. A história de cada um é coisa de cada um e geralmente não tem moral que se cheire.
Tenho dito.
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E agora vou partilhar um vídeo com o que agora gosto de ver -- não notícias, não comentário, não coisas com as quais não aprendo nada. Só coisas tranquilas. Não sei se são coisas úteis ou apenas curiosas. Ou apenas silenciosas. Seja por que for, gosto.
Para o almoço, tinha pensado fazer bacalhau à Brás porque tínhamos descoberto, na despensa, um saco de batata palha. Afinal verifiquei que o saco era pequeno, batata palha gourmet e, portanto, como geralmente acontece com as coisas gourmet, insuficiente. Então fiz metade à Brás e metade à Gomes de Sá. Claro que toda a gente prefere à Brás.
Ao jantar comeram resto do cozido à portuguesa de ontem, todos excepto eu que comi fruta e queijo. Como sei que eles são uns gulosos, para a sobremesa, para além da fruta, tínhamos bolachinhas e biscoitinhos. Não deve ser, bem sei. Mas, como todas as avós que são casos perdidos, também eu acho que, logo que regressem ao seu habitat natural, retomarão a dieta adequada. Agora é como se fossem dias de festa. O pior é que tenho a mesma condescendência também para mim. Não vou passar sem uma dieta das valentes o que é um desgosto.
De tarde fomos passear. O meu marido ficou em casa, certamente deitado no seu sofá, certamente a ver futebol, sossegado da vida. Vão, vão, disse ele. Fomos aqui perto, muito perto. Já tinha estado ali pelo menos três vezes e, no entanto, não tinha visto aquele bocado tão bonito, tão tranquilo e tão verde. Quando se pensa que se conhece uma coisa, um lugar ou uma pessoa geralmente algum tempo depois percebe-se que não conhecemos nem um bocadinho.
A minha filha fotografou-nos. Em algumas fotografias quase desapareço atrás dos rapazinhos, de tão grandes que estão.
Também estive a ajudar o mais crescido com a matemática: funções e equações. Não estava muito bem. Queixa-se que não gosta muito das aulas online, que não gosta de prender a aula com dúvidas, diz que se fosse ao vivo seria mais fácil. Não sei se é mesmo isso, se é desculpa. À-vontade não lhe falta pelo que acredito que seja mesmo o que diz.
No outro dia foi a vez do mais novo ser entrevistado pela escola: escolheram uns quantos para se pronunciarem sobre a escola online. Estava no meu canto, gosta muito de lá estar. Como não tinha nenhuma reunião àquela hora, cedi-lho. Ouvi-o a falar durante bastante tempo. Gosta de ter aulas assim mas tem saudades dos amigos, gostava de regressar.
Uma vez mais, hoje não vi notícias nem comentadores. E, ao vaguear pelos nossos jornais e pelos outros, só uma coisa despertou a minha atenção. Ando niquenta, de má boca. Nada me diverte, nada me interessa. E desta vez nem foi uma notícia, foi uma fotografia. Enfadada que ando com a seca que são notícias fabricadas, requentadas, reprocessadas, gastas e chatas, é com coisas um bocado do além que me entusiasmo. Mas é um entusiasmo qb pois não tive paciência para ler na íntegra a notícia que acompanha a fotografia. Fiquei foi a pensar na estupidez e na arrogância ignorante de quem se acha o maior ou por ter um grande sucesso profissional ou por ganhar rios de dinheiro ou por ter lido tudo o que há para ler ou por ter nascido destituído de bom senso e acha que o que sabe é tudo o que há para saber. Como se isso os protegesse dos excessos de temperatura, de pressão, de ataques de tosse, de covid e de toda a espécie de adversidades. Qual nada... basta uma coisa de nada para o mais poderoso do mundo cair para o lado e bye bye minhas encomendas.
E depois vem um bicho que mais parece um coiso que um bicho, um coiso insuflado, um coisa saído da imaginação de um qualquer pintor maluco ou um autor de BD e que, não senhor, não é ficção coisa nenhuma, é real e bem real e que, em cima disso tudo, ainda é resistente para caramba. Anda por aí a ser levado para o espaço para ver a quanto resiste e, com aquele aspecto, há-de resistir a tudo.
