Bem. Agora que já declinei a palavra ignorância em versão ted cruz, recuo no tempo, àquele magnífico e longinquo tempo em que gozei umas maravilhosas e longas férias no miolo do meu país. Chovia e os campos estavam verdes e os rios corriam airosos enquanto a água jorrava dos montes, saltitando nos regatos que ladeiam as estradas. O meu marido disse: 'Parece que estamos noutro sítio'. Por vezes sou lenta: 'Noutro como?'. E ele: 'No Minho'. Olhei melhor: sim, idílico, verdinho e lindo como o Minho. Mas também concluí que se calhar o que se pode concluir não é isso, é que não é só o Minho que é idílico, verdinho e lindo.
Muito por ali ardeu. Há encostas todas ardidas. Deve ter sido uma aflição, um susto de morte. Mas tudo renasce e, ao lado de troncos ardidos, há agora rebentos verdes de dar gosto.
E então, no adeus até à próxima, quando vínhamos no descair de regresso a casa, fomos à procura da Livraria. Como o IP3 está em obras, saímos pelo desvio. E quando chegámos lá não dava para 'entrar'. E quando estávamos a ver onde é que se podia parar o carro ou onde é que havia um desvio para lá ir ver, já estávamos noutro lugar. Pensei que o culpado -- sim, porque nestas coisas tem sempre que haver um culpado -- tinha sido o meu marido. 'Se calhar passaste o sítio para se virar para lá'. Ele: 'Viste alguma saída?'. De facto, não. Não desisti: 'Mas se calhar havia sítio para parar o carro'. E ele: 'Viste algum?'. Pois, de facto também não. Mas alguma coisa tinha que haver. Se aquele era um lugar a visitar, como não haver maneira de vê-lo? O meu marido, já deserto de se ver livre das minhas incursões, continuou. E já noutra aldeia. E eu: 'Desculpa lá. Não pode ser. Volta para trás. Quero visitar e alguma maneira há-de haver'. Embora contrariado, lá me fez a vontade. Disse: 'Só vejo uma possibilidade, onde diz pescas'. 'Então vamos lá ver''. Em boa hora. Lá ele levou o carro por uma estradinha inclinada. E aí vimos o carreiro, rente ao rio, rente à encosta. E tão bonito, tão bonito.
Monumento natural que marca a paisagem das margens do Mondego junto a Penacova, a Livraria do Mondego é um monumento que o tempo esculpiu ao longo de mais de 400 milhões de anos.
Depois de ter recebido o Alva, seu afluente da margem esquerda, o Mondego estrangula-se ao atravessar o contraforte de Entre Penedos e surgem as altas assentadas de quartzíticos dispostos quase verticalmente, como se de livros numa estante se tratasse, o que de resto deu origem à designação popular de Livraria do Mondego.
Constituída por quartzíticos do Ordovícico, a Livraria do Mondego foi, por Galopim de Carvalho, classificada como um Geomonumento ao Nível do Afloramento, constituindo-se, pelas caraterísticas geológicas que encerra e pela graciosidade escultórica que o tempo lhe incutiu, como um dos mais singulares monumentos naturais de Portugal. (...)
Quanto às pescas, fiquei a saber que há pesca sem morte. O meu marido disse: 'Fazem um buraco no peixe e depois arrependem-se e atiram-no ao rio. Deve ir em bom estado'. Mas agora que escrevo penso que, se calhar, não é pesca com anzol. Se calhar, é com camaroeiro ou coisa assim.
Mas, voltando à livraria. Não sei se imaginam a paz que é andar, sem vivalma nas redondezas -- por inacreditável que possa parecer éramos mesmo só nós -- só passarinhos a cantarem, os sons do rio, e aquelas rochas tão bonitas, os reflexos nas águas, tudo tão tranquilo e lindo. Fomos pelo carreiro, subimos até lá acima à estrada, uma vista deslumbrante. Algumas vertigens, confesso. Não há protecção, assusta. Mas tão bonito.
E parecem mesmo livros, empilhados, arrumados numa estante. As rochas têm vida, são também divindades. Não quero saber que achem que sou maluca. Cada um tem as suas crenças e a mim dá-me para as estas. Observam-nos em silêncio e eu acho que protegem aqueles que as respeitam.
E, por bibliotecas e livros, li um texto que me encheu de alegria. Afinal há uma explicação para a minha panca: conhecer os limites da minha ignorância.
O grande leitor é aquele que compra livros sabendo de antemão que não os vai ler, mas cujo interesse e a relevância reconhece. Isso é muito mais importante do que propriamente ter o gosto de ler os livros todos. De resto, um dos tópicos de todos os escritores é contra os filisteus que entram lá em casa e perguntam: “Ena, tantos livros! Já leu isto tudo?!” Não há ninguém que não se enfureça com essa pergunta, porque, na verdade, a biblioteca não é para ler tudo, é para ela existir. O livro na verdade não existe, o que existe é a biblioteca. Um livro nunca está sozinho. E ter muitos livros em casa é muito melhor que não ter, porque mesmo que a pessoa não os leia, fica a saber a quantidade de coisas que não conhece. Em vez de lamentarmos todos os grandes clássicos que nunca vamos ler, devemos perceber é que, no fundo, nós lemos para ter conhecimento daquilo que não conhecemos, para conhecer os limites da nossa ignorância. Ora, isso também se consegue não lendo livro nenhum, mas é preciso conviver com eles.
Abel Barros Baptista
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Se puderem vão conhecer: lugares lindos. É o que vos digo.
E que belo almoço de lampreia!... Ou não?
ResponderEliminarOlá Anónimo,
ResponderEliminarPois sabe que não fazíamos ideia de que estava a decorrer o festival da lampreia...? No primeiro jantar, gente de uma confraria, todos aperaltados a preceito, percebemos que havia coisa. A dona perguntou-nos se vínhamos para ela. O meu marido tinha ido à casa de banho e ainda nem tínhamos visto a ementa. Eu disse que se calhar não, até porque nunca tínhamos provado. A senhora, uma simpatia, disse-me que ia buscar um pouco para eu provar. Agradeci e disse que bastava uma colherzinha, só para eu tomar o sabor. Entretanto, o meu marido veio e pôs-se a ver a ementa. E eis que chega a senhora com uma tigela grande cheia de arroz de lampreia. O meu marido fico banzado. A senhora explicou que uma colherzinha não dava para provarmos. E portanto acabei por provar e, para falar verdade, ficava jantada só com aquela tigelona. O meu marido não achou graça, pouco comeu. E eu tive vergonha de deixar muito pelo que comi mais do que a minha conta. Gostei mas não achei uma coisa aparatosamente boa. Fez-me lembrar arroz de cabidela só que com peixe em vez de galinha mas, de facto, não é frequente um arroz de cabidela com peixe pelo que, vendo bem, é mesmo capaz de ser uma coisa um bocado rara. E boa. No entanto, eu reduzia um pouco o vinagre.
Mas, pelo que escreveu, presumo que é acepipe muito do seu agrado, não?