domingo, julho 19, 2020

Escrever enquanto lá fora os vultos se diluem na calada da noite





Para a semana mais um caranguejinho está em festa e, não tarda, entramos no capítulo dos leoezinhos. Por isso, e também porque havia compras essenciais a fazer, saímos do forno e aventurámo-nos a ir até à cidade para ver se, por lá, encontrávamos presentes para os respectivos próximos três aniversariantes. Mas a cidade a que fomos é uma cidade pequena. Depois das compras prioritárias que nos tinham levado lá, pensei que, por ali, arranjaria aquilo a que estava habituada quando, num outro mundo, frequentava a cidade grande. Mas não, poucas lojas e as conhecidas em dimensão reduzida. Desabituada de andar às compras e tendo ainda a memória das grandes lojas a que já conhecia os cantos, ali olhei em volta e ficou tudo visto. Pouca coisa por onde escolher. Por um bocado pensei: vou-me embora e, quando estiver na cidade grande, vou aos lugares que conheço e onde há de tudo. Mas depois pensei que, se calhar, já não serei capaz de voltar a esses lugares, catedrais de consumo, lugares em que o tempo escorre sem se dar por ele e do qual nada fica. O desperdício, incluindo o de tempo, parece-me absurdo. A fartura parece-me absurda. A vaidade parece-me absurda.
Com o tempo talvez até deixe de usar saltos altos para ir trabalhar. E se os saltos altos faziam parte de mim. Isso e o rímel. Como sou clara, habituei-me a aplicar um pouco de rímel para que as pestanas fiquem mais visíveis. Mas só o ponho para ir trabalhar. Em casa, nada. E ao fim de semana, férias ou em família também nada. Estes meses de teletrabalho aproximaram-me do meu estado nativo, quase selvagem. No outro dia, recebi mensagens a oferecer-me vouchers e descontos se comprasse isto e aquilo, nomeadamente perfumes. Noutras circunstâncias eu aproveitaria. Iria tentar descobrir o perfume mais que perfeito. Toda a vida o procurei. Iria deixar tentar-me pelo nome dos componentes, iria experimentar, iria deixar-me seduzir. Agora não. Pensei que não preciso. Na volta estou a tornar-me como se diz dos outros de que agora tanto se fala: frugal. E, se ser assim me agrada e, de certa forma, me faz sentir até um pouco orgulhosa de mim (como quando deixei de fumar), a verdade é que não consigo deixar de pensar que a frugalidade de alguns poderá tornar-se na miséria de muitos.

Mas, enfim, pensamentos confusos à parte, o que tenho a dizer é que lá vim com o possível e, para dizer a verdade, pareceu-me que mais seria excessivo. Dantes gostava de encher toda a gente de presentes e mais presentes. Gosto de dar. Agora, se calhar para mal de quem os recebe, até isso me parece demais. Ainda não cheguei à fase de me limitar a oferecer uma única coisa, uma só tshirt ou um só livro, por exemplo, mas tenho esperança de lá chegar. 

E tenho também a dizer que este sábado não foi preciso cozinhar: dos dias em que tivemos companhia sobrou comida que deu para almoço, jantar e que, com sorte, ainda dará para outra refeição. Por isso, foi como se fosse dia de férias.

Mas, apesar de me sentir em férias, fiz também outras coisas: fiz três máquinas de roupa. Até uma bela colcha multicor em veludos e brilhos que estava como que esquecida foi lavada. Estou a pensar dar-lhe uma nova vida. Já a vejo com umas almofadas que estão noutro lado a encimá-la e até já me apetece reformular tudo à volta para valorizar a bela colcha. E lavei tapetes à mão e pus almofadas ao sol. Sei lá. Este calor é bom para isto. É quase como se fosse limpeza a seco. Lava-se, estende-se ao sol e, passado um bocado, está tudo mais do que enxuto. Tenho agora um detergente para a roupa que tem um perfume muito bom, a lavado, fresco, floral, nem sei. Quando pego na roupa ainda molhada e a levo ao colo para a ir estender nas cordas entre árvores, não apenas me refresco como me perfumo. E quando se pega na roupa lavada, seca ao sol, vem um tal perfuminho a roupa limpa, a campo, que fico sempre feliz, com vontade de arranjar mais o que lavar. 

E, no resto do tempo, em especial ao fim do dia, pus-me debaixo de água. Nem sei por quanto tempo mas foi muito. Totalmente debaixo de água. Gosto tanto de estar debaixo de água. Não estava fria, estava morna. Água fria, por estes dias, só a que está no frigorífico. De resto, está tudo morno.


Há pouco, lembrei-me que ainda não tinha apanhado a forra da minha almofada. Não a fronha mas, mesmo, a forra. Tem uma forra almofadada. Hoje também foi para a barrela. Mas como apenas a tirei do detergente (ao qual misturei umas gotas de lixívia) ao fim do dia, quando, à noitinha, vim para dentro, ainda não estava bem seca. E esqueci-me. Por isso, foi já perto da meia-noite que me lembrei dela. Ainda por cima estava longe, estendia-a num lugar onde pensei que lhe daria melhor a aragem. Abri a portada e ia, pé ante pé, descalça, quando me ocorreu que poderia andar por ali alguma cobra silenciosa ou algum daqueles bichos misteriosos que, se calhar, pela calada da noite, saem das grutas e vêm rondar a casa. Deu-me medo. Fui chamar reforços. E, devidamente vigiada (e calçada), lá fui. Mas andar de noite no campo, em zonas onde a luz não chega, dá-me um certo medo. Não se sabe o que está ali pois nada se vê. Sei lá se não há um olhar traiçoeiro a vigiar-me na escuridão. Por isso, fui e vim rapidamente.

E agora aqui estou, nisto, a jogar conversa fora. E já é domingo. Esta primavera foi estranha, o verão está a ser atípico. E a verdade é que, apesar de tudo, não posso dizer que esteja a desgostar até porque, no meio disto, me tornei outra e ser outra é coisa de que gosto.


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Pode alguém ser quem não é?


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As fotografias integram o grupo das vencedoras do Color Photography Award.

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A si que está aí desse lado desejo um belo dia de domingo

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