Levantei-me cedo. Ainda antes de me vestir, abri a janela, os estores e os vidros. Ouvi logo os passarinhos. Têm andado tão arredados. Regressaram com o sol, animados e cantadores.
Sol e eu já de blusinha colorida e fresca. E calças brancas, claro. Depois, na rua, percebi que ainda havia fresco no ar. Por cima, vesti uma túnica de jersey quentinho. Fiquei melhor. Brincos brancos para ter uma luzinha de cada lado e da mesma cor que as calças. Sou assim, tento sempre que haja alguma liaison entre as coisas.
O pequeno almoço foi igual ao de sempre. Não sou capaz de torradas, café com leite, coisas assim. Sou de frutas frescas, kefir e frutos secos.
Quando fui à horta, estava tudo ainda envolto em alvura, uma névoa muito leve, o frio da noite ainda presente.
[Não tinha a máquina, não registei a maravilha que presenciei. As fotografias que aqui estão são as que fiz à tarde.]
Logo depois chegou o casal que veio cá ver o jardim e de quem esperamos ideias iluminadas. Olharam, mediram, conversaram, observaram. Gostei que tivessem ouvido os chilreios. No fim, oferecemos-lhes laranjas, tangerinas, louro, alecrim. Falam com a língua adoçada de quem à língua portuguesa soube juntar o afecto sorridente, a mestiçagem e a proximidade dos corpos que o calor sempre induz.
Quando estávamos no jardim a despedir-nos deles, ouvimos um sonoro e alegre 'olá, bom dia'. Eram os anteriores proprietários. Estavam de bicicleta, ela de mangas curtas, ele de calções. É sempre conversa animada e solta.
Ficaram contentes por ver as magnólias. E admirados com a força da trepadeira, toda florida. Contaram coisas. Os quatro de máscara, claro, mas, ainda assim, conversando ao sol. Quase parecia que estávamos a ver um tempo normal. Vivem agora numa casa que a anterior proprietária construiu tal como eu vivo na casa que eles construíram. Ela que adora jardinagem e que pôs tanto de si no jardim que agora é meu, tem agora a seu cargo o jardim que outra que não ela escolheu. A vida avança assim, nem sempre com uma lógica facilmente perceptível.
Simpatizo com eles. Há neles qualquer coisa de parecido connosco.
Só depois fomos fazer a nossa caminhada. Já não era cedo. A bom ritmo, a aproveitar o piso não estar molhado, não haver vento, chuva, frio. Caminhar ao sol é muito bom.
Quando comecei a fazer o almoço já eram quase duas da tarde. Tinha deixado maruca a descongelar. Fiz, pois, uma das minhas refeições preferidas: peixe cozido com batata normal e batata doce, cenoura, feijão verde, ovo. Temperei com azeite e sumo de um limão que fui apanhar.
Voltei a lembrar-me de quando estava na faculdade e só ia a casa ao fim de semana. Só me apetecia peixe cozido. Pedia à minha mãe que tentasse ter pescada de anzol, peixinho fresco. E batatas cozidas temperadas com azeite. Curiosamente é também o prato preferido da minha menininha linda: peixe cozido com batatas. Um questão genética, pelos vistos.
Depois de almoço, fui para o cadeirão de relax que está na sala de cima, ao sol. Estive a ler um livro de poemas manuscritos e, mais do que a ler os poemas em si, estive a ver a caligrafia dos poetas. É sempre com surpresa que vejo a letra das pessoas. Pessoas que penso terem personalidade forte aparecem com letrinha miudinha, atormentada, por vezes infantil. Outros, que escrevem poemas duros, crus, aparecem com letra de menina, desenhadinha, como se ainda se esforçassem por não desiludirem a mestre-escola. Outras, que pensava serem mulheres desempoeiradas, mostram uma letra atravessada por quebras, olhares desconfiados, receios. Uma com uma letra agressiva, talvez deprimida, uma letra pequenina, apertada, sem espaços, uma letra angustiada. Sempre que vi uma caligrafia a saber respirar, com um andamento fluido e sereno, até respirei de alívio. Curiosamente a letra de que mais gostei, não que seja bonita ou cuidadosamente desenhada, mas porque mostra alguém que tem prazer nas palavras e, certamente, na vida, é um poeta que bastante aprecio (e que já aqui esteve de visita várias vezes).
Não sei se adormeci, estou em crer que, quanto muito, apenas me deixei estar de olhos fechados. Pensei: vou tentar meditar. Respirar. E creio que imediatamente desliguei. Mas creio que por breves instantes. Não sei bem.
Estive também a ver um diário de Susan Sontag, mas não muito. Pensei que, com um dia tão bonito, era um erro estar dentro de casa.
