segunda-feira, novembro 02, 2020

Sempre existirão dentro de nós
[e, ainda, a despropósito, aquelas insignificantes minudências de que a vida é feita]

 


Não há um dia específico para lembrar aqueles que partiram. No outro dia a minha mãe, ao conversar comigo sobre uns amigos de juventude, ia referindo um e outro e acrescentava 'já morreu' e a seguir 'também já morreu'. Às tantas, resumiu: 'desses tempos, só já cá estou eu e ...' e referiu mais umas duas ou três pessoas. Depois acrescentou que isso lhe faz um bocado de impressão. Imagino. Penso algumas vezes como será quando eu tiver a idade dela, vendo-me cada vez mais perto do fim da linha. 

De todos os que, da minha família, se foram nos últimos tempos, guardo memórias que acarinho. Não tenho para elas um dia em especial. As memórias vêm quando vêm. Não penso neles como seres ainda com matéria que justifique uma visita. Para mim, fisicamente já não existem. Uns estão enterrados, outros foram cremados. De uns foram depositadas as cinzas, de outros havia a ideia de as deitar ao vento em lugares que lhes eram queridos. 

Por isso, o dia em que se recordam os que partiram não tem, para mim, qualquer significado. É apenas mais um dia. 

A vida é isto mesmo, um daqueles tapetes rolantes em que entram uns, saem outros. Quanto tempo nos vamos aguentar em cima dele é uma incógnita. Tenho um amigo que organiza a sua vida em função de quando for mais velho, chegando mesmo a equacioná-la caso fique viúvo. Aliás, ele não o explicita, diz apenas: 'não quero isso pois, se um se for e o outro se vir sozinho, não sei como seria...'. Eu, que sou optimista militante e despreocupada, penso em função do que vale a pena. Se agora é bom, já vale a pena. Pode ser bom apenas durante uns dias, mas já vale a pena. Pode acontecer uma hecatombe e o futuro não ser nada daquilo que se pretendia mas se, enquanto durar, for bom, então, já vale a pena.

E, durante um bocado da nossa vida temos connosco amigos e família que, aos poucos, vão ficando para trás e, ao mesmo tempo, vão entrando outros. É assim. Não vale a pena pretender que seja de outra maneira.

Hoje, aproveitando estarmos no mesmo concelho, fomos de manhã à praia e encontrámo-nos lá com a parte da família que também cá mora. Todos de máscara apesar do ar livre. Os meninos andam na escola, os mais pequenos sem máscara, portanto nunca se sabe. Também é um dado adquirido que resisto mal a manter-me afastada deles. Portanto, para me protegerem, não tiram a máscara. Enquanto os pais foram correr, eu joguei ao disco com a menina, fiz buracos na areia com o mais pequeno, fiz pizas com o do meio, organizei saltos em altura e em comprimento com todos. Ar livre, aquela leve neblina que nasce junto ao mar, a companhia dos meus. Tão bom. Bom tempo, apesar de tudo. Uma temperatura branda, poucas pessoas, um areal amplo. A água estava boa mas apenas molhei os pés. Depois deles terem ido, fomos nós dois fazer uma caminhada.

De tarde, andei, de novo, de volta dos livros. Na primeira leva, houve uns maus passos. Não sei como, algumas autobiografias, biografias e correspondência que não de língua portuguesa vieram parar à estante dos autores de língua portuguesa. Provavelmente por falta de espaço nas estantes lá de cima. Em contrapartida, vários de língua portuguesa foram parar às estantes onde supostamente só devia haver autores que não de língua portuguesa. Por isso, andei abaixo e acima a trocar a questão das nacionalidades. Depois a reorganizar: uma zona para correspondências, outra para entrevistas, outra para diários, outra para autobiografia, outra para biografias. E outra para crónicas. Em baixo tudo isto mas de autores de língua portuguesa. Em cima a mesma coisa mas para não de língua portuguesa.  Também autonomizei numa pequena estante, os livros que falam de livros, que falam de literatura ou de crítica literária. E ainda vou arranjar uma prateleira específica para literatura pornográfica/humorista/picante. Constatei que tenho pouco deste género. Não sei se há mesmo pouca, se sou eu que tenho pouca. Acho que, um dia que tenha tempo, hei-de tentar compor o ramalhete.

