segunda-feira, julho 20, 2020

O bairro das prostitutas à pinha e o presidente maluco que reconhece um elefante
[E, com isto, até fico quase sem jeito para dizer que transporto o teu coração dentro de mim]





Durante anos, antes de o conhecer, imaginava que o Red Light District seria um antro de perdição, um lugar com mistérios e malícias, transpirando glamour, com aquela pitada de secretismo e de interdito que supostamente deve apimentar os encontros sexuais.

Até que um dia fui numa viagem de negócios a Amesterdão com um colega que tinha trabalhado na cidade e que se propôs fazer-me uma visita guiada pelos locais mais conhecidos. Sendo ele um conceituado executivo, dir-se-ia que me levaria a ver locais ligados ao conhecimento ou às artes. Mas não. Perguntou se eu gostava de conhecer os lugares da droga e da prostituição. Não me fiz rogada, julgando eu que ia entrar em meandros onde só os entendidos se aventurariam, coisa com o seu quê de bas fond,, de clandestino, ou, pelo menos, coisa reservada apenas a connaisseurs. 

Decepção: na zona da erva, malta encostava-se às paredes, outros estendiam-se pelo chão, outros entravam e saíam das lojas mas tudo sem qualquer elevação. Apenas gente janada, alguns num estado de dar dó.

Chegados ao bairro vermelho, fiquei ainda mais decepcionada. Coisa mais pirosa, pensão de meia tigela à vista de todos, gentinha a ver por ver, turismo pacóvio. 

Regresssei ao hotel de luxo a achar que aquilo não abonava muito a favor dos holandeses.

Mais recentemente voltei lá. Na altura, falei nisso. Pensei: será que na outra vez vi outra coisa? ou estava mal disposta e fiz uma má avaliação do que vi? ou será que, se era mesmo mau, agora está mais decente? Mas não. A mesma colecção de tesourinhos deprimentes. Pequenos compartimentos com uma caminha fajuta, tenho ideia que um bidé a um canto, uma toalhinha. As mulheres na montra. Depois entra o homem, fecham a cortina. Um cubículo triste. As ruas cheias de gente. Até eu, ali no meio, querendo compreender o que não é para compreender. Que género de homem fura a barafunda para entrar numa pequena loja, cumprir o seu propósito, provavelmente lavar-se e sair dali? É apenas uma experiência, coisa ocasional? Irá gabar-se de ter ido às putas no Red Light District? Haverá alguém no seu perfeito juízo que ache que é feito de que possa orgulhar-se? Ou será simplesmente um solitário que, não tendo melhor alternativa, vai ali desovar?

Mas, nisto das coisas estranhas da vida, o melhor mesmo é a gente não se arriscar a dar palpites nem tentar arranjar motivos para situações de que não temos qualquer inside conhecimento. O que para nós é uma coisa triste, desolada, sem futuro, pode ser apenas uma bóia de salvação a que alguém se agarre para se aguentar na sua solidão. 

Mas isto para dizer que foi, pois, sem surpresa que li que, ao reabrir o bairro das meninas em Amesterdão, aquilo se apinhou de tal maneira que as autoridades tiveram que recuar na libertação dos impulsos, mandar fechar ruas. Uma coisa que a minha razão não percebe bem pois aquilo é, a meus olhos, uma coisa decadente, triste, o género de coisas que, por não ter qualquer vestígio de requinte, mistério ou jogo de sedução, deveria era afastar as pessoas que não deveriam querer testemunhar a tristeza alheia. Mas, tal como eu já fui lá ver por duas vezes, ambas por curiosidade absurda, se calhar é isso que todos os papalvos lá vão fazer. Esses e os outros, os que frequentam e mantêm vivo o negócio pois sabemos lá nós que necessidades se escondem por detrás da coragem que, vendo bem as coisas, também é precisa para transpor aquelas portas. 

E, depois, quem diz que, entre uma pinocada a correr e uma lavagem rápida antes de sair porta fora para dar lugar ao próximo, não nasce um dia um grande amor? Não produziu E E Cummings belas cartas de amor a pensar numa prostituta que conheceu em Paris? Já mais do que uma vez aqui tive poemas seus, tanto que gosto deles, pessoa apaixonada, ele. E, com a mesma paixão com que os escreveu, pelos vistos assim escreveu antes palavras de amor e saudade a Marie Louise Lallemand.

Transcrevo do Guardian, e, portanto, não em francês mas em inglês:
In one letter, written from the frontline in France, Cummings told Lallemand: “Darling, Marie Louise, you who are more to me than the scarlet poppies which are mown, more than the yellowing evenings which we see die, more than the silence full of stars, the completely white silence of night, only awaiting dawn, – take the kiss which I give you, that kiss, without value, because it comes from a soul which loves you.”
[Artigo completo: Revealed: how a Parisian sex worker stole the heart of poet EE Cummings.]
Portanto, adiante.