Voltei para o jardim. Da casa dos vizinhos misteriosos vinha conversa animada, conversa de rapaziada, não percebo o que dizem mas percebo que brincam uns com os outros. Há risos, às tantas um deles a cantar.
Uma rola passeava. Aproximei-me. Olhou para mim e deixou-se estar. Fiquei muito admirada. Apenas quando passei a linha vermelha invisível, que apenas ela sabe onde está, levantou voo, devagar.
Depois andei de cabeça no ar, como tanto gosto. Na rua, ouvi vozes. Acerquei-me. Um jovem casal seguia com um bebé num carrinho, um mais crescidinho de bicicleta com rodinhas e uma pequenina de triciclo. Os cães da casa do lado ladraram à passagem daquela turminha. Não me viram. Andava em silêncio a fotografar flores, pássaros, observei as sombras a ocuparem progressivamente todo o jardim.
Começou a esfriar. Voltei para casa.
Fizemos duas videoconferência com a família. O mais crescido está com o cabelo mais comprido, mais ondulado. O mano contou sobre as suas boas notas. Depois quiseram mostrar o seu abraço que mais não é que um golpe de judo em que acabam os dois a cair. A bisavó espanta-se com a robustez do sofá. A menininha linda prega-me partidas, tira-me o som, manda mensagens, mostra os joelhos esfolados, o mano do meio conversa com a bisavó, pergunta pelo seu antepassado presidente, o mais novo mostra-nos que está sem paciência para tanta conversa. Tenho vontade de abraçá-los.
Mas já estamos a meio do mês de Fevereiro. O tempo quase desaparece, tão rapidamente corre. Não tarda tê-los-ei aqui a correr e a espantar as rolas.
A minha filha perguntou se tínhamos ido à praia. Não. Creio que não se pode ir. Não sei. Mas fiquei com saudades do mar. Tenho estado a escrever e com a cabeça nisso. Será que se pode?
Depois, a minha filha esteve a enviar-nos fotografias de quando os miúdos eram pequenos. Estávamos na casa que o meu filho estava a recuperar, íamos para lá ao fim de semana, uns pintavam muros, outros arranjavam as paredes da cave. As crianças adoravam, sentiam que faziam parte daquela intensa actividade que envolvia os crescidos. As fotografias mostram-nos felizes. Na altura ainda eram apenas quatro. Já não me lembrava há quanto tempo tinha sido, pensei que há menos. Afinal, chegou o esclarecimento: já há seis. Seis anos. Tão depressa. E, no entanto, tantas coisas se passaram nas nossas vidas neste curto espaço de tempo.
Viver todos os pequenos instantes para que, quando olhamos o passado, não sintamos que os desperdiçámos -- isso é o que sempre pensei. E agora, nestes meses de confinamento, parece que se formam hiatos em que não consigo perceber a dinâmica do tempo. Talvez que, mais do que dinâmica, se deva pensar em inércia. Talvez seja isso.
Agora que escrevo já é domingo. Lembro-me de quando ao domingo de manhã púnhamos a música alto e bom som e cantávamos a plenos pulmões, eu dançando na maior alegria, os miúdos brincando, entretidos. Ou viriam amigos passar o dia a nossa casa ou iríamos nós a cada deles. A ver se amanhã repito a graça. Apetece-me música alto, apetece-me dançar.
Obrigada pelo belo texto e pelas belas fotos. Bom começo de domingo no que conta e no florir tão bom das recordações e do quintal.
ResponderEliminarGosto muito de magnólias e já passei esse gosto para as minhas filhas. Uma delas perguntou-me há pouco: mãe, já viste as magnólias?
Um beijinho e um domingo com felizes imagens e palavras.
Tanta foto linda, como este belo domingo solarengo, azulão e de bem quentinhos 20ºC.
ResponderEliminarUm lindo domingo, Riqueza!
Olá Maria Dolores,
ResponderEliminarO tempo frio, escuro, húmido, ainda por cima estando fechada em casa a trabalhar, deixa-me inerte e sombria. Mas, quando o sol desperta e a temperatura sobe, parece que o meu ânimo, tal como as flores, desponta. Fico com vontade de fotografar, de andar de roda das flores a maravilhar-me com a sua perfeição. E as magnólias... que lindas são!
Ainda bem que o meu estado de espírito passou um pouco pelas palavras. Agradeço as suas palavras simpáticas.
Um beijinho também para si, para as suas filhas e demais família.
Uma semana feliz.
Olá Francisco,
ResponderEliminar20º? Não sei se aqui o tempo foi tão longe... 20º... um verdadeiro abuso... Esteve-se bem ao sol mas diria que não mais que uns 18º. Mas não sei.
Espero que os seus 20º tenham sido vividos em azul e alegria.
Uma bela semana, Francisco. Tudo de bom para si!