Gosto de histórias de amor. Quando namorava aquele com quem viria a casar-me sentia uma atracção tão absoluta por ele, presumo que fosse aquilo a que também se chama química, que não conseguíamos desgrudar-nos um do outro. Ele ia ter comigo à escola em que eu estudava e eu fazia o mesmo em relação a ele. Cheguei a assistir a aulas práticas dele. Tempos curiosos aqueles. Ao passo que no meu curso era tudo muito formal e todos os alunos levavam tudo muito a sério, no dele tratavam-se todos por tu, alguns professores quase pareciam alunos e reinava a informalidade.
Atravessávamos a cidade para estarmos um com o outro. Almoçávamos juntos, jantávamos juntos, estávamos juntos até de madrugada. Dormíamos pouco para estarmos juntos o mais que podíamos. Visitámos todos os parques e jardins, conhecemos todos os cinemas, não perdíamos as grandes peças de teatro, exposições, ruas e miradouros. Quando ele ia levar-me a casa, a última das quais uma bela moradia na Lapa, víamos as luzes acesas nas outras casas e invejávamos a intimidade que se adivinhava lá dentro. Naquela casa em concreto, ele tinha que ficar à porta. E isso era um sofrimento para nós. O que fazíamos no escurinho do jardim é outra conversa. O que custava era termos que nos despedir.
Quando estávamos juntos, no mínimo estávamos abraçados ou a beijar-nos. Uma vez estávamos em casa dos pais dele e uma das suas tias, a sua tia preferida, uma de quem sempre gostei muito, ao ver-nos naquele chamego, olhou-nos com ternura e disse: 'sempre aos beijinhos, como se as bocas fossem rebuçadinhos'.
Uma vez estávamos na Cantina de Farmácia, uma cantina muito decente que havia por bandas que frequentávamos, estávamos na fila para escolher a comida no self, íamos jantar, e, como sempre, era aquele enlevo de que nem nos dávamos conta, quando um senhor, certamente professor ou investigador, olhou para nós e, a sorrir, disse: Se me permitem, deixem que vos diga que, ao ver-vos, tenho que concordar quando se diz que, quando se casa, se passa da poesia à prosa. Rimo-nos. Éramos poesia em estado puro. Aliás, uma vez estávamos num café onde gostávamos de ir, e estávamos como sempre estávamos, olhando-nos, sorrindo, dando-nos as mãos, ele fazendo-me rir, por vezes fazendo bolinhas de papel com o papel das toalhas ou dos guardanapos e fazendo pontaria ao meu decote, coisa que me fazia zangar com ele e, logo, fazia com que ele tentasse apanhar-me distraída para ver se encestava, e sempre nestas brincadeiras de namorados enfeitiçados, quando um senhor se levantou da sua mesa e nos veio oferecer um papel, pedindo licença para nos oferecer um poema que tinha composto ao olhar para nós. Fiquei encantada, agradecida. Era um poema muito bonito. Guardei-o dentro do livro que tinha comigo e assim o conservei até que o perdi de vista, entretanto casada, a dar aulas enquanto ainda estudava. Tenho pena. Gostava de poder reler o poema. Era do poeta Rui Knopfli.
Gosto de filmes de amor. Não tanto de dramas que metem mortes, sofrimentos, abandonos mas amores arrebatadores, amores que não envolvem dúvidas, amores totais, inquestionáveis, incontornáveis.
Era bom que, por cá, houvesse cinemas ao ar livre como aquele fantástico ao ar livre, em Luanda, salvo erro num bairro que se chamava Alvalade, um cinema em declive, o grande ecrã lá em baixo, bananeiras, nós em socalcos na noite grande e quente, o grande amor a invadir uma noite feita para incendiar os sentidos. Lara. O Dr. Jivago. O Joca -- naqueles dias meu inseparável companheiro, o Joca que dizia que os meus ombros o deixavam louco, que afastava o meu longo e pesado cabelo das minhas costas com o pretexto de que era para me aliviar do calor -- dizendo ao meu ouvido que a Lara era quase tão bonita como eu e eu a rir com a ternura e a cegueira dele. Nos dias seguintes, olhava para mim e eu dizia que não fosse parvo, que não olhasse para mim assim, e ele desculpava-se, insistia que éramos parecidas e eu ria e dizia 'não sejas parvo'. Naquela altura o meu namorado era outro e estava longe, e as noites de África eram estranhamente perigosas. Por vezes, ele dizia: 'quando lá chegares acabas o namoro'. Eu dizia que não e que também não queria que ele acabasse o dele. Ele zangava-se. Eu achava que não daria certo, eu em Lisboa, ele a Norte. Ele dizia que sim, que viria para baixo ou eu iria para cima. E eu achava que não poderia ser. Naquela altura eu sabia muito pouco da vida (hoje ainda sei menos) e achava que os duzentos ou trezentos quilómetros que nos separariam impediriam qualquer amor e não me imaginava a ir viver para o norte nem queria que, por mim, ele se separasse da família de que tanto gostava. Penso que ainda bem. Se tivesse ido naquela onda tão tentadora e caliente provavelmente algum tempo depois não me teria deixado apaixonar como apaixonei por aquele que me fez conhecer o intenso sabor da paixão.
Barbara e Stanley: um romance moderno
________________________
Pinturas de Hee-Choung Yi
_________________________
Desejo-vos um belo sábado
Que bela história-declaração de Amor. Com todos os sentidos à flor do papel. E que bom rever um bocadinho do filme Dr Jivago.
ResponderEliminarQue o fim de semana seja florido, feliz e amoroso.
Houve apaixonados do Norte que jamais se perdoaram de não terem subido para o Sul...
ResponderEliminarQuerida amiga Dolores,
ResponderEliminarTua postagem é demais!
Nos leva para os umbrais
Dos verdadeiros amores
Onde tudo é brilho, flores,
Luz, paixão, gozo e prazer
Na forma de se viver
Sob o teto do amor
De qualquer forma que for
Transcendente para o ser.
Parabéns! Aquela cena do filma Dr. Jivago é maravilhosa. Lembro que à noite os lobos uivavam. Foi um dos filmes mais belos e românticos que assisti. ... e revi várias vezes - o clássico dos clássicos e filmado na Espanha... Os dois atores são belos. Pobres de nós mortais e comuns, mas temos o mesmo direito de amar e sermos felizes. Eu sou um amante contumaz do amor. Obrigado pela partilha! Abraço cordial. Laerte.