Tive que interromper pois tinha mais que fazer pelo que esta segunda-feira terei que arranjar tempo para ver se concluo a empreitada.

Não tive foi tempo de ir arrumar as roupas que vieram no outro dia e que ainda estão em sacos. Tenho que ver bem como as separo e guardo. A roupa guardada durante muito tempo fica a cheirar a mofo, parece que fica áspera. 

Este domingo fiz uma máquina com toalhas turcas que vieram no outro dia. A maioria já tinha vindo. Estas estavam esquecidas lá num roupeiro. Apesar de estarem lavadas, não consegui guardá-las assim. Parece que a roupa perde a vida quando está esquecida. Mas tudo isto dá trabalho. O meu marido queixa-se, diz que nesta casa não consegue descansar, há sempre coisas para fazer. É verdade, tem razão. Mas é porque ainda estamos na fase de instalação. Também todas as caixas que trouxemos no outro dia, tupperwares, jarros, medidores de líquidos, coisas assim, é tudo lavado antes de ser guardada. Uma trabalheira. E decidir onde se guarda, outro desafio. Para as coisas não ficarem atravancadas, para ficarem acessíveis, para ficarem arrumadas de forma lógica... é preciso cá uma ginástica mental...

Estes armários da cozinha vão até ao tecto. Há, pois, muita arrumação. Contudo, só com escadote alto eu conseguirei chegar às últimas prateleiras. Por isso, aquilo que o meu marido tem posto lá para cima, é bem capaz de também ficar meio esquecido. Quando penso em voz alta sobre estes profundos dilemas, o meu marido remata sempre: se deitasses fora tudo aquilo de que não precisas já não tinhas tantos dilemas... E aí eu calo-me.

Tirando isso, o que sei é que este ano, ao estar afastada das zonas de consumo, não sei como estão as lojas. Já devem estar a antecipar o natal mas imagino que seja um bocado triste. As lojas devem estar meio vazias de fregueses e mais ainda hão-de ficar. E os proprietários e os empregados devem estar assustados. Compreendo. O comércio, com o tempo, vai deslocar-se para o online. As grandes superfícies tal como os grandes espaços de escritórios devem ter o destino traçado. Mas outras coisas surgirão. Há-de desenvolver-se tudo o que tenha a ver com a natureza, creio. E com a proximidade, onde possamos ir a pé, onde nos conheçamos todos. O regresso ao espírito de aldeia. E isso talvez seja bom. A sociedade há-de ajustar-se e adaptar-se a tendências sociais que vão surgindo. É isso: uns saem do tapete rolante, outros entram. Pessoas, hábitos. 

Ficam as memórias. Sempre as guardaremos dentro de nós.

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Rianne van Rompaey aqui é fotografada por Mikael Jansson ao som de Always on my mind numa interpretação de The Webb Sisters.

E Tom Hiddleston diz Do not go gentle into that good night de Dylan Thomas 

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Desejo-vos uma boa semana, a começar já por esta segunda-feira.

5 comentários:

  1. Ter muitos livros, coleccioná-los é uma coisa, lê-los é outra. São coisas distintas. Assim como gostar de ler e passar os olhos por umas tantas páginas deles, sem os ler.

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  2. Olá Anónimo/a,

    A sério? Não me diga. E eu a pensar que era a mesma coisa. Ainda bem que se deu ao trabalho de aqui vir fazer uma revelação bombástica destas.

    Obrigada. Volte sempre. Ajudará toda a gente e ver o mundo de outra maneira, uma maneira mais esclarecida.

