Porque é que algumas pessoas não gostam de poesia?
Tão estranho isso me parece que frequentemente me interrogo bem como costumo interrogar as pessoas que gostam de ler em geral, exigentes na qualidade da prosa mas que não lêem poesia. Dizem-me que a poesia não lhes diz nada e ponto final.
O que há, pois, na poesia que convoca uns e deixa outros indiferentes?
Já aqui contei: um grande amigo meu, leitor exigentíssimo, para me provar que a poesia é pouco mais que nada, pegava num poema e lia-o de seguida. Uma coisa assim: "Alguma coisa desassossegou o espírito do lugar e propagou sementes de solidão e derramou ventos que mordem o vazio dos campos. É tempo de dizer adeus às almas".
E, meia dúzia de segundos depois de ter começado, tinha lido de carreirinha o poema e virava-se para mim, 'Pronto, está lido. Diga-me lá qual a graça disto?'
Eu dizia-lhe que ele é que estava a matar o poema, lendo-o assim, de supetão, e ele retorquia que os poetas é que, como são gente sem assunto, para fazerem render o peixe, de três em três palavras mudam de linha para ver se enganam os incautos. Eu ainda tentava argumentar com a respiração, com a pausa necessária para apreciar as palavras, coisas assim, mas ele atalhava, "ó menina, tretas!". Acabei por desistir.
E, no entanto, eu leio um poema, aquele mesmo que acima foi transformado em duas frases espalmadas e, lendo-o com vagar, parece que estou a degustar um néctar muito puro, a essência da essência.
Alguma coisa desassossegouo espírito do lugar e propagousementes de solidão e derramouventos que mordem o vazio dos campos.
É tempo de dizer adeus às almas.
Leio este pequeno poema de A. M. Pires Cabral e parece que é como se a sombra se tivesse imobilizado sobre um lugar desabitado, um lugar onde o vento esvaziou as almas. (Não é o caso das fotografias que aqui coloco e que mostram a vista que tenho in heaven, um lugar muito docemente habitado).
Rubras como poentes
estas vinhas. Rubras como
o consolo que se ocultava nos bagos
e, uma vez ocorrida no lagar
a química benévola,
deles se destila - e nos escalda.
E quase paro de respirar para sentir o rubro quente das videiras, os bagos de sangue, o calor que nos consola o corpo. E, no entanto, são apenas palavras.
*
Estou com isto porque hoje comprei o último livro da colecção da editora Tinta da China coordenada por Pedro Mexia, o 'Gaveta do Fundo' de A. M. Pires Cabral. Tal como os anteriores é um livro especial. Pedro Mexia é um bom olheiro, disso não haja dúvidas. A poesia que escolhe não é óbvia, não é daquela poesia que de tão fácil ou banal se torna descartável. Não: a que ele escolhe fica inscrita em nós.
Os livros, em si, têm cuidada edição - e se eu sou sensível a isso. A paginação é agradável, o papel é bom, o papel da capa parece uma seda rugosa muito agradável ao toque, o design das capas e as cores são elegantes.
Para vos mostrar, fiz uma das minhas instalações. E, como de costume, um dos livros tresmalhou-se, desta vez foi o do João Vário. Se fosse uma ovelha, eu assobiava por ele e ele acabaria por se chegar; mas, assim, como chamá-lo? Desisti e fotografei os que encontrei, este novo e mais o do Luís Quintais e o da Rosa Oliveira.
Depois, quando os vi juntos, as capas fizeram-me lembrar as capas dos livros de poesia da Brasília Editora ou da Portugália Editora feitas por João da Câmara Leme há milhares de anos atrás. Coloquei dois desses para vos mostrar as parecenças, um do José Régio e outro de José Gomes Ferreira.
Quanto a este último, já aqui o referi por mais do que uma vez (ou aqui ou no Ginjal, não me lembro bem).
A Dama e o Unicórnio é um livro muito belo. É daqueles livros objecto que me apetece emoldurar, guardar numa vitrine, talvez colocá-lo junto ao meu leque de ripinhas de madeira de mil oitocentos e tal. Mas não é só livro: é livro e CD, voz de Ana Brandão dizendo os poemas e música de António Sousa Dias.
