Quando chegou, Leonor cruzou-se com Afonso à saída dos elevadores. Meio a sério, meio a brincar, ele olhou-a de alto a baixo, ar apreciador e sussurrou com vago sotaque brasileiro, ‘Poderosa…!’. Leonor sorriu, gostava de começar bem o dia.
O dia avizinhava-se mais do que preenchido mas tinha que arranjar um espaço na agenda para ter uma conversa com Duarte. Mas, antes de começar o dia, ainda queria fazer umas pesquisas na internet.
Pediu, pois, à Secretária que lhe ajeitasse os horários por forma a deixar-lhe uma meia hora livre para uma conversa com Duarte, em horário que conseguisse compatibilizar através da Secretária dele.
Pouco depois, estando ela ainda a fazer pesquisas que a estavam a deixar certa mas muito apreensiva sobre o que muito provavelmente se estava a passar, a Secretária veio dizer-lhe que Duarte estava no gabinete mas que sairia dentro em pouco para uma reunião fora da empresa, seguindo-se um almoço e depois nova reunião pelo que só estaria livre mesmo ao fim do dia, isto se voltasse ao escritório. Leonor resolveu que o melhor, nesse caso, seria atacar já o assunto.
Respirou fundo, olhou lá para fora, tentou controlar o nervosismo e avançou.
Voltou a cruzar-se com Afonso, ‘Afastem-se que ela hoje veio para matar…’ disse-lhe ele baixinho e de forma disfarçada para que mais ninguém desse por isso, mas ela não prestou atenção.
Bateu à porta de Duarte e entrou.
Duarte estava naqueles seus momentos de boa disposição, Muito bom dia a quem é uma flor. Então em que lhe posso ser útil, Madame?
Leonor sentou-se e disse, Bom dia. Temos que falar, Duarte.
Duarte olhou descaradamente para o relógio, riu-se, Graças a Deus que daqui a nada tenho que sair. Até tenho medo de si, ui... Mas bom, se tem que ser… No entanto, enquanto aqui está ponha-se à vontade, se quiser pode descalçar-se.
Mas seria um gosto, Madame, até me ofereço para lhe massajar os pés. Veja lá, pense bem… E um café, aceita?
Isso aceito, sim senhor.
Duarte ligou à Secretária, Mais um cafézinho para mim e outro aqui para a nossa Doutora.
Quando a Secretária entrou, estava Duarte a assoar-se, O Doutor devia pedir para analisarem a qualidade do ar aqui na sua sala, isso ou é do ar condicionado ou da alcatifa, anda permanentemente com alergia.
Duarte riu-se, Devo ter ar de bebé para todas as mulheres quererem tomar conta de mim... Isto não é defeito, Senhora, é feitio…! Rinite alérgica já lhe disse, coisa de família, em vez de sair com sangue azul saí com nariz a pingar. E não é só daqui, é em todo o lado. Dantes chamavam-lhe febre dos fenos, agora como já nem palha temos para comer, chamam-lhe rinite.
A Secretária saíu a rir.
Leonor pegou na conversa, Desde que o conheço, ainda estávamos lá do outro lado, já você sofria dessas alergias, não era?
Duarte riu-se, Já nem ligo. Devia pôr uns sprays, umas tretas, até devo ter isso para aqui, mas nunca me lembro. Mas então, Doutora, se é para brincarmos aos doutores, eu dispo-me e deito-me aqui no sofá para você encostar o ouvido ao meu peito a ver se a respiração está boa. O que me diz?
Leonor sorriu mas não deu saída. Duarte, você anda com algum problema?
Duarte soltou uma bem humorada gargalhada, Com algum?! Só com um…?! Era bom, era. Eu ando é com mil problemas. Não lhe contei já ontem? Mil. Mil! Até o gato está doente, imagine. E parece que agora entra água pela janela da cozinha. E a vedação do jardim tem que ser reparada. E aqui uns não compram, outros não pagam. E o Natal está à porta e a minha mãe e a minha sogra não se podem nem ver. E eu não suporto os meus cunhados. E o meu telemóvel anda marado, descarrega num instante. Continuo ou já chega?
Leonor sorriu. Problemas desses todos temos.
Duarte olhou-a de soslaio. Todos? Todos não. Você não. Você é a Miss Maravilhas, a si nada a afecta nem infecta. Tudo sempre em cima.
Olhe que não, Duarte, olhe que não. Não tenho rinite crónica nem nenhum gato doente, nem sogra nem vedação mas tenho outros problemas.
Duarte riu-se, Deixe-me adivinhar. Cama fria?
Leonor empertigou-se, Não se estique, não vá por aí. E estou a falar a sério.