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  3. Você não lê, ao que vou vendo, lendo o daquilo que escreve. Você compra livros por qualquer razão compulsiva, doentia talvez, mas acaba por não os ler. Analisando o que tem referido e dito dos livros que compra e cita e gosta de mostrar, numa espécie de "aqui estou eu que leio muito" - dos quais não faz uma análise daquilo que leu - a conclusão que se retira é de que não é uma compulsiva Leitora, mas uma compulsiva Compradora de livros, o que é substancialmente diferente. Jeitinho, como algumas Leitoras, carinhosamente lhe chamam, não encha a sua casa de livros, já que nunca os irá ler. Passe a ler a "montanha" daquilo que adquiriu até à última página e só depois compre outros. E nunca se pronuncie sobre um livro que afinal nunca leu, mas apenas folheou, ou passou os olhos. Mostrar livros - que afinal não se leem - ou é presunção, ou algum complexo, que, sinceramente não consigo explicar e identificar. Já tenho observado comentários seus sobre passagens de livros que...afinal nunca acabou por ler, mas simplesmente folheou, deitou uma olhada.
    Eu compreendo o gosto pelos livros, já não consigo entender o coleccionar livros (que não são velharias) simplesmente para os ter em casa, comprando-os obcessivamente e para os ter em casa e folheá-los, isto para aqueles que têm essa sorte.
    Sabe, já tenho alguns anos em cima e como reformada e ex-professora de Literatura faz-me alguma confusão a exibição de conhecimentos ou seja, neste caso, de exibição de "aquilo que eu leio (mas, afinal não lê, mas folheia, caso contrário, como combina a atenção ao seu Blogue, que implica muita busca, ao seu teletrabalho, à sua família, às sua casas, à sua jardinagem, etc, etc) que você aqui faz. A Modéstia é uma grande virtude, Jeitinho.
    Não exiba tanto livro - que não lê, ou não vai ler, como aliás assim o assume - e passe a ler aquilo que comprou, muitos desses livros merecem leitura atenta, acredite.
    G. Almeida

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    1. A última coisa que eu esperaria ler era uma professora de literatura a aconselhar alguém a não comprar livros.
      Há muito anos que leio este blog e, se tenho alguma certeza, é que a ujm ama os livros; não apenas o conteúdo mas também o livro enquanto objecto: o papel, a textura, o formato da letra, as ilustrações, o prazer de folhear um livro assim é imenso... e depois lê-lo é um prazer ainda maior, acredite.
      E se não há tempo para os ler todos, porque não guardá-los? Os livros esperam sempre por nós, pode acreditar.
      E já pensou que ao comprar tantos livros ela está a ajudar a indústria livreira?
      E tendo meios para o fazer, boas estantes para os guardar, filhos e netos que certamente gostarão de os ler (agora ou mais tarde), porque não comprar o que lhe dá tanto prazer?
      E não me parece que a ujm queira exibir os livros ou armar-se em intelectual, penso que apenas quer partilhá-los connosco - e eu gosto muito quando ela o faz.
      Eu também compro mais livros do que os que alguma vez conseguirei ler e, curiosamente, isso dá-me um certo conforto: se eu não os ler todos, eles cá ficarão à espera de novos donos/leitores.
      Os livros são pacientes.

      Bom fim-de-semana.
      🍂🍁🍂
      Maria

      Escusa de publicar isto, cela va sans dire.



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  4. Senhora Professora G. Almeida,

    Muito obrigada pela lição. Agora, sim, percebo a diferença entre gostar de ler e gostar de ter livros. Vivia com essa dúvida existencial e, acredite, era uma dúvida bem pesada. Ufff... finalmente estou esclarecida.

    E percebo a sua estupefacção. Sim... como consigo eu ter tempo para tanta coisa...? Algumas coisas daquelas que digo que faço forçosamente não faço, não é? Por exemplo, será que trabalho? Será que jardino? Será que como ou durmo? Será que sou eu que escrevo o blogue? Será...? Ná... não me parece.

    Vou até mais longe: será que, vendo bem as coisas, sei ler? Na volta, nem ler sei. É que ele há coisas, sabe lá.

    Já agora, Senhora Professora de Literatura, Mestre em Modéstia, não me leve a mal mas será que era mesmo "obcessivamente" que queria dizer...?

    Volte sempre, G. Almeida, que as suas lições têm graça.

    Dias felizes.

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