Mais preocupante, mas muito, muito mais, incomensuravelmente mais do que a provocada pelo maralhal amontoado à porta das montras com as prostitutas de Amesterdão, é o que se passa nos Estados Unidos, com uma besta quadrada à sua frente, um psicopata, um inútil e um destituído como são inúteis e destituídos todos os narcisistas, pior aqui por se tratar do supostamente mais importante país do mundo a ser governado por tal cavalgadura. Sempre que o vejo pasmo: como é possível que ainda ninguém tenha arranjado maneira de o mandar de volta para casa dele? Tudo o que diz e faz revela o miolo de batada moída que tem dentro daquela cabeça. Mas não é só as cavaladas que diz: é a forma como diz, é o tom de voz, é tudo. Uma desgraça que não se percebe como alguém consegue aguentar. A mulher, apesar de ser aquela boneca empalhada, nem suporta que ele lhe toque, mal se aproxima dele, creio que nem vivem juntos, e os colaboradores e colaboratrizes rodam a grande velocidade, incapazes de suportar tanto egocentrismo, tanta estupidez e parvoíce (pode parecer que estupidez e parvoíce são sinónimos mas não, há nuances que fazem toda a diferença). Cada entrevista que a alimária dá revela o vazio alucinado que o preenche e, cada uma, só por si, deveria gerar um escândalo nacional e internacional. Mas não. Aceita-se que um atrasado mental que acha que acertar num teste que um elefante é um elefante é prova de sanidade mental continue a governar os Estados Unidos. Algo vai mal no mundo com coisas destas a acontecerem. A existência do Trump como presidente dos States legitima que, um pouco por todo o lado, muitos outros que tais empestem os países, as cidades, as ruas, as casas deste planeta. Uma triste lástima.
É ler Donald Trump v Fox News Sunday: extraordinary moments from a wild interview para se ver mais uma das suas últimas. (Facing a feared interviewer, the president ended up insisting that identifying an elephant proved his mental capacity)
Que burro, senhores. Pior do que um psicopata é um psicopata burro. 

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Já agora, por falar nele: "i carry your heart" de E E Cummings (lido por Tom O'Bedlam)


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Pinturas de Egon Schiele a acompanhar 'Les amants de Paris' na voz de Edith Piaf

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E a todos desejo uma bela semana a começar já por esta segunda-feira

6 comentários:

  1. Excelente. A manhã de hoje tornou-se mais clara com este escrito. Parabéns.

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  2. Francisco de Sousa Rodriguesjulho 20, 2020

    Sempre achei que esses libertinismos amsterdanianos não passam de cenas do imaginário saloio, o que há é mesmo decadência, cena "borderline".

    Como alguém dizia, os EUA não são propriamente o que se vê nas séries da HBO ou da Netflix, a "América" atrasada é mesmo muito atrasada e narcísica.

    Um rico dia.

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  3. Não sei se me escapou alguma coisa não a vi preocupada com as mulheres das montras

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  4. Olá Pedro,

    Não sei se o leve a sério... Mas, mesmo que o que escreveu seja mais uma graça que outra coisa, a palavra 'manhã' bem como a palavra 'clara' juntas na mesma frase, agradam-me. Portanto, obrigada.

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  5. Olá Francisco,

    Amesterdão é agradável para se andar a passear pelos bairros com os seus canais, as lojas ou espaços de exposição de design, a bela nova biblioteca. Quanto ao resto, em especial a 'cena' da erva ou a cena do bairro vermelho é tal como diz, decadência e turismo saloio.

    Quanto à América conservadora, provinciana e ultramontana é uma coisa deprimente: arma à ilharga, ignorantes, pouco civilizados.

    Nada como a nossa bela Europa, nada como o nosso belo País.

    Abraço, Francisco. E dias felizes!

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  6. Olá Anónimo/a

    Tem razão. Não lhe escapou mesmo: de facto não mostrei preocupação com as mulheres das montras. E daí? Porque haveria de ter mostrado? Num post sobre uma coisa, é suposto mostrar preocupação por todos os lá referidos? Quiçá por toda a humanidade? Inclusivé consigo que, suponho eu, faz parte da humanidade? E com os animais que sucumbiram durante o incêndio... não? Também foi uma coisa muito má. E mais nada? Com tanta coisa para a gente se preocupar e falei de tão poucas, não foi? Pois é, tem razão: não está certo.

    Mas dou-lhe a palavra a si: não quer dizer o que acha que deve ser dito sobre as mulheres da montra? Vá lá... diga lá... (make my day...)

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