A produção executiva, a capa e paginação estiveram a cabo do Atelier 004 de Patrícia Reis - um grafismo invulgar, um bom gosto sedutor. Ou seja, uma obra especial, uma preciosidade (um presente de Natal ímpar, digo-vos eu).
Se eu um dia fizer um livro acho que vou pedir à Patrícia Reis que o torne tão bonito assim (presunção e água benta, qualquer qual toma a que quer, ora essa)
Tenho estado a falar da forma mas, claro, o conteúdo é qualquer coisa... Poemas muito belos, um roteiro poético em torno da série de 6 tapeçarias La Dame à la Licorne descobertas em em 1841 e que podem ser vistas no Musée de Cluny.
Transcrevo, ao acaso, um poema e mostro-vos a fotografia de um outro:
Seduziste-meSIGILO
Senhora
e eu deixei-me seduzir
de bom grado
No sigilo de vosso
colo
na devassa de vosso espelho
O meu amigo diria que a Maria Teresa Horta não tinha muito que dizer sobre o sigilo e que, com menos de vinte palavras, despachou o assunto.
Eu, pelo contrário, pasmo com o murmúrio, o secretismo da sedução assim descrita - e para os quais bastaram menos de 20 palavras.
*
Por tudo isto, pergunto: o que é preciso para se gostar de poesia?Saber respirar, saber adivinhar a música que se esconde no lado silencioso das palavras, saber dar o tempo necessário para que a luz ou a sombra escolham onde pousar?
Não sei.
Apenas sei que, para mim, a poesia é imprescindível.
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A música lá em cima é Amigo, queredes vos ir? de Dom Dinis, cantada por Paulina Ceremuzynska
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[Não me apetece muito agora dizer-vos isto porque é matéria muito pouco poética mas, assim como assim, deixem que vos informe: sobre o novo movimento de gente de bem do PSD que está capaz de esganar a ala passista e os cães com pulgas que tomaram de assalto o partido laranja, é descerem, por favor, até ao post já aqui abaixo]
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«««« Não devo conseguir responder aos vossos comentários pois quero escrever sobre a Leonor e perdi um tempo danado com isto que acabaram de ler. Ponho-me a fazer formatações maricas e isto desalinha-se tudo e eu para aqui ando de volta, a pôr espaço de um lado, a tirar de outro... e o tempo vai sendo consumido com isto. E tanto que eu gostava de ir dar uns dedos de conversa, ando com saudades de conversar convosco »»»»
Bom dia! E como é que não gosta de poesia? Tem toda a razão.Fico contente por ter gostado do livro da Maria Teresa Horta, foi um desafio:) um beijo P
ResponderEliminarEu não percebo quem não gosta de poesia! Será porque não gosta da vida?
ResponderEliminarBeijinho
Olá Patrícia,
ResponderEliminarEste livro saíu-lhe mesmo bem, um livro-objecto maravilhoso.
Foi um desafio superado. Parabéns!
Um beijo.
Olá Lino,
ResponderEliminarPois não sei. Acho que tem que se saber gostar da poesia como quem gosta de um bom vinho, de um bom perfume, de de uma boa iguaria, uma obra de arte: tem que se degustar com vagar, com tempo, com serenidade, deixar que as palavras respirem.
Um beijinho!
Estou eu muito atarefado a preparar um artigo para publicar no meu blog, com cantigas de amor de D. Dinis, e para meu espanto encontro aqui uma! A minha amiga "Um Jeito Manso" antecipou-se-me... Isso não se faz! ;-) (Não se preocupe que esta não faz parte do lote que pretendo publicar, se um dia vier a publicar alguma coisa).
ResponderEliminarOlá Fernando Ribeiro,
ResponderEliminarDescobri esta música no outro dia, no blogue A Matéria dos Livros e fiquei logo apaixonada. É que é tudo uma maravilha, desde o objecto interpretado até ao virtuosismo da interpretação.
Coisas assim, especiais, merecem ampla divulgação pelo que ainda bem que também vai divulgar (e até podia ser a mesma cantiga, que mal tinha isso?) e eu estou desejando ver o que nos vai apresentar.
Um bom domingo!!!!