Vivi tantas vidas, atravessei mil espaços, cruzei os tempos, conheci tantos mundos. De cada vez que vivo trago comigo memórias de outros tempos.
Eu era uma mulher etrusca e esse terá sido um dos melhores tempos que vivi. Dele guardo lembranças que ainda hoje me enchem de alegria. Eu era, então, uma mulher livre, sem laços nem limites, e a cultura fluia até de mim provindo de mil fontes. Os prazeres sem censura rodeavam-me: música que me chegava de recantos secretos, frescos, poesia que vozes masculinas me segredavam, histórias que ouvia com deleite, frutas saboreadas à sombra que me eram servidas com malícia, e tantas outras coisas.
Mas, agora que o escrevi, penso que talvez seja injusta ao dizer que recordo com mais saudade esses tempos que outros. De todos guardo gratas memórias.
Já vivi numa casa vitoriana. Usava vestidos longos, sedas rumorejantes, o cabelo numa longa trança que ora usava enrolada, discreta, ora usava caída, quando o corpo se desmandava, outras o cabelo brincando pelas costas nuas. Nessa casa, as janelas abriam-se para varandins e os varandins debruçavam-se sobre cuidados jardins. E à hora do chá juntavam-se amigos músicos, poetas, filósofos, pintores, políticos, e todos discutiam animadamente e os argumentos esgrimiam-se com elegância e malvadez e um pequeno cão aparecia para me fazer rir e irritar um amigo delicado. Depois ficavam para a noite e uns tocavam e outros cantavam e outros declamavam e todos dançávamos e, enquanto isso, os pintores pintavam, e petiscávamos e bebíamos e trocávamos livros e uns liam o que tinham escrito e as tertúlias prolongavam-se até de madrugada, hora a que cada um se encostava no seu canto e adormecia até que o sol estivesse alto para então sair para a sua própria casa, deixando-me a mim a preguiçar até que a tarde se fizesse, de novo, anunciar.
Também já fui uma gaivota e ainda sinto nos braços, quando os levanto enquanto caminho à beira-mar, o sopro que me levava a abrir as asas e descolar pelos céus, atravessando horizontes, deslizando por entre ventos. Soltava gritos pelos ares apenas pelo prazer de me libertar de tudo o que não cabia dentro do meu peito. Gritava como uma louca enquanto rodopiava, subindo e descendo em volta de barcos, de pescadores, de reflexos de luz no mar. Depois subia aos rochedos, aos telhados, escondia-me, descansava, deixava que o sol aquecesse a minha suave plumagem. Tempos de intensa liberdade, esses.
E fui gata vadia. Vagueava sem rumo por entre ruínas, perdia-me por entre escadas, paredes, pátios, esgueirava-me por entre telhados, sombras, gemidos. Procurava os cais nocturnos, os barcos abandonados, sonhos secretos perdidos entre as redes que os pescadores teciam pela manhã. E se alguém me chamava, bchchbchch, eu espreitava, curiosa mas, se sentia que se aproximavam, logo eu, de um salto, desaparecia por entre memórias misteriosas, sombras, vestígios, vultos transparentes, ausências. O silêncio era, então, para mim, uma necessidade. Esgueirava-me rente a paredes, tentando ouvir o murmúrio dos segredos lá impressos, procurava as sombras, os sons sussurrados que as casas vazias guardam.
Agora estou aqui.
Atravessei os tempos, os espaços, para aqui chegar, para encontrar aquele que veio também de longe para se aproximar de mim. Como vindo do nada, com poucas palavras, com sorrisos limpos entre as elas, com delicadeza, veio até mim. Não sei como aqui chegou, que vidas viveu, mas também nada sei de mim. E sei, sem saber explicar como o sei, que ele me conhece como se tivesse voado comigo nos meus tempos de gaivota, como se se tivesse esgueirado comigo por escadas vadias quando eu era uma gata silenciosa, como se tivesse desfeito as minhas tranças nas noites em que a poesia corria livre entre salas nas tertúlias vitorianas, como se me tivesse dado uvas à boca enquanto me dizia poesias doces como toadas frescas em tardes de verão.
Estamos juntos. As nossas peles reconhecem-se. As nossas palavras procuram-se. Os nossos olhares adivinham-se. E, sem sabermos como, os nossos sonhos tocam-se. A nossa proximidade dilui-se na intemporalidade de que somos feitos; e a inexplicação serve-nos como uma religião que se tivesse alojado no nosso coração.
Atravessei os tempos, os espaços, para aqui chegar, para encontrar aquele que veio também de longe para se aproximar de mim. Como vindo do nada, com poucas palavras, com sorrisos limpos entre as elas, com delicadeza, veio até mim. Não sei como aqui chegou, que vidas viveu, mas também nada sei de mim. E sei, sem saber explicar como o sei, que ele me conhece como se tivesse voado comigo nos meus tempos de gaivota, como se se tivesse esgueirado comigo por escadas vadias quando eu era uma gata silenciosa, como se tivesse desfeito as minhas tranças nas noites em que a poesia corria livre entre salas nas tertúlias vitorianas, como se me tivesse dado uvas à boca enquanto me dizia poesias doces como toadas frescas em tardes de verão.
Estamos juntos. As nossas peles reconhecem-se. As nossas palavras procuram-se. Os nossos olhares adivinham-se. E, sem sabermos como, os nossos sonhos tocam-se. A nossa proximidade dilui-se na intemporalidade de que somos feitos; e a inexplicação serve-nos como uma religião que se tivesse alojado no nosso coração.
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As fotografias, tal como as do post já aqui abaixo, foram feitas no Ginjal.
Leonard Cohen canta Coming back to you.
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Aceitem, por favor, o meu convite e desçam até ao Pássaro Onírico no post que se segue.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira.
E que vivam, dentro de nós, todas as rêveries que caibam no nosso coração.
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Há aqui um parágrafo que é a exacta descrição de uma foto que possuo de um álbum de Francis Spalding da Virginia Woolf com alguns amigos, no terraço à hora do chá ,precisamente.
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