Parece que há quem pense que de Lisboa -- do Restelo ao Parque das Nações, de Carnaxide até à Graça, da Ajuda até aos Olivais, e etc -- não se avista nenhuma serra. Se calhar pensam que, em Lisboa, apenas se vêem montras e trotinetas. Mas vêem-se: serras. Mais do que uma. Já para não falar das que se avistam lá mais longe, a sul. Mas não faz mal. É até bom saberem que têm muito por descobrir. Em vez de se porem a suspeitar de tudo, achando que invento quando falo de serras e rios e céu e luz, mais valia que se alegrassem por ficarem a saber que têm um mundo de coisas insuspeitas pela frente, tanta coisa para aprender. Agora que é engraçado, é. É que não se acanham de lançar suspeitas. Comprova-se a toda a hora que a ignorância é muito afoita.
E todo o santo dia me aconteceu disto: bizarrias, maluqueiras, gente que convida outros para coisas que não sabe dizer que coisas são, gente que diz que os outros não se sabem explicar e os ditos outros que se queixam que eles não percebem nada de nada, gente que disfarça inseguranças com galhardias, gente que confunde poder com prepotência mas que, quando confrontada, mete o rabo entre as pernas e recua, a ganir, para a casota. Coisas desconexas, descabeladas, coisas que andam às arrecuas. E eu? Dentro do cenário. Desalinhada e inserida. E, às escondidas, divertida. O mundo de verdade é um mundo imperfeito, disparatado, cheio de suculentas surrealidades. Podendo, por vezes, parecer que não, a verdade é que sim: gosto.
Haverá quem diga que lá estou eu com fantasias. Mas não. Teria mais graça se pudesse contar que engoli um apito e que outra coisa não fiz ao longo do dia do que soltar involuntários assobios ou que, estando eu a fazer meditação no vértice de uma pirâmide de cristal turquesa, veio uma borboleta pousar no meu mamilo direito. Mas não. Coisa boa só acontece aos outros, a mim só banalidade.
O que vale é que, de vez em quando, me dá para pular a cerca, a cerca gastronómica quero eu dizer, e penetro em lugares desconhecidos e peço iguarias que não sei o que são e descubro coisa boa, sabores novos, e são sabores marroquinos, sabores indianos, sabores coreanos e se vejo ingrediente com nome nunca lido, então, é esse que quero. E é doce, picante, agridoce e sabe a flor, a fruta, a especiaria e nem tento saber o que é. E esses sabores bons derretendo-se-me na boca dão-me vontade de primavera.
Ou perfumes. Se passo em perfumaria e vou com tempo, gosto de experimentar. Aromas com nomes exóticos. Ou não exóticos mas apenas evidenciando a minha incompetência para conhecer essências fundamentais. Gosto de experimentar. Gosto de sair de lá perfumada por mil perfumes diferentes. Coisa soft, só um pinguinho de coisa boa. Tudo junto não fica muito. Fica apenas cheirinho bom. E aspirar esse cheirinho também me dá vontade de primavera.
Ou abrir livro de poesia, ler verso solto, poema limpinho deitado na página branca. Gosto. Não pode ter palavra de prosa, falta de música, realidade a mais. Se encontro isso, deixo logo para trás. Tem que ser palavra luminosa, bonita, com melodia elegante, som de sombra, sopro de voo, coisa ainda não nomeada. Disso eu gosto, fico parada a ler, devagarinho, deixando o som da palavra pousado ao de leve no coração ou na palma da mão. Poesia escrita em livro é palavra inscrita em árvore. E pensar nisso dá-me vontade de primavera.
Podia também agora falar da lua que hoje está branca e que é outra vez a maior, a mais branca, a mais esbelta, a mais quente, a mais próxima, a mais redonda do ano. Mas não. Não vou falar. Lua cheia virou coisa banal, commodity, já anda na boca de qualquer um, título de notícia em canto de página, fotografia a metro. Olhei para ela e ela não me disse nada. Portanto, desviei o olhar à procura de alguma outra coisa que me desse vontade de primavera.
E há muitas. Algumas estão dentro de mim e não conto a ninguém. Outras são indefinidas. Vontade de. Vontade de ter vontade. E a primavera vem. Já cá está. Só falta agora os dias ficarem grandes. Um destes dias aventuro-me a ir andar em cima do rio ao pôr do sol. Das vezes que andei, em Madrid, por exemplo, ou a subir a uma serra na Suiça, tive um medo que me deixou transida. Andar nas alturas, aquilo a parecer que não vai caber nas argolas, um susto. Mas pode ser que consiga livrar-me de vertigens para desfrutar o bom que deve ser, na primavera, ao fim do dia, andar de teleférico sobre o rio, em Lisboa. E, sim, em Lisboa também há teleféricos. Até há leões. E galos. E formigas. Ver formigas a andar em carreirinha também é bonito.
Mas formiguinhas dentro de casa não. Só na rua. Formiguinhas, apressadas, organizadinhas, são como nós ao fim do dia, em noite de cidade cheia de carros.
