Apesar de já entrar a pensar que ia entrar para quê se não gostava nem um bocadinho de nada do que ele fez?, cedi àquele absurdo sentido de dever que, volta e meia, se apodera de mim. Para mais, estava lá, na terra onde viveu parte da sua vida e onde morreu e onde, naturalmente, tinham plantado museu. E foi o que eu estava à espera: sombrio, sinistro. Subia escadinhas, entrava em salas e saletas, e era sempre a mesma gente mal encarada, quase alucinada, quase todos a olharem de lado, em paisagens lúgubres com céus frígidos a toldar o ambiente. Estava lá dentro e só me apetecia esgueirar-me dali para fora, respirar ar puro, ver luz e gente normal, saudável.
A cidade tem a sua graça, tem o rio que vejo da minha janela mas ali menos belo, menos luminoso. Mas nada mais a registar.
Também já me cruzei com aquelas fisionomias noutros museus. Passo ao largo. Cores frias, cinzentos doentios, sempre aquela palidez mal engraçada. Não. O meu santo não cruza com ensimesmamentos ou temperamentos tóxicos, gente mal amanhada, aspecto de ter sido mal parida.
Portanto, fim de história.
Até ontem.
Quase a acabar O nervo óptico, chega-me uma surpresa com a opinião de María Gainza sobre a dita obra. Fui ver. O brother Google está sempre aí para nos dar a ver o que procuramos. Estaria ela a falar de algum homónimo do dito? Só podia.
Trancrevo:
Olharmos a pintura de El Greco é lutarmos connosco próprios. É o tipo de pintor que amamos desde adolescentes, quando a pintura ainda é uma coisa nova e a fuga da imaginação, um privilégio de novatos. Depois, quando os anos nos tornam mais informado e, portanto, cínicos, começam os confrontos. Incomoda-nos o seu dogma intransigente, mas também nos irrita a sua sensualidade. Ou custa-nos fazer encaixar as duas coisas numa mesma imagem porque nos ensinaram que são elementos que não andam juntos: a carne e o espírito. Na parede central desse pequeno museu de São Francisco havia um Vista de Toledo, tão expressionista como se tivesse sido pintada no século XX.
Ao lado, reconheci um Jesus no Horto das Oliveiras que era idêntico, se não igual, ao que está no Museu de Belas-Artes de Buenos Aires. Em cima, Jesus em frente do anjo; em baixo, os aóstolos num sono profundo, estendidos como vagabundos. Tenho um fraquinho por este quadro. Não é o seu tema que me atrai, na verdade sei apenas vagamente a que se refere a cena, mas a forma como tudo parece suspenso. A sua forma gravitacional funciona ao contrário: algo puxa as figuras para cima, aspirando-as para as nuvens, tal como ascendiam as bolhas nos candeeiros de lava da minha adolescência. Sempre pensei que a forma correcta de olhar esta pintura era fazê-lo na vertical, esquecer a figuração, apreciar a sensualidade escandalosa que espalha o óleo.
Sensualidade...?! Onde...?! Desculpem lá. Estamos a falar da mesma coisa?
Isto não há mesmo dúvida de que é tudo relativo e subjectivo e onde um vê um tomato, o outro vê uma potato.
Remata ela:
Aldous Huxley deve ter pensado o mesmo quando disse que, se El Greco tivesse vivido até aos noventa anos, teria acabado por fazer arte abstracta, de tão visceral que era.
Caneco. Até parece que a María Gainza se pôs a ver os quadros de cabeça para baixo -- e, às tantas, a força da gravidade, quando virada do avesso, tolda as ideias dos acrobatas.
Mas, admito, na volta eu é que ainda não adquiri o cinismo da idade adulta, ainda estou na adolescência -- mas, neste caso, uma adolescência rebelde já que não vejo aqui ponta de coisa que se possa amar.
Parece que ele se roía de inveja do Miguel Ângelo e, cá para mim, razões não lhe faltavam para isso já que o outro o punha num chinelo. A palavra, de novo, a María Gainza:
Em Roma os círculos de arte continuavam a recordar o dia em que, durante uma visita à Capela Sistina, El Greco se horrorizara tanto com os corpos pintados por Miguel Ângelo que se oferecera para os pintar de novo.Pois.
Estou em crer que hoje passou dos limites. Ou talvez não e sou eu que gosto de El Greco e mais de toda a palidez e daquela explosão que é a sua pintura. Não o comparo a Miguel Ângelo nem a nenhum outro pintor. Mas porque são diferentes. Nenhum arrebata outro.
ResponderEliminarTodos temos direito à subjectividade que nos é própria. O meu gosto por amarelo não me leva a criticar o vermelho ou o verde ou quem gosta de tais cores. Todas as cores são elas. Como toda a arte tem o seu valor específico, único.
Lógico que prefiro o texto de Maria Gainza ao seu (não li o nervo óptico). O que também não faz qualquer diferença porque nem sei de arte nem de coisa nenhuma assim muito a sério.
Olá bea!
ResponderEliminarVejo que continua a levar tudo muito à letra... peace and love, bea. Leve na boa.
Acha que eu me levo a sério? Nada.
Ou acha que eu tenho alguma preocupação em ser politicamente correcta...? Zero.
Pelo contrário. Se eu puder pôr, nem que seja apenas a ponta do pé, no lado gauche da vida, não digo que não.
Por isso, take it easy, bea.
De resto, quando vi o seu comentário tinha acabado de escrever outro post sobre o São El Greco. Não sei se desta vez estou aprovada ou se estraguei o figurino de vez. Mas fazer o quê de mim, bea? Não tenho remédio, sou um caso perdido. Não sabia já disso?
Uma boa semana para si, bea!
Sei sim. Parvoíce minha.
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