E, portanto, daqui por algum tempo não nos admiremos quando percebermos que o romantismo lunar foi irremediavelmente carcomido por tardígrados. Por enquanto, conhecem-nos como milimétricos mas, quem nos garante que não?, um dia destes desatam a crescer e viram monstros devoradores, ocupam planetas, ocupam ovnis, ocupam toda o vasto universo e aparecem-nos de volta para se rirem de nós e, no fim, comem-nos. Cara para isso têm eles.
A quem tenha disponibilidade, recomendo a leitura do artigo do Guardian sobre esta invencível criatura: Tardigrades: nature's great survivors (The microscopic animals can withstand extreme conditions that would kill humans, and may one day help in the development of Covid vaccines. How do they do it?)
E a todos os machos-alfa ou fêmeas alfa, beta, gama ou delta que por aí ainda andam ou a todos os intelectuais de pacotilha ou aos políticos de meia tigela que gostam de se armar ao pingarelho o que tenho a recomendar é que, de cada vez que se achem os maiores, se ponham ao espelho e avaliem o quanto ainda lhes falta para serem tão bons como os bravos coisinhos insuflados, nomeadamente quanto dariam para terem uma boquinha de ventosa assim como a deles. Que beijocas mais boas que haveriam de dar, não era...?
Tardigrades Are the Toughest Animal on Earth that can Survive Space and Volcanoes
Tardigrades, also known as water bears or moss piglets, are the toughest and probably the weirdest animal species on Earth. Tardigrades are eight-legged micro-animals that can withstand just about anything, from mass extinctions to the vacuum of outer space, to the pressure of the Mariana Trench, the deepest point on Earth, and radiation 1,000 times stronger than humans can handle.
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Tenho a confessar que a Arpi Alto está aqui a interpretar Sareri Hovin Mernem apenas porque sim e não porque tenha cara de tardigrada ou porque o que canta sirva para embalar coisos insuflados
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E, para que não pensem que estou numa onda gótico-tremendista, partilho um outro vídeo que é daqueles bons, zen, meditação no seio da natureza
Encontrando a conexão
What we are truly lacking is a connection with the wild world and its rhythms. Grant takes us out into the Cape Floral Kingdom, where we kick off our shoes and walk barefoot on the earth, touch the bark of a tree, watch a spider spin a web, listen to the birds singing in the branches above. We reawaken our senses.
So no matter where you live, get out there and be wild every now and then. You'll find connection again.
Não sou dada a filosofar. Falta-me vagar e motivação para ser ponderada e pra me deixar estar a pensar nos diversos ângulos das questões, sopesando-os e pondo-os em perspectiva. Por isso, não sou capaz de dissertar sobre o propósito da nossa existência ou, sequer, sobre se há propósito ou, ainda menos, sobre os limites da nossa existência.
Sei que está aqui uma pessoa a escrever e que essa pessoa sou eu. Mas não sei se há átomos dentro de mim que tenham vindo de outros seres ou se há átomos que tenham saído de dentro de mim e que agora habitam outros corpos. Aliás, digo que não sei porque, não sendo estudiosa da matéria, não tenho como sustentá-lo mas acredito que há. Só não sei que mais se pode concluir a partir daí. Também não sei o que é a alma ou a personalidade de uma pessoa nem sei se parte disso vai nos átomos que circulam por aí. De um bocado de pele se faz uma pessoa que, se calhar, vai ser uma cópia da dona da pele original. Por outro lado, põe-se o coração de uma pessoa em vez do coração de uma outra e quem o recebe continua a amar a mesma pessoa que amava antes. Claro que o coração é um aparelho de bombagem e não um produtor de sentimentos. E claro que tudo isto é complexo demais para ser explicado numa página de um blog onde tanto se fala de flores como de violência doméstica ou de receitas de sopa de bacalhau.
O que posso dizer é que, supondo saber que esta que vos escreve sou eu, pouco mais posso dizer do que isso. Não sei se apenas existo desde que as células primordiais começaram a dividir-se no ventre da minha mãe, ou se o marco é o momento em que saí do seu corpo; nem sei se, com todas as células que nasceram em mim desde que nasci, continuo a ser a mesma. Mas creio que, mesmo que o soubesse, de pouco isso me serviria.