E, então, encheu-se de coragem. Duarte, desculpe, é mesmo só porque quero ajudar... mas sou levada a crer que você está com problemas de dinheiro.
Duarte encostou-se para trás, riu, Olha! Que grande descoberta. Mas haverá alguém neste país que não o esteja?
Leonor sentia o coração a bater mais acelerado, Duarte estou a falar a sério. São já vários os indícios. Várias coisas não andam a bater certo. Se tem algum problema pode dizer-me, quero ajudar.
Duarte ficou sério, agora parecia um pouco assustado, Um ou outro problema sem importância, coisas pontuais, nada de mais. Logo que eu tenha sossego, trato de tudo. Já lhe disse. Tanto drama por causa de uns míseros trocos.
Uns quantos mil euros, Duarte, aqui na empresa. Diz que tem as notas de despesa para regularizar e nada, o tempo passa e nada e nem é só pelo dinheiro, é que não podemos dar esta imagem, de uma certa balda. Não percebe? E vão aparecendo uns e outros indícios mais. Alguma coisa há.
Duarte reagiu tentando aparentar naturalidade, Se me derem dois ou três dias para procurar papéis nos bolsos dos casacos, na pasta, nas gavetas e para os pôr por ordem, acaba-se o dramalhão.
Mas Duarte, esta conversa já vem de há quanto tempo...? E de vez em quando a verba aumenta. Não percebe que não é possível? Que não pode ser? Que, se isto não se regulariza, vou ter que reportar?
Duarte impacientou-se, Porra, outra vez a mesma conversa! E estava a ficar com o pescoço malhado e já todo agitado.
Leonor assustou-se um pouco, tentou acalmá-lo. Esqueça isso agora. Deixe lá agora os papéis. Mas diga-me: posso ajudá-lo?
Duarte foi peremptório: Pode, chiça. Já lhe disse. Deixe-me em paz.
Leonor olhou-o nos olhos e, sem grande convicção disse: É jogo, Duarte?
Ele atalhou, Não se meta onde não é chamada! E o que é que uma santinha como você sabe da vida para poder julgar uma coisa dessas? Não é jogo nenhum, tenho sorte ao amor não teria sorte ao jogo. Parvoíce.
Leonor fixou-o bem e, enchendo-se de coragem, de facto quase a medo, confrontou-o: É cocaína, não é Duarte?
Duarte desatou-se a rir, Mas está a viajar na maionese, ó Leonor? Passou-se? Está a ver-me com ar de junkie? Poupe-me. Olhe: e veja mas é se não espalha um disparate desses!
Leonor hesitou, Duarte, não insisto. Mas pense no que anda a fazer. Peça ajuda. Não vou falar com ninguém. Vou aguentar isto por mais algum tempo. Se precisar estou aqui. Sabe disso, sempre estive. Não o vou julgar. Seja o que for. Mas não se destrua, Duarte.
Ele ficou a olhá-la em silêncio. Depois, de mãos nos bolsos, foi até à janela. Fungava, talvez estivesse a chorar ou talvez fosse apenas aquela alergia.
Leonor esperou um pouco. Teve vontade de se aproximar dele, de lhe pôr a mão no braço. Mas não foi capaz. Depois saíu.
*
A música lá em cima é uma vez mais Agnes Obel, desta vez com Fuel to Fire.
Aos que aqui chegaram hoje, informo que esta história vem no seguimento do episódio de ontem intitulado Leonor e a mulher de Duarte em noite de medos e lágrimas que, por sua vez, já era seguimento de outros sempre devidamente referidos.
Num registo muito diferente, caso tenham vontade de ler sobre a venda - maioritariamnete ao estrangeiro - dos CTT e, a seguir, sobre o inenarrável Bruno Maçães, o Alemão, desçam, por favor, até aos dois posts seguintes.
Permitam ainda que vos convide a visitarem o meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa, onde tenho hoje uma história, A Flor Maior do Mundo, dita por José Saramago.
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Resta-me, por hoje, desejar-vos uma bela quarta feira. Saúde e alegria!
Olá UJM!
ResponderEliminarTenho estado ausente nos comentários mas tenho , como sempre , acompanhado os seus escritos de que gosto..e muito.
E a propósito de "Leonor e Duarte" (da sua vivência pessoal???) porque não a publicação futura em livro?? Eu sei que hoje em dia qualquer locutor de TV publica mas a sua qualidade de escrita não pode ficar apenas para os leitores do seu blog!
Teno dito e um abraço
Há Leonores e Duartes assim
ResponderEliminarUm bom texto
Hummm...
ResponderEliminarNão o estou a ver a snifar, vou mais pelo Blackjack...
ResponderEliminarProblemas de dinheiro...até onde irá?
Vou ver mais acima.
Bj
Olinda