Mas formiguinhas dentro de casa não. Só na rua. Formiguinhas, apressadas, organizadinhas, são como nós ao fim do dia, em noite de cidade cheia de carros.
Mas é isto. Penso que o dia que passou veio em pack, um pack promocional: equinócio, primavera, árvore e felicidade. Tudo bom. Só faltou vir com minutos ilimitados.
Mas pronto, tirando isto, nada mais tenho a desacrescentar. Só se for que hoje não me meto na disputa na caixa de comentários, que agradeço, pois, a esta hora, já sou como a maré a recuar. Por isso, vou ficar por aqui e fechar os olhos para pensar em figurinhas de cores quentes e alegres, malandrecas e bué primaveris, se calhar quase estivais.
O pior é que não chove.
O pior é que não chove.
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Isabel, desta vez não me esqueci: o autor das pinturas é Yoo Youngkuk
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E pensavam que aquilo do apito ou da borboleta era fantasia?
Acertaram. Fantasia e da boa.
Um dia feliz a todos.
Lamento que não tenha gostado da lua, que a tenha achado banal.
ResponderEliminarHoje ainda vai estar mais banal.
Eu acho que o mundo está cheio de banalidades que nem por isso deixam de ser belíssimas, mas isto sou eu, que até sou do mais banal que há...
Se me permite, deixo aqui mais uma banalidade: se gosta do Leonard Cohen, saíu um novo livro dele, com muitos poemas inéditos, talvez queira espreitá-lo, talvez goste, talvez até já o tenha.
Ah e ainda bem que não engoliu o tal apito...
Quinta feliz!
Maria
Falou de uma coisa que com o tempo também me tornei mais audacioso, na curiosidade em provar sabores desconhecidos. E em geral, gosto...
ResponderEliminarUm abraço daqui do sopé da Serra.
Fazendo um pouco de humor com a questão (ou trocas de opinião) sobre as tais serras do Post anterior entre um ou outro Leitor, deu-me, vejam lá, para me recordar que lá na minha terra, o belo Porto, também temos uma serra, ou melhor, uma serrinha: a “famosa” Serra do Pilar! Tem a altitude proporcional ao tamanho da cidade do Porto, comparada com a de Lisboa, mas cada um tem o que pode e a mais não é obrigado, lá diz o Ditado. Dando também um saltinho à Wikipedia (olé, porque não!) lá descobri que aquela minha serrinha tem uns “espantosos” 93,515 m de altitude! Chateou-me ser considerada uma “elevação”, ficando a designação de serra para altitudes mais acima, como a da sua Lisboa – Monsanto. Fica-me a consolação de que os tripeiros estarão mais perto da Serra da Estrela do que os alfacinhas, 194 quilómetros, contra uns 294. Vá lá, ao menos valha-nos isso! Sempre serve de algum consolo.
ResponderEliminarAgora mais a sério, há por aí uns tantos miradouros, em locais que vão dos 600 e muitos metros até 1200 metros, neste encantador país, de onde se avista panorâmicas de encantar. Nas sugestões de passeios que um dia destes lhe vier a deixar, vou incluí-los, pois fazem parte desses passeios. Prometido!
*Também já descobri o tal livro do Leonard Cohen, na Fnac. Gostei! E quando se gosta de um livro, compra-se, não é verdade?
PS: também sofro de “algumas” vertigens. Se lhe contasse uma cena que se passou comigo, acompanhado de minha Mulher, em Singapura (lá está, para atravessar de um monte para outro sobre o mar), aqui há uns anos, rir-se-ia a bom rir, mas eu morreria de vergonha! Enfim, coisas da vida! Hoje até seria capaz de a descrever humoristicamente, o problema é que eu ficaria mal na “fotografia”.
Cordialidade!
P.Rufino
O P.Rufino já me fez rir com a altitude das nossas "serras".
EliminarPequenitas mas muito bonitas.
Eu passei muitos anos a olhar para a Serra de Monsanto e nunca me pareceu pequena.
E quando lá passava de autocarro (naqueles verdes de 2 pisos, da Carris), junto à Cadeia, as vistas eram espectaculares.
Agora estou perto de outro Monsanto, o Cabeço, como lhe chamam aqui (758m de altitude segundo a wiki) e posso assegurar que a vista do cimo do castelo é deslumbrante.
E sei que conhece bem a zona, ainda me lembro de quando contava como ficava a ver as estrelas depois do jantar na sua casa da Serra da Estrela.
Também comprei o Cohen, mas na Bertrand (aqui onde moro não há Fnac).
Mas a comprar livros sou mais como a Ujm e a Isabel, vou deixar muitos por ler... mas já comecei "A Chama".
:)
Maria
Ah!Ah!Ah!
ResponderEliminarNunca provo coisas diferentes e esquisitas, se for carne ou peixe ou afins. Ninguém me faz comer coisas que não sei ao certo o que são. Sou muito esquisita. Sempre fui assim desde garota. Sou mais para o vegetariana.
As pinturas são giras, coloridas, alegres. Gostei. Não conhecia o artista. Obrigada.
