Voltei a chegar a casa muito tarde. Não me parece correcto interromper as pessoas, deixo-as falar.
Está a acontecer-me, uma vez mais, aquilo que tantas vezes me acontece nos mais variados contextos. Sem que eu perceba porquê, as pessoas, do nada, começam a contar-me a sua vida, os seus problemas, as suas ansiedades. No fim, agradecem eu ter-lhes prestado atenção, sorriem e, se antes, no início da conversa, estão soturnas, tensas, ansiosas, no fim sorriem, parecem outras.
E eu, por dentro, fico a pensar que não sei porque é que voltou a acontecer e sinto-me preocupada pela responsabilidade que isso representa. Se as pessoas me entregam segredos, preocupações, desilusões, me falam da sua vida pessoal, como posso eu correr o risco de vir a defraudar as suas expectativas? Mas que tenho eu para lhes oferecer?
Porque me acontece isto? Não sei. E, no entanto, passa a vida a acontecer. Se estou no supermercado à espera que chegue a minha vez para o peixe, como sucede que uma pessoa, que nunca vi antes, comece a falar-me das preocupações que tem com o seu filho, das dificuldades dele em manter um emprego, do pouco que liga ao próprio filho? E eu pouco digo, pouco, apenas ouço. De vez em quando faço uma ou outra observação que parece que incentiva as pessoas a prosseguirem os desabafos porque parecem achar que as entendo, ou que posso pronunciar a palavra certa que as vai aliviar.
Ou, noutra vez, estacionar o carro e levantar-se uma senhora que estava sentada num muro e vir contar-me que lhe morreu o filho e que não consegue estar em casa sem ele?
Ou, mesmo aqui, receber mails em que as pessoas me contam a sua vida desde pequenas? Os medos, as dificuldades? Porque o fazem? Será porque acham que as vou compreender? Porque mais ninguém as ouve? Juro que não sei.
Agora também é isto. Falo com as pessoas para perceber o que fazem, pergunto-lhes o que gostam de fazer e, nem sei como, num ápice, já estou a ouvir confidências, já as pessoas parecem não conter a torrente que têm dentro de si. Hoje uma senhora, uma simpatia, dizia que não queria maçar-me, que era só mais uma coisa. Mas depois dessa vinha outra, e eu, que mais ouço do que falo, quando falo, ouço-me a falar como se já as conhecesse há muito tempo e, no meu íntimo, penso que tenho que descobrir maneira de as deixar felizes, de as fazer sentir úteis, a sentir que o seu mérito é reconhecido. Mas saberei eu como fazê-lo?
E as pessoas falam comigo quase como seu eu tivesse o seu futuro nas minhas mãos e eu não sinto isso, eu sinto-me tão insignificante, tão cheia ainda de dúvidas. E digo-lhes isso, que estou a aprender, que quero reunir informação para decidir bem e vejo a compreensão no rosto deles, dizem-me que não é fácil, que mesmo que quisessem não saberiam o que me recomendar mas que confiam que decidirei bem.
Depois, à vinda, no carro, o dia já a querer anoitecer, faço as minhas chamadas, falo com a minha mãe, com a minha filha, com o meu marido (com o meu filho falo depois, a combinação é ser ele a ligar-me) mas, nos intervalos, sinto alguma vontade de chorar porque, de facto, das minhas decisões dependerá a motivação e o ânimo ou a desilução, a continuação do cansaço e da saturação daqueles que parecem confiar tanto em mim. Essa confiança toca-me, comove-me.
Quando se encomenda um trabalho a consultores, eles fazem levantamentos, fluxogramas, escrevem narrativas, elencam aquilo a que agora se chama quick wins, e, se lhes encomendarem isso, até fazem recomendações sobre o nome das pessoas que, na análise deles, corresponde ao profile ou detêm as skills para a função. É uma defesa para quem tem que tomar decisões: dir-se-á que maior transparência não pode haver, que as decisões foram neutras, que se seguiram as recomendações dos consultores e que eles seguiram as best practices. É assim a novilíngua de muito boa gente que pulula na gestão de empresas - e, note-se, não estou a criticar. Na volta, ainda é mesmo esta a forma correcta de trabalhar.
Eu não, eu sou old school. Eu não digo palavrões desses, não sigo modas. Falo com as pessoas com as palavras do dia a dia. Ouço-as.