Haverá, por aí, muita gente que saiba explicar os milagres ou os acasos da existência. Eu não. Como disse, não sou dada a filosofar nem sei dos gregos as lições que a sua literatura e a sua história têm para nos ensinar. Nem li a Bíblia -- apenas, de vez em quando, a abro ao acaso e leio o que lá se mostra. Mas o que li felizmente não me retirou a capacidade de me espantar com tudo o que nasce e renasce, como se acontecesse pela primeira vez, magia em estado virginal. Aceito e de bom grado cultivo a minha ignorância. Estou muito ciente da infinitude do conhecimento (do conhecimento existente e do que está por descobrir) e, humildemente, aceito que jamais poderia abarcar uma sua infinitésima parte pelo que prefiro reconhecer que não passo de minúscula partícula que está de passagem. E, assim sendo, limito-me a espantar-me com a maravilhosa coreografia que parece unir as infinitas pontas soltas que vogam pelo universo.
Isto dito não significa que não tente, na insignificante medida das minhas limitações, deixar algumas marcas da minha passagem ou que não deseje deixar os lugares por onde passo melhores do que os recebi. Por vezes, quando fazia os tapetes de arraiolos, pensava: vão sobreviver-me; são fruto do meu trabalho e existirão muito para além da minha vida. E, ao pensar isso, ficava contente. Penso também no que aqui escrevo. Se a internet continuar a existir, as minhas inúteis palavras poderão continuar a ser lidas muito para além da minha existência. Talvez, nessa altura, algumas pessoas pensem que, através das minhas palavras, serei eu ainda a existir. E isso, para mim, é um mistério tão insondável e irrelevante que claro que me intriga e agrada.
Entretanto, recebi há poucas horas um mail que me deixou dividida. Uma pessoa, um jovem que eu acho muito válido e promissor e do qual lamento a relativamente baixa escolaridade, diz, no mail, no meio de muitas outras observações, que tenciona investir na sua formação. Fiquei contente com isso. Tudo farei para o apoiar. Disse-lhe isso. Mas, pelo que ele escreveu, acho que tenho a aprender com ele. Disse-lhe também isso. Admito que fique surpreendido por eu dizer que acho que tenho a aprender com ele. Mas tenho. E se eu conseguir que mais pessoas acreditem em si próprias e trabalhem para se valorizar mais contente fico. E se eu vier a saber que progrediram e que, daqui por algum tempo, estão onde eu hoje estou, melhor ainda. Contudo, ao escrever isto, penso: porque é que é importante que alguém chegue onde hoje estou? É dúbio que seja importante, até para mim. Mas acho que sei porquê: porque posso ajudar algumas pessoas. E é bom ajudar.
Hoje também plantei duas flores. Espero que vinguem. Gosto de flores. São uma desinteressada manifestação de perfeição.
A Primavera já se faz sentir por todo o lado. Descobri hoje cachos de glicínias. Ainda não os tinha visto. Reparei também que a magnólia está a cobrir-se de folhinhas verdes, as belas flores começando a definhar, a terra coberta das suas já murchas pétalas cor de rosa. Entretanto, as hastes do chorão estão a cobrir-se de folhinhas, lindas, etéreas, formando uma cortina vaporosa que esvoaça à mínima aragem. A amendoeira está verde, orgulhosa. Tudo está a renascer. Tenho vontade de ter tempo para ter uma horta bem tratada. Tenho vontade de plantar mais umas árvores (eu sei, eu sei: em Outubro ou Novembro), tenho vontade de sentir que o bocadinho de terra onde me foi dado o privilégio de existir ficará mais verde, mais saudável e mais belo do que estava antes de eu por cá passar.
Li que algures na China, uma área desertificada, toda pó e nada, se transformou num imenso espaço verdejante e fértil [‘Our biggest challenge? Lack of imagination’: the scientists turning the desert green]. Li e quero acreditar que é possível ter esperança em que poderemos tornar a trazer a vida aos cemitérios de terra seca e ausência de memórias. Li que uma mulher plantou 200.000 árvores. São notícias destas, mesmo que se refiram a acontecimentos com anos ou que ocorreram a milhares de quilómetros, que me interessam. Permitam que os partilhe convosco.
Greening China's Loess Plateau -- by John D Liu
This short take is extracted from "Hope in a Changing Climate", John D. Liu's wonderful documentary. It shows a breathtaking "before and after" camera sweep of a Chinese landscape transformed from barren desert to lush farmland by the use of agroecology and agroforestry. My eyes get tearful whenever I see this.
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As fotografias provêm do Guardian: Week in wildlife – in picturese vêm ao som deSunrise Through The Dusty Nebula por Hannah Peel