Beijinhos:))
PS: O video da borboleta realmente é espantoso! Que hora para uma borboleta (linda) poisar na cara...mas eu acho que é uma coisa boa.
ResponderEliminarBoa noite Maria!
ResponderEliminarPois, ainda lá vou, agora com mais frequência, à nossa casa na Beira-Alta - Serra da Estrela, visto, depois de meu pai ter falecido, temos, eu e meus irmãos, de ir fazendo alguma companhia a nossa mãe. E sempre que lá vou (cada irmão vai só, com vista a pelo menos nossa mãe ter sempre alguém por lá, embora num Lar/Residência próximo e muito bom) tenho dois ou três, no meu caso, entretenimentos: um, cozinhhar um bom petisco para mim e outro, ir para um dos 2 terraços que por lá temos naquela grande casa de família, e ali ficar a ver o Céu estrelado, ou a Lua e as aldeias lá ao fundo, na Serra. Outra opção é ir passear pela aldeia, no silêncio da noite. Não há vivalma, só eu por aquelas ruas estreitas, a ouvir os sons em volta. Um cão ao longe, uma coruja, etc. E pode crer que me divirto com isso. Venho de lá com a alama lavada! Depois vou paraa cama e deito-me a ler um bom livro, antes de adormecer. Coisas simples, mas que me consolam!
Uma boa noite para si!
PS:outro dia, aqui há umas 3 semanas, quando lá fui, deu-me para ir até à Torre. Estava um frio de rachar! Ainda não era meia-noite quando lá arribei, mas no regresso foi uma preocupação, pois fez-se um nevoeiro intenso que só visto! O que obrigou a uma condução muito cautelosa. E depois, soube-me bem a lareira à chegada, já era quase 1 da manhã.
P.Rufino
Bom dia P.Rufino!
EliminarMuito obrigada pela sua simpática resposta.
Deve ser um deslumbramento poder contemplar as estrelas a partir dos seus terraços quase no topo do mundo (do nosso mundo português) com calma, em paz e sossego.
Compreendo bem que venha daí com a alma lavada.
E as coisas simples são sempre as melhores...
Tenha um excelente dia!
Maria
Maria,
ResponderEliminarTenho ideia que não me pronunciei sobre se gostava ou não da lua. Não me apetece ir conferir mas juraria que não. Tenho ideia que disse que olhar para ela não me deu ideia de primavera nem vontade de falar dela, até porque já está falada e refalada.
E olhe que apitar por vezes até daria jeito: para marcar falta, para assinalar cartão vermelho.
Uma boa noite para si.
Nao, a Ujm apenas disse que achava a lua cheia banal:)
EliminarQuanto ao apito, vou então refazer a frase:
Que pena não ter engolido o apito.
E embora eu não aprecie futebol, penso que também existe um cartão amarelo para faltas menos graves...
Um bom dia para si também.
Maria
Olá Francisco,
ResponderEliminarPois pode crer que há cada sabor mais bom! Tenho ideia que a primeira vez que me afoitei a sério a experimentar comidas diferentes foi na Expo em Sevilha. Fomos com amigos, um grupo de gente animada. Íamos de pavilhão em pavilhão, petiscando e descobrindo. Tomei-lhe o gosto. No outro dia entrámos num restaurante com cada coisa com nome mais desconhecido... escolhemos ao acaso. Tudo bom.
E uma bela sexta-feira, Francisco, Senhor do Sopé da Montanha.
Olá P. Rufino,
ResponderEliminarFiz uma vez um passeio pelos Miradouros de Trás os Montes e fiquei fascinada. O nosso país tem paisagens que são de uma lindeza, de uma vastidão maravilhosa. Em Lisboa, volta e meia, também fazemos o percurso dos Miradouros e apesar de mil vezes lá ter estado e fotografado, o deslumbramento é sempre novo.
Os teleféricos para mim são como a montanha russa: dão-me um medo vertiginoso. Das vezes em que me meti neles arrependi-me totalmente quando lá estava, sem perceber porque me tinha metido naquilo. Mas, ao mesmo tempo, estando ao pé, penso que é pena ter tanto medo das alturas e tenho vontade de vencer os sustos.
Dias felizes, P. Rufino
Olá Isabel,
ResponderEliminarCarne de bicho esquisito também não como. Mas se for da normal, afoito-me a maneiras diferentes de cozinhar, a temperos inesperados. Idem com o peixe. Por exemplo, gosto imenso de petiscos cantoneses. Pãozinho chinês com carne de porco estufada com mel, crepe de arroz com vitela e mel, gyosas de vegetais, crepe viatnamita, coisinha assim, por exemplo. E sushi. Gosto muito de um sushizinho bem feitinho, com ovas, por exemplo.
E a borboleta... já viu...? Como ela se aguentou a tocar? A mim haveria de me dar umas cócegas... uma vontade de sacudir com a mão... Mas ela não, estoicamente aguentou-se fiel a pauta.
Beijinhos, Isabel, e uma sexta-feira feliz.