terça-feira, junho 16, 2020

As casas dos escritores


La Villa Arnaga d'Edmond Rostand



La Maison d'Émile Zola

Já aqui falei várias vezes: tenho esta coisa de que, um dia que tenha tempo, hei-de sentar-me a escrever, a escrever a sério. Histórias, guiões, romances, cartas, macacadas, o que me der na bolha. Tudo menos poesia que a poesia pede recato e eu sou tudo menos recatada, pelo menos a escrever.

Para escrever a sério preciso de saber que consigo mergulhar no espírito da coisa e lá ficar até adormecer. Por isso, só escrevo de noite, quando sei que não haverá nada que possa interromper-me. De dia, em especial neste regime de teletrabalho em que tenho conseguido aguentar-me (vejamos até quando), não consigo escrever. Sabendo que a qualquer instante pode chegar mail a requerer resposta urgente, telefonema ou meeting dentro de pouco, não consigo que a mente se encarreire para aqueles caminhos em que deixa de receber ordens e em que fica por conta própria, as mãos descomandadas.

Le Château de Monte-Cristo d'Alexandre Dumas

Mas se preciso de tempo e sossego, há outra coisa de que também preciso mesmo. E disso também já aqui falei.
Repito-me, repito-me. Há tanto tempo a escrever aqui todas as noites que não consigo inventar coisa para ser todo o dia um enredo diferente. Repito-me, pois. 
É que preciso de um lugar especial. E esse lugar eu ainda não encontrei. Tem que ser lugar amplo, mesa grande e vazia, só uma jarrinha pequena de flores frescas. Talvez, em vez de jarra, um vasinho com uma orquídea. Nunca tive orquídea. Acho que tenho receio que não se dê e que, com isso, me traga desgosto. Mas a mesa grande deveria estar ao pé de uma janela. E ao pé deveria ter música. A música inspira-me.

La Maison de Balzac

Só que ao dizer tudo isto percebo que tudo são dificuldades. Que mesa? Deveria ser uma mesa rectangular, branca. Mas não a tenho nem tenho onde uma mesa assim ficasse bem. Nem sei já onde ouvir música. No computador, spotify, cenas dessas? Aqueles meus cds todos com sinfonias, concertos, jazz e blues, alguma vez os voltarei a ouvir?  Onde? Ou ter um pequeno rádio onde possa ouvir a antena 2? Mas ainda haverá rádios à venda? 

Tudo me parece difícil, intransponível. Uma logística impossível.

La Maison de Louis Aragon et Elsa Triolet

Penso também que deveria ter, por perto, um sofá macio ou cadeirão de reclinar para fazer uma pausa quando a cabeça pedisse descanso. Talvez num lugar onde entrasse a luz da tarde que é dourada e me envolve a alma em paz e emoção.

E há mais dificuldades: qual a hora do dia e o que fazer com os afazeres, como garantir a capacidade de conciliar com a culinária, a jardinagem, os telefonemas e os cuidados com a família.

E isto para não falar na cadeira. Não sei qual a ideal. Já experimentei várias e nenhuma é suficientemente neutra para não ser tema. Na escrita nada mais pode ser tema senão as palavras.

Mesa e cadeira: dois pontos chave no desbloqueio desta minha inibição. Uma vez arranjei uma secretária que achei que tinha tudo a ver. Uma secretária antiga, de nogueira, tampo de pele verde, gaveta grande a meio, gavetas dos lados. Para começar, pus um vidro espesso em cima. Tive medo que alguém sujasse ou rasgasse a pele. Depois não é confortável. O espaço para as pernas é um bocado apertado e volta e meia dava com a parte de cima da perna numa das esquinas das gavetas. Não. Falta-lhe largueza, simplicidade, silêncio. Teria que ser um espaço branco, silencioso. A música também deveria ser silenciosa, mais espaços do que notas. Claridade, o perfume da relva cortada ou das flores a vir da rua, os passarinhos a cantarem, a luz a vir pousar em mim.

La Maison de George Sand

Tudo muito difícil. Não sei como é que há tantos escritores. Se eu, mesmo só para me armar em pseudo, não consigo reunir as condições para, como é que os outros, os verdadeiros, o conseguem? Sou eu que sou picuinhas, cheia de esquisitices e nove horas? Se calhar sou. Se calhar os escritores de verdade pegam num guardanapo de papel e, mesmo no meio da confusão, constroem um personagem. Se calhar é isso. Não tenho alma de -- porque, sendo como sou, com tanto escolho, não sei como é que algum dia poderei dar largas a esta minha vocação escondida. 

E toda esta conversa para dizer que, tendo hoje o dia sido mais calmo, em vez de aproveitar a agenda mais bondosa e tentar a arte, não senhor. Ao fim da tarde, peguei na máquina e fui fotografar o mesmo de sempre. Depois fui pôr-me a cuscar cenas. E, logo a abrir, dei com uma que me agradou bué. Les maisons d'écrivains à voir en France. D'Émile Zola à Colette en passant par Victor Hugo et Jean Cocteau, tour d'horizon des plus belles maisons d'écrivains à visiter en France cet été.


La Maison de Jean-Jacques Rousseau à Montmorency

Até me deu vontade de me meter no carro e ir por aí, em passeio -- e o que eu gosto de passear de carro -- a conhecer a casa deles para perceber como é que tinham resolvido tamanha quadratura de círculo. E, agora que o escrevo, penso que, na volta, poderia era organizar um passeio assim pelas casas dos nossos escritores. Será que há várias abertas aos cuscos como eu?

La Maison de Marcel Proust à Combray
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Marnie Laird interpreta Clair de Lune de Claude Debussy e escolhi esta interpretação de uma música que me é cara por vários motivos, alguns dos quais muito poucos óbvios, sobretudo pelo décor. É que esta é outra: o meu sonho é poder ter uma área da casa coberta de livros, do chão quase até ao tecto, estantes brancas ou de cor neutra, um lugar a preceito. Hoje tenho estantes de várias nações e quase todas escuras. E até gostava de ter uma escadinha deslizante. Mas isso já seria um preciosismo.

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E uma boa terça-feira.

2 comentários:

  1. Casinhas tão simples e humildes. Pobres escritores que quase não ganham para comer. São assim os contrastes da vida. Fiquei mesmo (mal) impressionado com tanta pobreza.
    .
    Desejando uma terça-feira feliz
    Cumprimentos

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  2. Francisco de Sousa Rodriguesjunho 16, 2020

    Sim, rica UJM, ainda se vendem Rádios, Radios-CD, sistemas Hi-Fi unos ou por elementos.
    Os meus CDs vão regularmente à drive portátil e no computador tenho mais de 100GB de música e a crescer, por isso nem conta tenho no Spotify, o mais parecido que tenho conta é no Mixcloud para ouvir DJ sets e partilhar os que faço "just for fun".

    Quanto a escritas, a condição é não haver muito banzé, de resto pode ser onde me calhe no momento.

    Um belo dia.

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