Depois, claro, não consigo interrompê-las especialmente quando as vejo até emocionadas, coração nas mãos, confiando em mim como se eu fosse uma santa aterrada directamente ali. Daí, muitas vezes, as lindas horas a que agora ando a chegar a casa.
Mas nem tudo depende de mim nem é seguro que eu, perante dezenas de peças, sem instruções, consiga montar o puzzle perfeito.
Ao chegar, tarde e más horas, ainda tive a companhia do meu marido numa caminhada, depois fiz o jantar, fiz a mala, e, então, lá consegui chegar aqui.
E ainda estou com isto na cabeça, as pessoas a confiarem tanto em mim e eu ainda sem saber exactamente o que vou fazer (tanto mais que os meus propósitos não passam exclusivamente pela motivação das pessoas mas, também, por uma série de restrições e objectivos de outras naturezas entre as quais as de índole económica).
Por isso, ao ligar o computador, pus-me a ouvir músicas para ver se lavava a alma e a ver se encontrava imagens interessantes para aqui colocar, na vã esperança de me ocorrer algum outro assunto, tavez até rêveries, coisas à toa. Mas a minha cabeça hoje está noutro lugar. É mais fácil fazer as coisas longe das pessoas, contratar umas empresas para fazerem o trabalho limpo e outras para o trabalho sujo. O que eu faço tem risco, posso falhar e terei sido eu, apenas eu, a falhar.
Enfim. Conversa chata esta hoje, não é?
Páro já.
Páro já.
As fotografias mostram paredes graffitadas e muros de onde pendem flores secas no Ginjal.
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Lianne La Havas, lá em cima, tem uma bela voz e o vídeo é muito bom mas vou ver se descubro também um poema ou um bailado bonito para que não sintam que vieram aqui em vão. Já cá volto, está bem?
Mas não posso demorar-me muito porque tenho que me levantar cedo. Também não sei se esta quinta-feira à noite conseguirei escrever alguma coisa pois vou para fora e, nestas coisas, jantar nas calmas e conversa sem pressa, volta e meia dão que o regresso ao hotel é tardio e, dado que, no dia seguinte, é também para madrugar, pode não dar para escrituras bloglosféricas. Mas logo vejo.
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Ora bem. Assim de repente:
Ora bem. Assim de repente:
Poema para Clarice Lispector -- Ferreira Gullar
[Porque, de facto, de facto, poucas coisas neste mundo dependem de nós]
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E agora, se estiverem de acordo, dancemos.
Uma vez mais: "Por una cabeza"de Carlos Gardel
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira.
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Acho que errou a profissão.
ResponderEliminarDevia ser psiquiatra.
Com a sua empatia e capacidade de escuta, pela forma como vivencia e compreende o outro, com questionamento interno constante, mantendo um distanciamento na medida justa, seria uma excelente psiquiatra.
Olhe que sei do que falo.
duarteO
Parabéns...atrasados, pois.
ResponderEliminarQue, por longos anos, continue a ouvir os outros e a ser ouvida pelos seus.
beijinho
Nunca deparei com uma pessoa assim:). Como sou uma faladora, vai ver já a macei no autocarro ou na fila do supermercado:). Mas os seus escutados são estranhos, querem soluções. Normalmente esperam-se uns conselhos ou mesmo coisa nenhuma. Basta a escuta. Preciso treinar mais a escuta. Você precisará de falar. Ou um dia soçobra:). Mas deve ter histórias bem engraçadas. Os outros são um mundo muito grande; por vezes, uma floresta emaranhada.
ResponderEliminarDivirta-se e prolongue o serão. Quem tanto ouve merece relaxar.
Que me desculpem os restantes mas estou mesmo pedrada de cansaço e sono. Por isso, estou aqui apenas para dizer ao Duarte O. que era a minha primeira opção quando fui escolher um curso. Queria ser psiquiatra. Acho que teria mesmo vocação. Mas descobri que teria antes que fazer medicina e eu tinha pavor da morte. A perspectiva de ter que entrar numa sala de autópsias era impensável. Ainda pensei em psicologia mas não era era, na altura, reconhecido como licenciatura e era dada do ISPA, onde se tirava línguas, secretariado e cursos desses que nada tinham a ver com as coisas da mente, fez-me mudar de rumo.
ResponderEliminarMas, sabe?, gostei muito que tivesse dito isto.
Obrigada!