sexta-feira, dezembro 04, 2020

Conto de Natal: o lobo e a gatinha

 


A gatinha anda por aí. Branquinha e cor de mel. Silenciosa. Apanha sol, desliza por entre as flores, disfarça-se por entre as sombras, oculta-se em plena luz. Existe e isso chega-lhe. Quando se espreguiça sabe que é feliz e essa é a felicidade maior, a que não precisa de ser procurada. Por vezes brinca. Brinca às escondidas, a gatinha. Foge, espreita, vigia, tem vontade de se aproximar mas também tem vontade de fugir, e hesita. Hesita, hesita. Esconde-se. Brinca. Não diz nada. À gatinha nunca ninguém ouve uma queixa, não é disso. É mais de virar as costas e dar um bye. Mas fica de longe, a espreitar. A esperar. A querer aproximar-se. 

Escuta, confunde-se com o silêncio. E espreita. Observa. Talvez pense. Ou talvez não. Não é de pensar, é mais de sentir.

Mas, na sua inocência de gatinha feliz, ela sabe que o mundo não é bem assim, não é só o muro em que se deita ao sol, os carreiros por onde se esgueira entre as árvores, os pássaros que por ali andam. Não, não. Ela sabe que há perigos.


Muitas vezes pensa que, se fosse de pensar, pensaria no que faria se o perigo acontecesse. Ocorre-lhe que não sabe. Não sabe pensar nem sabe o que pensaria se pensasse. Por isso não se defende. Nem se atormenta. Se fosse outra a sua natureza talvez se amedrontasse com pensamentos envoltos em medo: Ai... Se surgir um lobo... o que farei? Assustar-me-ei? Morrerei de aflição? Esconder-me-ei? Desafiarei o lobo? Ou esperarei que ele se decida e só então verei? 

E o lobo? O que faria o lobo? Assustar-se-ia com a doçura da gatinha? Teria coragem de atacar quem parece nada temer?

Talvez o lobo tivesse vontade de chamar a gatinha. Mas não sabe o seu nome. Se quiser chamá-la, talvez se limite a fazer bschhh, bschhhh, bschhh. De que outra forme a chamaria? Apenas com o bater do seu coração? Talvez o lobo pense que, se tivesse dois corações, assim a gatinha o ouvisse. Assim, não ouve. Então, entre respirações, talvez ensaie o tal chamamento: bschhhh, bschhh. 

A gatinha fará de conta que não ouve. Gosta de fazer que não percebe, gosta de se fingir desinteressada. 

Talvez o lobo se deite, silencioso, disfarçando o tremor que lhe nasce da ansiedade, talvez em surdina balbucie bchhh, bschhh, bschhh. Os olhos luzindo na noite, a respiração ofegante, o lobo quer mas não quer, quer mas não quer. 

Que faria ele se estivesse perto da gatinha? Não sabe. Não sabe lidar com gatinhas despreocupadas, felizes. Receia que a gatinha quebre o seu coração em dois. Ficaria, então, com dois corações mas incompletos, despedaçados.

Recuará, certamente, o lobo. Hesitará. Os lobos são seres literários, uivam em silêncio na calada da noite, são seres solitários, preferem viver nos sonhos, nas páginas dos livros, preferem a companhia das palavras. São seres dúplices. Atravessam os caminhos frios e sombrios em que não há vivalma, escondem-se onde ninguém os pode ver, vivem em grutas, são vultos, confundem-se com vultos, desdobram-se em vultos. São obscuras emanações da noite. Desconhecem a voluptuosidade do sol sobre a pele, desconhecem a alegria de pouco mais saber do que viver sem pensar.

Mas o lobo é também um ser atento e cultivado, sabe que é natal. E, então, armado em bonzinho, anda um pouco mais, rasteja por entre as ervas húmidas da noite, o bafo morno transformado em fumo, quase deslizando por entre as silenciosas sombras da madrugada, põe o peito a descoberto para que melhor ela lhe arranque o coração, mostra as patas cheias de cicatrizes, quer que a gatinha saiba que já foi ao fim da noite. Depois aproxima-se ainda mais e sussurra: rom-rom... rom-rom... rom-rom...

Quanto à gatinha não vou nem dizer qual a reacção. O conto é de natal mas convém que tenha algum suspense, pelo menos para poder ter continuação.


Miaaaauuuuuuuuuuuuuu.....................................

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E um dia feliz para todos, sejam vocês gatas, gatos, lobos ou lobas.

2 comentários:

  1. Tempos modernos: no fim, o lobo come a menina e a avó da menina. Ela com 20, a avós com 58. Escapa a mãe por não constar da história.

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  2. Olá Anónimo,

    Quanta ingenuidade... Acha mesmo isso... Ná... Sabe o que a gatinha, a menina, a avozinha e até a mãe da menina, que não faz parte da história, fizeram...?

    Quer que lhe conte?

    Ok, eu conto.

    Domesticaram o lobo. Óbvio. Agora o lobão, feroz, vozeirão, quando vê a gatinha abana o rabo, levanta a patinha e diz béu-béu. Um fofo.

    😜

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